Relembre sucessos de João do Vale, que misturou malícia e crítica social

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Deu meia noite, a lua faz o claro
Eu assubo nos aro, vou brincar no vento leste
A aranha tece puxando o fio da teia
A ciência da abeia, da aranha e a minha
Muita gente desconhece” João do Vale e Luiz Vieira

Rude João Batista. Do Vale, donde emergem misérias amarelecidas. Que o tempo não carcomeu, pois Carcará se enganchou sobre vestes rasgadas, com olhos de furar o sol. Profeta do norte, repentista sem pátria. Cabeça na bandeja de palha. A ema gemeu quando esqueceram teu parto. Tal retirante legou em cada canto um aviso, um gemido, um burburinho. Num arrasta-pé sem vergonha, com muita alegria. Nutrido à carne escassa, seca mandioca e picardia. Mas se dança e belisca numa danação arredia, pouco tímida, que lança e provoca enquanto espia. Malícia de ventre em véu, sem amarras, nem covardias.

O segredo do sertanejo ninguém explica. Convide Coroné Antônio Bento e pesque uma isca. Só dando com o peba na pimenta pra suportar terra assim ardida. Sorriso bronco, branco, asseado. Casca escura de fina usura. Assim pesado, fruto de todos os pesares, maldizeres, apertos, segura a pena com delicadeza e percorre com anjos nos pés a asa do vento, emaranhando-se na teia da aranha, se lambuzando com o mel da abelha.

As Pedreiras do Maranhão te criaram para o mundo. E a cachaça de todo dia, o suor escorrendo na testa, encontrando o peito de pelos, grudaram com tanta força em teu corpo que não posso dizer se não te perderam, ou foste tu, João, que não largou da mão deles. Dos teus irmãos, à beira do palco no teatro Opinião, distantes, repudiando as demonstrações de desafeto dos donos da panela, eximindo de culpa os que cozinham nela, pois já trazem tantas cruzes e tantas velas acesas. Visões de um Cego Aderaldo a espalhar correntes? Talvez a sina do irmão sem berço Patativa, nos braços de Assaré?

Importa como o pássaro foi capturado? Como se lhe arrancou os dentes? Ou como o coração cuspiu as entranhas? Tu és barro levado ao fogo por Mestre Vitalino, “puro”, como desdobra Chico Anysio. Transformação divina. Porque as flores são tão bonitas jogadas ao chão e tão distantes jogadas no vento. Fulô caída no chão precisa de pés esgarçados, estrela no céu é miúda e brilhante. Mas não iluda João, não iluda. Tua espera é realidade. Nossa miséria, nossa fome. Que na tua morte, sejamos menos ingratos.

“Estrela Miúda” (xote, 1953) – João do Vale e Luiz Vieira
Marlene teve carreira internacional, sendo levada, em 1959, a se apresentar no Teatro Olympia, em Paris, pela diva francesa Edith Piaf. Mas foi em solo brasileiro que ela consolidou suas maiores conquistas, atuando em teatros, musicais e shows históricos, como o invejável “Carnavália”, protagonizado ao lado de Blecaute e Nuno Roland e planejado pela cronista Eneida. Na opinião de muitos, o maior espetáculo de carnaval que o Rio de Janeiro teve a honra de receber. Antes, em 1953, ela abriu as portas do Rio de Janeiro, então capital federal e Meca cultural do país, ao maranhense João do Vale, quando lançou “Estrela Miúda”, xote em parceria com Luiz Vieira de rara beleza e sensibilidade, regravado por Amelinha, Elba Ramalho, Maria Bethânia, e mais.

“Na Asa do Vento” (baião, 1956) – João do Vale e Luiz Vieira
Uma das mais bonitas canções de João do Vale se baseia na sabedoria popular, apreendida através da observação da natureza. “Deu meia noite, a lua faz o claro/ Eu assubo nos aro, vou brincar no vento leste/ A aranha tece puxando o fio da teia/ A ciência da abeia, da aranha e a minha/ Muita gente desconhece/ Muita gente desconhece, olará, viu?/ Muita gente desconhece…”, ponteia João do Vale, se valendo do linguajar típico de sua região, a exemplo do que Adoniran Barbosa repetiria com a comuna italiana em São Paulo. “Na Asa do Vento”, parceria com outro craque, Luiz Vieira, foi lançada em 1956, por Dolores Duran, em uma interpretação exemplar. Mais tarde, foi regravada por Caetano Veloso no LP “Joia”, cuja capa sofreu censura. Caetano, a esposa e o filho pequeno surgiam pelados, mas ele teve a parte íntima coberta com aves.

“O Canto da Ema” (batuque, 1956) – João do Vale, Aires Viana e Alventino Cavalcanti
Embora apareça também creditada a Aires Viana e Alventino Cavalcanti, há um consenso entre os pesquisadores de que o grande mérito de “O Canto da Ema” pertence a João do Vale, compositor maranhense que teria outras músicas de sucesso gravadas por Chico Buarque, Dolores Duran, Tim Maia, Nara Leão e Maria Bethânia, como “Na Asa do Vento”, “Carcará”, “Coroné Antônio Bento” e “Pisa na Fulô”, entre outras. “O Canto da Ema” é um batuque que reúne todas as características da música simples, porém profundamente ligada às raízes, de João do Vale, e foi lançada por Jackson do Pandeiro em 1956, alcançando enorme sucesso. A bela letra tem como ponto de partida uma crendice popular.

“Pisa na Fulô” (xote, 1957) – João do Vale, Ernesto Pires e Silveira Júnior
Imortalizada na poesia do alagoano Jorge de Lima e do maranhense João do Vale, a expressão “Pisa na Fulô” lança mão da oralidade para ampliar o seu poder de comunicação, método também utilizado por outro gênio da literatura, porém com outros princípios: Guimarães Rosa – que, aliás, também trazia uma flor em seu sobrenome. Em 1957, o xote de João do Vale, Ernesto Pires e Silveira Júnior, foi lançado, simultaneamente, por Marinês e Ivon Curi, batendo recordes de vendagens de discos. Em seu primeiro LP, “O Poeta do Povo”, de 1965, João do Vale registrou sua versão. Nara Leão a regravou com sucesso.

“Peba na Pimenta” (xote, 1957) – João do Vale, José Batista e Adelino Rivera
Quem disse que se acabou a monarquia no Brasil é porque nunca ouviu Marinês, autêntica rainha do ritmo e das tradições nordestinas. Nascida em meio à Asa Branca e o pandeiro de ícones do forró, do xaxado e do baião como Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro, Marinês deu seus primeiros passos na terra seca e amarelada do sertão pernambucano, mas foi em Campina Grande, no interior da Paraíba, que conheceu seu marido Abdias e formou com ele o “Casal da Alegria”.

Logo, os dois se juntaram ao zabumbeiro Cacau, completando o conjunto que começaria excursionando pela região nordeste e em breve ganharia todo o Brasil, toda sua gente. Trazendo a sanfona, a zabumba, o agogô e o triângulo na sacola, Marinês tornou-se a primeira mulher a liderar com coroa de cangaceiro na cabeça um grupo de forró. Em 1957, Marinês lançou “Peba na Pimenta”, xote de João do Vale que se refere ao prato feito com o tatu peba, curtido na malícia e doses de pimenta.

“Forró do Beliscão” (xote, 1959) – João do Vale, Ary Monteiro e Leôncio Tavares
Como cantor, Ivon Curi fazia um tipo único, que misturava humor e musicalidade com rara eficácia. Ainda hoje, é difícil encontrar na música brasileira algum discípulo de seu estilo teatral, talvez perceptível apenas, em alguma medida, na persona de Eduardo Dussek. Em 1953, Ivon gravou uma série de xotes de sucesso. A malícia das canções era sublinhada pelas pausas dramáticas do cantor-ator, que lançou, por exemplo, “O Xote das Meninas” (Zé Dantas e Luiz Gonzaga), “Farinhada” (Zé Dantas), “Tá Fartando Coisa em Mim” (com Humberto Teixeira) e a irresistível “Forró do Beliscão”, de João do Vale.

“Sina de Caboclo” (moda, 1964) – João do Vale e J. B. de Aquino
Dez anos depois do suicídio de Getúlio Vargas o Brasil saía de uma ditadura e entrava em outra. Logo no primeiro ano do período de chumbo que transcorreu no país de 1964 a 1985, o compositor João do Vale lançou no espetáculo “Opinião”, de Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Armando Costa e Oduvaldo Viana Filho, dirigido por Augusto Boal, em que contracenava com Nara Leão e Zé Kéti, a música “Sina de Caboclo”, parceria com J. B. de Aquino. Nela, os compositores se rebelam contra a exploração dos patrões ao trabalhador rural. Gravada por Nara Leão no mesmo ano, a canção apresenta, logo no início versos de força e resistência: “Mas plantar pra dividir/Não faço mais isso, não”.

“Carcará” (canção, 1965) – João do Vale e José Cândido
Um ano após o início da ditadura militar no Brasil, os movimentos artísticos já se organizavam para protestar contra tal violência. Escrito por Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Armando Costa e Oduvaldo Viana Filho, com direção de Augusto Boal, o espetáculo “Opinião” foi um marco da resistência do período. Um dos participantes, João do Vale, era um maranhense de Pedreiras, cuja árida experiência no sertão o credenciava a encarnar o nordestino com todas as suas revoltas e medos.

O tom autobiográfico do relato de João, presente na música como um todo, se acentua quando índices de desigualdade social no nordeste são lidos de forma enérgica por Maria Bethânia, que, com gesto e entonação agressiva, dá vida ao “Carcará”, pássaro-título conhecido por sua força e implacabilidade. Fora isso, Ney Matogrosso declarou mais tarde que a interpretação masculina de Bethânia à ocasião foi o primeiro ato cênico de homossexualidade na história da música brasileira.

“Minha História” (baião, 1965) – João do Vale e Raimundo Evangelista
Um resumo da trajetória de João do Vale aparece em “Minha História”, que é também um resumo da história do Brasil, com suas mazelas e desigualdades. “Eu vendia pirulito, arroz doce, mungunzá/ Enquanto eu ia vender doce, meus colegas iam estudar/ A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar”, relata João do Vale no baião em parceria com Raimundo Evangelista, lançado pelo próprio autor em 1965, no LP “O Poeta do Povo”, e regravado por Nara Leão no mesmo ano. Chico Buarque, Renato Teixeira, Rolando Boldrin e Zezé Di Camargo & Luciano também retornaram a essa pérola da canção brasileira.

“Coroné Antônio Bento” (baião, 1970) – João do Vale e Luiz Wanderley
A áspera música “Carcará”, do maranhense João do Vale, se transformou, em 1965, num grito de rebeldia e luta no histórico espetáculo “Opinião”, dirigido por Augusto Boal e produzido pelo Teatro de Arena e pelos integrantes do Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes, com dramaturgia de Armando Costa, Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes. Protagonizado por João do Vale, Zé Kéti e Nara Leão, o elenco ganhou a gana da estreante Maria Bethânia quando Nara decidiu deixar o espetáculo. Em 1970, João do Vale lançou outra pedrada, mas de intenção diferente. O baião “Coroné Antônio Bento”, feita com Luiz Wanderley, ganhou as vozes de Tim Maia e Cássia Eller.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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