Relembre sucessos de Gal Costa, a voz de cristal da música brasileira

*por Raphael Vidigal Aroeira e Milton Luiz

“Está certo dizer que estrelas estão no olhar
De alguém que o amor te elegeu pra amar” Caetano Veloso

Maria da Graça assinou o primeiro compacto com o nome de batismo, mas, já ao dividir o LP “Domingo”, com Caetano Veloso, em 1967, e participar de “Tropicália ou Panis et Circencis”, de 1968, passou a atender por Gal Costa. Nascida em Salvador, no dia 26 de setembro de 1945, Gal é uma das maiores cantoras da história da música brasileira, e se destaca tanto pela afinação quanto pelo timbre de voz cristalino. Ao longo de sua profícua carreira, Gal já gravou mais de 40 álbuns.

Entre seus sucessos estão músicas como “Festa do Interior”, “Bloco do Prazer”, “Meu Nome É Gal”, “Meu Bem, Meu Mal”, “Um Dia de Domingo”, “Baby”, “Chuva de Prata”, “Vapor Barato”, “Pérola Negra”, e muitos outros. Musa da Tropicália, Gal homenageou Ary Barroso e Dorival Caymmi, e passou a um repertório popular sem abrir mão da qualidade, gravando músicas de Chico Buarque, Moraes Moreira, Cazuza, Michael Sullivan, Tom Zé e Caetano.

“No Tabuleiro da Baiana” (samba-batuque, 1936) – Ary Barroso
Grande Otelo cantou pela primeira vez o samba-batuque “No Tabuleiro da Baiana” em 1937, em um espetáculo da revista “Maravilhosa”, ao lado da cantora Déo Maia. Chamado para substituir Luís Barbosa, que estava enfermo com uma tuberculose, Otelo procurou Ary Barroso na Rádio Cruzeiro do Sul para ensaiar. Ao final do número, Ary vaticinou: “Você nunca vai cantar ‘No Tabuleiro da Baiana’. Você é muito desafinado!”. Otelo apresentou a música no Teatro Carlos Gomes e foi um grande sucesso. Segundo ele, “continuou desafinado” e cantando a música. Décadas depois, em 1981, no especial da TV Globo, “Maria da Graça Costa Penna Burgos”, cantou novamente o sucesso ao lado de Gal Costa. O resultado não poderia ser outro, muitos risos e música.

“Balancê” (marcha, 1936) – Braguinha e Alberto Ribeiro
A marchinha “Balancê” é a primeira das grandes gravações de Gal Costa que serviu de trilha sonora para o Carnaval brasileiro pré-axé music. A regravação do sucesso de Braguinha e Alberto Ribeiro, lançado por Carmem Miranda em 1936, foi o grande sucesso da folia de 1979. Era o ponto alto do show de maior sucesso comercial de Gal, “Gal Tropical”, que ficou um ano em cartaz. “Quando por mim você passa/ Fingindo que não me vê/ Meu coração quase se despedaça/ No balancê, balancê”, dizem os versos contagiantes da canção. Braguinha voltava a reinar no Carnaval brasileiro, graças aos agudos de Gal.

“Aquarela do Brasil” (samba-exaltação, 1939) – Ary Barroso
Lançada por Araci Cortes no teatro de revista, em 1939, “Aquarela do Brasil” só se destacou um mês depois, quando voltou a ser apresentada, desta vez pelo barítono Cândido Botelho, no espetáculo “Joujoux e Balangandãs”. A primeira gravação em disco foi feita pelo cantor Francisco Alves, acompanhado por uma orquestra que executava o arranjo de Radamés Gnattali. Daí por diante, nomes como Sílvio Caldas, Carmen Miranda, Tom Jobim, Gal Costa, João Gilberto, Caetano Veloso, Bing Crosby e Frank Sinatra a regravaram. Durante a ditadura militar, Elis interpretou a versão mais sombria da canção, acompanhada por um coral que reproduzia os cantos dos povos indígenas do Brasil. Foi memorável.

“Falsa Baiana” (samba, 1944) – Geraldo Pereira
Em 1944, Geraldo Pereira escreveu um samba que depois seria gravado por Gal Costa, Roberto Ribeiro, João Gilberto e muitos outros. Lançada por Ciro Monteiro, após a recusa de Roberto Paiva, a canção se tornou sucesso já na década de 1940. Com versos característicos da prosa sincopada de seu autor, a música segue o ritmo do corpo da protagonista, de seus quadris, chamados pelo apelido consagrado em terras tupiniquins, famosas “cadeiras”, e não se faz de rogado em aludir ao charme e provocação da baiana verdadeira, aquela que deixa “a moçada com água na boca”. Uma ode ao corpo feminino e seu poder de sedução, ali condensado por metáforas e expressões bem populares.

“Antonico” (samba, 1950) – Ismael Silva
Composto em 1950 por Ismael Silva, o samba “Antonico” foi registrado por ele em disco de 1973, fruto do espetáculo “Se Você Jurar”, dirigido por Ricardo Cravo Albin. Em 1967, Elza Soares já o havia gravado no disco “Elza, Miltinho e Samba”, em que cantava algumas músicas ao lado do cantor Miltinho. Apesar das constantes negativas de Ismael, especula-se que a música seja autobiográfica, devido às dificuldades financeiras que o compositor passou após sair da prisão. Em uma carta escrita por Pixinguinha em 1939, endereçada ao musicólogo Mozart de Araújo, ele dizia: “Espero que o que puder fazer pelo Ismael seja como se fosse por mim.” Quase os mesmos versos presentes em “Antonico”, regravados por Martinho da Vila e Gal Costa.

“Índia” (guarânia, 1952) – versão de José Fortuna
O LP “Índia”, de 1973, teve a capa, focada na parte de baixo do biquíni de Gal Costa, vetada pela ditadura. Para sair, o disco precisou ser vendido em plástico opaco, solução encontrada pelo compositor Roberto Menescal, então diretor artístico da gravadora Philips. “A censura à capa de ‘Índia’ não a afetou negativamente. Na verdade, impulsionou as vendas do disco e gerou bastante burburinho em torno da obra. O que afetou os rumos de Gal de maneira mais decisiva foi a recepção irregular ao disco subsequente, ‘Cantar’, de 1974”, conta Renato Contente, autor do livro “Não Se Assuste Pessoa! – As Personas Políticas de Gal Costa e Elis Regina na Ditadura Militar”. A faixa-título “Índia” era uma guarânia de 1952, cuja versão, de José Fortuna, Gal Costa regravou.

“Só Louco” (samba-canção, 1956) – Dorival Caymmi
“Só Louco” encerra quaisquer racionalidade sobre questões impalpáveis, ligadas ao momento mágico do amor. Nada baseado em pensamentos bem articulados pode modificar o curso dessa direção quando o barco deu sua partida, e ele só aportará mesmo após tempestades. O único momento de se compreender essa loucura é durante sua realização, e ele imediatamente nos escapa, quando menos esperamos. O samba-canção, lançado pelo próprio Dorival Caymmi, em 1956, ganhou regravação primorosa de Gal Costa, em 1976. A faixa se tornou abertura da novela “O Casarão”, de Lauro César Muniz.

“Noites Cariocas” (choro, 1957) – Jacob do Bandolim e Hermínio Bello de Carvalho
“Noites Cariocas” foi gravado por Jacob do Bandolim em 1957, com o regional de Canhoto, que o acompanhava na época. Apesar da excelência com que desenvolvia suas composições, o bandolinista ainda não vivia sua época de ouro, e acabou criando certo rancor por Waldir Azevedo, que ocupou seu posto na gravadora Continental e obteve grande sucesso de público e crítica. Três anos depois, Jacob regravaria o choro com o acréscimo do trombone do Maestro Nelsinho. Com seu estilo levado que remete bem ao samba, a música ganhou letra de Hermínio Bello de Carvalho, em 1979, com regravações de Ademilde Fonseca, Gal Costa, Áurea Martins, entre outras. Virou hit de Jacob.

“Dez Anos” (bolero, 1959) – Rafael Hernández
Apelidada de “A Favorita” e de “Garota Grau Dez”, Emilinha Borba protagonizou uma histórica rivalidade, estimulada pela mídia e pelos respectivos fã-clubes, com a cantora Marlene, conhecida como “A Maior”. Porém, desfazendo possíveis brigas além dos palcos, as duas gravaram juntas músicas como “Lata D’Água”, “Eu Já Vi Tudo” e “Abre-Alas”, de Chiquinha Gonzaga, quando também tiveram a companhia de Angela Maria. Entre os maiores sucessos da carreira de Emilinha, estão a “Marcha do Remador”, “Dez Anos”, “Chiquita Bacana”, “Tomara Que Chova”, “Escandalosa”, “Vai com Jeito”, “Benzinho”, entre outras. No LP “Gal Tropical”, de 1979, Gal Costa regravou “Dez Anos”, belo bolero de Rafael Hernández, lançado por Emilinha.

“Alguém Me Disse” (samba-canção, 1960) – Evaldo Gouveia e Jair Amorim
“Alguém me disse/ Que tu andas novamente/ De novo amor, nova paixão/ Toda contente/ Conheço bem tuas promessas/ Outras ouvi iguais a essas/ E esse teu jeito de enganar/ Conheço bem”, esses versos já foram cantados por Gal Costa, Alcione, Emílio Santiago, Ana Carolina, Agnaldo Timóteo, Nelson Gonçalves, Joanna e Simony, mas a gravação de Anísio Silva foi a responsável pelas mais de dois milhões de cópias vendidas, consagrando-o como o primeiro cantor brasileiro a faturar um disco de ouro, em 1960, à época ainda sem o mesmo prestígio do prêmio Roquette Pinto. O nome de Anísio Silva voltaria à baila com a regravação de Gal Costa para a faixa “Alguém Me Disse”.

“Trem das Onze” (samba, 1965) – Adoniran Barbosa
Escrita em 1965 por Adoniran Barbosa e famosa na interpretação peculiar do grupo “Demônios da Garoa”, a música “Trem das Onze” já foi eleita aquela de maior identificação com os moradores de São Paulo. Um detalhe que não escapa a nenhum ouvinte deste clássico da canção brasileira é a menção à mãe do protagonista. Tudo porque ela é o real motivo para que o encontro com a namorada tenha que ser interrompido. O que também explica a forte ligação dos paulistas com a música, afinal, assim como Adoniran, muitos são descendentes de italianos, e todos sabem o papel e a relevância da mãe nesta cultura. O que há de mais especial na letra, no entanto, é que este dilema ganha contornos cômicos, e não dramáticos. E ela foi regravada por Gal Costa.

“Mamãe Coragem” (tropicalista, 1968) – Caetano Veloso e Torquato Neto
O álbum “Tropicália ou Panis et Circencis” foi um marco da cultura popular brasileira e do movimento capitaneado, na música, por Caetano Veloso, Tom Zé e Gilberto Gil; nas artes plásticas por Hélio Oiticica, que inventou o nome; no cinema por Glauber Rocha; e no teatro por figuras do porte de Augusto Boal e Zé Celso Martinez Corrêa; embora atribuíssem outras nomenclaturas ao que propunham. Uma das faixas mais incisivas do álbum revelava ao público a poética de Torquato Neto, autor da letra cuja melodia é de Caetano Veloso. “Mamãe Coragem”, lançada por Gal Costa, descreve o momento de despedida da família, da mãe, do interior, na busca e crença de melhores oportunidades.

“Namorinho de Portão” (tropicalista, 1968) – Tom Zé
Lançada por Tom Zé em “Grande Liquidação”, primeiro álbum do autor, “Namorinho de Portão” se vale de uma abertura incidental da música de domínio público “Cai, Cai, Balão”, para, em seguida, incluir outros elementos caros à Tropicália, como a mistura sonora e a fluidez discursiva. “Namorinho de portão/ Biscoito, café/ Meu priminho, meu irmão/ Conheço essa onda/ Vou saltar da canoa”. A música foi regravada com grande sucesso por Gal Costa, no conceituado álbum que trazia, ainda, “Não Identificado” e “Baby”. A versão de Tom Zé data do mesmo ano em que veio ao mundo o fundamental álbum “Panis et Circenses”, que definiu as diretrizes da Tropicália que mudou o país.

“Divino Maravilhoso” (tropicalista, 1968) – Caetano Veloso e Gilberto Gil
A discípula de João Gilberto surpreende ao aparecer no IV Festival da Música Popular Brasileira da TV Record mais próxima de Janis Joplin do que do papa da bossa nova. Gal Costa foi quem lançou, em 1968, essa parceria de Caetano Veloso e Gilberto Gil que fincou de vez a bandeira tropicalista em terras brasileiras: “Divino Maravilhoso”. “Atenção/ Tudo é perigoso/ Tudo é divino, maravilhoso/ Atenção para o refrão/ É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a forte”. Politizada, a canção ganhou versões da nova geração nas vozes de Iza, Almério, Renegado, além de Ney Matogrosso e Elza Soares.

“Baby” (tropicalista, 1969) – Caetano Veloso
A música tropicalista “Baby” foi o primeiro sucesso, espécie de cartão de apresentação da cantora para o grande público. Caetano Veloso fez a pedido de Bethânia, mas como ela não queria estar vinculada à Tropicália, coube a Gal gravar para o disco-manifesto do movimento, “Tropicália ou Panis et Circencis” (1968). A gravação também foi incluída no primeiro disco solo da cantora, “Gal Costa”, de 1969. O arranjo ficou a cargo de Rogério Duprat. Para completar, Caetano também participava da faixa, citando em contracanto o final de “Diana”, balada de Paul Anka que fizera sucesso no Brasil em 1958. Um hit!

“Não Identificado” (tropicalista, 1969) – Caetano Veloso
O arranjo de Rogério Duprat já vale a audição. “Não Identificado” foi lançada por Gal Costa em 1969, ainda sob a estética tropicalista. A letra não deixa por menos, e cita o espaço sideral e disco-voador, aliados a iê-iê-iê e Carnaval. “Eu vou fazer uma canção pra ela/ Uma canção singela, brasileira/ Para lançar depois do Carnaval…”. A gravação foi resgatada recentemente como música de abertura do festejado filme de Kleber Mendonça Filho, “Bacurau”, estrelado por Sônia Braga e Bárbara Colen. “Não Identificado” ganhou versões do próprio Caetano, de Maria Bethânia, Paulo Ricardo e de Ayrton Montarroyos, em 2021.

“Meu Nome É Gal” (rock, 1969) – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
Gal Costa é a única cantora que ganhou de Roberto e Erasmo Carlos uma música em sua homenagem. “Meu Nome É Gal” foi lançada no LP de 1969, com uma arte pra lá de psicodélica na capa que se repete nos arranjos. Lanny Gordin e Jards Macalé participam do disco, assim como Caetano Veloso e Gilberto Gil. Vale incluir a regravação da mesma canção no álbum (e show) “Gal Tropical”. O duelo dos agudos mais bonitos do país com a guitarra de Robertinho de Recife, que acontecia no fim do show, é histórico. “Gal Tropical” passou pelo palco do Palácio das Artes, porém com Victor Biglione na guitarra.

“Sua Estupidez” (balada, 1969) – Roberto Carlos e Erasmo Carlos
A histórica parceria entre Roberto Carlos e Erasmo Carlos rendeu hits juvenis e românticos do porte de “Sentado à Beira do Caminho”, “Detalhes”, “É Proibido Fumar” e “Minha Fama de Mau”, consagrando a dupla que alcançou o estrelato com o movimento da Jovem Guarda, sob os auspícios do controvertido produtor Carlos Imperial. Em 1969, Roberto lançou “Sua Estupidez”, logo tomada por vozes femininas de toda ordem. A mais marcante gravação foi feita por Gal Costa, no revolucionário espetáculo “FA-TAL: Gal a Todo Vapor”, dirigido por Wally Salomão, em 1971, que abalou as estruturas da nossa MPB.

“London, London” (balada, 1970) – Caetano Veloso
Já com Caetano e Gil exilados em Londres, Gal assume o papel de a grande porta-voz dos compositores. E foi justamente ela que lançou uma das canções mais bonitas (e tristes) que Caetano compôs, em inglês, durante o exilio. “London, London” foi lançada no disco “Legal”, de 1970. De acordo com Renato Contente, autor do livro “Não Se Assuste Pessoa! – As Personas Políticas de Gal Costa e Elis Regina na Ditadura Militar”, a baiana “perdeu o chão, afetiva e profissionalmente”, com as detenções e a partida de Caetano e Gil para Londres. “Ela ficou no Brasil, representando a resistência dos amigos”, analisa.

“Vapor Barato” (canção, 1971) – Wally Salomão e Jards Macalé
A parceria de Wally Salomão e Jards Macalé foi gravada primeiramente em estúdio, num compacto duplo de Gal lançado em 1971, que incluía “Zoilógico”, “Sua Estupidez” e “Você Não Entende Nada”. Mas “Vapor Barato” só ganhou grande repercussão quando foi incluída no repertório de “FA-TAL: Gal a Todo Vapor”. Anos depois, quando a música foi incluída na trilha do filme “Terra Estrangeira” (1995), passou a ser conhecida do grande público, voltou a fazer sucesso e chegou a ser regravada – também com grande sucesso – pelo grupo O Rappa. O título é uma menção dos loucos compositores ao uso da maconha.

“Pérola Negra” (MPB, 1971) – Luiz Melodia
Luiz Melodia compôs “Pérola Negra” em 1969, quando tinha 18 anos, e a batizou de “My Black”. Descoberto no bairro do Estácio pelos poetas Torquato Neto e Wally Salomão, recebeu a sugestão de Wally de mudar o nome da música para “Pérola Negra”, que era o “nome de guerra” de uma travesti que Wally conhecia. Foi também Wally quem levou a música para Gal Costa lançar em 1971, no show “FA-TAL: Gal a Todo Vapor”, tornando-se a primeira mulher a cantar, com sucesso de dimensões nacionais, a palavra “sexo” na música brasileira: “Tente entender tudo mais sobre o sexo”, sugeria o refrão da canção.

“Três da Madrugada” (canção, 1973) – Torquato Neto e Carlos Pinto
“Então, otários, o Carnaval passou. Estão satisfeitos?”. Assim começa uma das edições de “Geleia Geral”, coluna assinada por Torquato Neto (1944 – 1972) no jornal diário “Última Hora”, em 1971. O poeta, nascido em Teresina, cometeu suicídio um dia após o seu 28º aniversário, e foi um dos artífices da Tropicália. Em 1973, no ano seguinte à morte de Torquato, Gal Costa colocou voz em “Três da Madrugada”, com versos do poeta e melodia de Carlos Pinto, no disco “Os Últimos Dias de Paupéria”. Gal voltou à canção em outras homenagens a Torquato, como “Um Poeta Desfolha a Bandeira e a Manhã Tropical Se Inicia”.

“Até Quem Sabe” (MPB, 1973) – João Donato e Lysias Ênio
“Meu gosto sempre foi exclusivamente pela música, nunca me interessei por outras artes. Na música clássica eu admiro muito os impressionistas, Ravel, Debussy”, confessa o compositor cujas melodias clássicas – num sentido mais abrangente que a definição erudita – de “A Paz”, “Bananeira”, “A Rã”, “Café com Pão”, e outras, foram letradas por Gilberto Gil, Caetano Veloso e o irmão Lysias Enio. Com Lysias, João Donato compôs a belíssima “Até Quem Sabe”, uma canção de despedida lançada por Dóris Monteiro, em 1973, e regravada por Gal no disco “Cantar”, de 1974. E a música também foi gravada por Maysa.

“Presente Cotidiano” (MPB, 1973) – Luiz Melodia
Mais uma de Luiz Melodia, agora incluída no disco “Índia”. A música “Presente Cotidiano”, lançada em 1973, quase foi censurada, por conta do verso “o corpo é natural da cama”. Mas se a música passou pela censura, as fotos da capa e da contracapa, feitas por Antonio Guerreiro, não tiveram a mesma sorte, e o disco só pôde chegar às lojas “embrulhado” em um plástico azul opaco. Na capa, um close de Gal de calcinha vermelha, e, na contracapa, a cantora com cocares e seios à mostra, como uma índia, por sugestão da gravadora. Luiz Melodia só colocaria sua voz em “Presente Cotidiano” no disco “Mico de Circo”.

“Barato Total” (MPB, 1974) – Gilberto Gil
A composição de Gilberto Gil foi faixa de abertura de um álbum que não foi bem recebido na época pelos fãs mais ortodoxos de Gal Costa. “Cantar” foi uma espécie de retomada da Gal discípula de João Gilberto, muito distante da cantora engajada de anos anteriores.  Além da produção de Caetano, o disco tinha na ficha técnica João Donato como autor dos arranjos sofisticados. É da lavra do compositor acreano dois dos mais belos momentos do disco: “Até Quem Sabe” e “Flor de Maracujá”. Com o tempo, “Cantar” se tornou um dos álbuns mais cultuados da carreira de Gal, e “Barato Total” se consagrou um hit.

“Lágrimas Negras” (blues, 1974) – Jorge Mautner e Nelson Jacobina
“Em 1974, Gal recolhia as garras políticas e se voltava de maneira mais significativa para a sua essência de cantora. Isso motivou mudanças substanciais na condução da carreira da baiana”, analisa Renato Contente, autor do livro “Não Se Assuste, Pessoa!”, que analisa as trajetórias musicais de Gal Costa e Elis Regina. No álbum citado, havia algumas pérolas, como, por exemplo, “Lágrimas Negras”, um blues de Jorge Mautner e Nelson Jacobina, dono de alguns dos versos mais bonitos da música brasileira: “Belezas são coisas acesas por dentro/ Tristezas são belezas apagadas pelo sofrimento…”.

“Cartão Postal” (blues, 1975) – Rita Lee e Paulo Coelho
Paulo Coelho desfrutava do sucesso como compositor ao lado de Raul Seixas quando Rita Lee o convocou para participar do álbum que a antiga vocalista dos Mutantes gravara com o grupo Tutti Frutti. “Cartão Postal” foi lançada no disco “Fruto Proibido”. O blues reflexivo tecia considerações sobre a morte, afirmando a necessidade de não a encarar como um acontecimento terrível. Cazuza, já bastante abatido pela Aids, regravaria a música em seu derradeiro álbum “Burguesia”, de 1989. Já Gal Costa a reviveria no registro do espetáculo “Estratosférica”, em 2017, realçando a premência da canção lançada em 1975.

“Modinha para Gabriela” (modinha, 1975) – Dorival Caymmi
Com a recepção fria a “Cantar”, Gal ficou dois anos sem gravar. A situação só iria mudar quando ela foi convidada para ser a intérprete da música de abertura da novela “Gabriela”, da Rede Globo, estrelada por Sonia Braga. O tema musical era uma composição de Dorival Caymmi: “Modinha para Gabriela”. O grande sucesso da música nas rádios levou a cantora a voltar aos estúdios, desta vez gravando uma espécie de songbook com músicas de Caymmi: “Gal Canta Caymmi”. Na regravação da novela “Gabriela”, já em 2012, com Juliana Paes no papel principal, o registro de Gal foi novamente colocado em rotação.

“Esotérico” (MPB, 1976) – Gilberto Gil
Em 1976, Maria Bethânia sugeriu que ela, Gal, Caetano e Gil fizessem um show juntos para comemorar os dez anos de carreira. Assim se criou os Doces Bárbaros, projeto que reuniu o quarteto baiano e culminou em disco. O dueto de Gal e Bethânia em “Esotérico”, música de Gilberto Gil, é um dos pontos altos do espetáculo que foi gravado ao vivo e lançado em LP duplo. A música é um exemplo bem-acabado da habilidade de Gil de combinar sensibilidade astrológica com uma poesia que não perde o mistério de vista. “Se eu sou algo incompreensível/ Meu Deus é mais”, afirma um verso antológico desta canção.

“Tigresa” (MPB, 1977) – Caetano Veloso
Uma das músicas mais sensuais de Caetano Veloso, “Tigresa” teve como musas inspiradoras a atriz e cantora Zezé Motta, que alcançou o estrelato após protagonizar o filme “Xica da Silva”, de Cacá Diegues, em 1976, e também a atriz Sonia Braga, protagonista de “Gabriela”. “Uma tigresa de unhas negras/ E íris cor de mel/ Uma mulher, uma beleza/ Que me aconteceu/ Esfregando a pele de ouro marrom do seu corpo contra o meu”, canta o baiano. Gravada por Caetano Veloso e Maria Bethânia, a canção chegou ao ápice com a versão de Gal Costa para o álbum “Caras & Bocas”, de 1977, se tornando um hit solitário.

“Folhetim” (MPB, 1978) – Chico Buarque
Composta para a “Ópera do Malandro”, a famosa “Folhetim” é uma das muitas músicas que sobreviveram ao espetáculo de Chico Buarque. Interpretada por Gal Costa no ano de 1978, na companhia de Wagner Tiso ao piano, Perinho Albuquerque, autor do arranjo, Jorginho Ferreira da Silva no saxofone, e outros músicos de peso, a canção narra a trajetória simples e peculiar de uma prostituta, com uma melodia ao mesmo tempo suave e incisiva, como requer a letra. “Se acaso me quiseres/Sou dessas mulheres/Que só dizem sim”; “Mas na manhã seguinte/Não conta até vinte/Te afastas de mim”, dizem alguns trechos. A música também foi gravada pelo próprio Chico Buarque e por Nara Leão, em outra sublime interpretação que valoriza cada palavra dita pela personagem.

“Mãe” (MPB, 1978) – Caetano Veloso
Dez anos após o lançamento de “Mamãe Coragem”, e novamente pela boca de Gal Costa, o compositor Caetano Veloso, desta feita sozinho, demonstrava a saudade do lar e da figura materna. Exilado em Londres pela ditadura militar imposta no Brasil a partir de 1964, o compositor experimentava e exprimia a solidão por palavras soltas que, quando condensadas, constroem um mosaico de desejos e intenções. A ideia de que o filho, mesmo homem feito, permanece criança no coração da mãe, também emerge desta poesia. A música foi regravada pelo próprio Caetano Veloso, Djavan e pela cantora Cida Moreira. Dona Canô, matriarca de Caetano e Bethânia, morreu em 2012, aos 105 anos.

“Bloco do Prazer” (frevo, 1979) – Fausto Nilo e Moraes Moreira
O compositor Fausto Nilo conheceu os integrantes do chamado “Pessoal do Ceará” ainda na década de 1970, e, desde então, passou a ser gravado por cantores como Fagner e Belchior, e, mais tarde, Chico Buarque, Ney Matogrosso, Caetano Veloso, Geraldo Azevedo, entre outros. No ano de 1979, o Trio Elétrico Dodô e Osmar, banda criada pelos inventores do trio elétrico na Bahia, lançou no Carnaval a música “Bloco do Prazer”, parceria de Nilo com o novo baiano Moraes Moreira. O frevo, em ritmo acelerado, é uma conclamação desenfreada à alegria e à liberdade. Gravada por Nara Leão, em 1981, tornou-se sucesso nacional na voz de Gal Costa, um ano depois, já na folia de 1982.

“O Amor” (tropicália, 1981) – Vladimir Maiakovski, Ney Costa Santos e Caetano Veloso
O poeta russo Vladimir Maiakovski inspirou Caetano Veloso e Ney Costa Santos a escreverem, a partir dos versos de “O Amor”, fragmento de “A Propósito Disto”, a canção intitulada com o mesmo nome da obra do autor original. Lançada por Gal Costa em 1981, no álbum e espetáculo “Fantasia”, segue, como se observa, os princípios do movimento tropicalista, de conferir um olhar nacional à luneta lançada para o mundo. Entre o que é dito de maior impacto destaca-se o refrão, precedido por “quero acabar de viver o que me cabe/ minha vida para que não mais existam amores servis”, até chegar ao auge: “Ressuscita-me para que ninguém mais tenha de sacrificar-se”, dizem.

“Festa do Interior” (frevo, 1981) – Abel Silva e Moraes Moreira
Após décadas, as festas juninas voltaram a ser tema de uma canção popular de sucesso no Brasil em 1981. Composta por Moraes Moreira e Abel Silva em ritmo de frevo, “Festa do Interior” foi lançada por Gal Costa. Com arranjo de Lincoln Olivetti integra “Fantasia”, um dos álbuns mais exitosos da carreira da cantora. A música não apenas puxou as vendagens, até então a maior de Gal, como foi a mais tocada no Carnaval. Curiosamente, o repertório de “Fantasia” vinha de um show de Gal em que a crítica foi implacável. Segundo a cantora, problemas técnicos foram determinantes para o fiasco daquela noite de estreia.

“Açaí” (MPB, 1981) – Djavan
“Açaí” é a primeira gravação de Gal para uma música de Djavan, compositor que viria a ser mais frequente nas fichas técnicas de seus discos posteriores. Do alagoano, ela gravaria, entre outras, “Faltando um Pedaço”, “Azul” e “Nuvem Negra”, dentre outras. De volta a “Açaí”, a música foi lançada por Gal em “Fantasia”, e recebeu uma versão do autor no ano seguinte, em 1982, para o disco “Luz”. Paradigma do simbolismo adotado por Djavan em suas canções, “Açaí” invadiu a internet em seu tempo de redes sociais, graças aos versos cujo sentido se acopla intrinsicamente ao som. “Zum de besouro um imã”, diz.

“Chuva de Prata” (balada, 1983) – Ed Wilson e Ronaldo Bastos
Depois de mais de duas décadas na gravadora Polygram, Gal Costa assina com a então RCA. É pela nova gravadora que lança “Profana” (1984), onde abre espaço para músicas de apelo mais popular. “Chuva de Prata” é o grande sucesso do disco, junto com uma versão para uma música de Stevie Wonder, “Lately”, que, na letra em português de Ronaldo Bastos, virou “Nada Mais”. Também de Ronaldo Bastos, com Ed Wilson, é o sucesso “Chuva de Prata”, que mereceu as regravações de Paula Fernandes, Sandy e do grupo Roupa Nova. Porém, a primeira gravação foi feita em 1983, pelo tecladista Lafayette.

“Vaca Profana” (MPB, 1984) – Caetano Veloso
“Vaca Profana” foi escrita por Caetano Veloso a pedido de Gal Costa. A música foi lançada em “Profana”, de 1984. Censurada por ferir a moral e os bons costumes, de acordo com a Divisão de Censura de Diversões Públicas, “Vaca Profana” é o próprio enigma posto sobre as mulheres pelo mundo. Fazendo uma analogia ao que é considerado sagrado e profano, a letra tece uma crítica que vai desde os dogmas religiosos até as diversas culturas, mas sempre ligada a uma única identidade: a mulher. Caetano colocou Gal no centro da canção, que fala sobre tudo aquilo que ela não era permitida a ser aos olhos e bocas de muitos que seguiam o jeito tradicional da família brasileira. A música fala sobre a mulher sagrada, aquela que nutre do melhor alimento, que gera e coloca seus cornos para fora e acima da manada. (Texto de Ana Clara Fonseca)

“Um Dia de Domingo” (balada, 1985) – Michael Sullivan e Paulo Massadas
Mesmo tendo gravado em dias diferentes no estúdio, o primeiro e único encontro de Gal e Tim Maia em disco rendeu um grande hit e uma boa vendagem para Gal, com mais de 600 mil cópias vendidas do álbum “Bem Bom” (1985), que continha a gravação para “Um Dia de Domingo”. A canção leva a assinatura dos hitmakers dos anos 1980, Michael Sullivan e Paulo Massadas, em arranjo de outro nome onipresente em sucessos daqueles anos, o músico Lincoln Olivetti. A música deveria ser lançada com clipe, mas a produção teve que adiar o registro porque o vestido de Gal não estava pronto. Dois dias depois, ao ligarem para Tim, ele devolveu: “Meu vestido não ficou pronto”. E não compareceu à gravação. Não houve clipe no Fantástico e o encontro só se deu no programa de Chacrinha. Nelson Motta relata o episódio.

“Sorte” (MPB, 1985) – Celso Fonseca e Ronaldo Bastos
Violonista habituado a trabalhar com nomes de peso da MPB, como Gilberto Gil e Marisa Monte, o carioca Celso Fonseca compôs, em 1985, uma das pérolas do seu repertório. “Sorte” ganhou letra do poeta Ronaldo Bastos antes de receber as vozes de Gal Costa e Caetano Veloso, no disco “Bem Bom”, lançado pela baiana, e se transformou em sucesso imediato. A suavidade da letra e da melodia logo conquistou os ouvintes, e mereceu uma regravação de Ney Matogrosso. “Tudo de bom que você me fizer/ Faz minha rima ficar mais cara/ O que você faz me ajuda a cantar/ Põe um sorriso na minha cara…”, diz.

“Brasil” (rock, 1988) – Cazuza e George Israel
Bem ao estilo de Cazuza, a música “Brasil”, parceria com George Israel, apresenta versos tão sintéticos quanto rascantes, um verdadeiro nocaute poético aos que se apoderavam do país em benefício próprio. “Brasil, mostra a tua cara!/ Quero ver quem paga/ Pra gente ficar assim!/ Brasil, qual é o teu negócio?/ O nome do teu sócio?/ Confia em mim”. Após enumerar uma série de abusos e privações sofridas pela população brasileira, Cazuza deixa claro que o protesto e a indignação são, na verdade, uma declaração de amor. Lançada pelo compositor em seu álbum “Ideologia”, de 1988, ela foi regravada por Gal Costa no mesmo ano e virou tema de abertura da novela “Vale Tudo”.

“Cabelo” (samba-rock, 1989) – Jorge Ben Jor e Arnaldo Antunes
A aptidão para encontros musicais de Arnaldo Antunes começou a se expressar quando ele ainda integrava os Titãs. Em 1989, fazendo parte do grupo paulista, Arnaldo criou parceria com Jorge Ben Jor, que seria lançada no disco “Benjor”, de 1989. “Cabelo” foi um estouro imediato e logo chamou a atenção de Gal Costa, que a regravou no ano seguinte, no LP “Plural”. Em 2010, Arnaldo e Jorge Ben Jor realizaram um inédito dueto da canção, no álbum “Ao Vivo Lá Em Casa”, que gerou CD e DVD. Com versos aparentemente simples, a letra abrange questões amplas, que vão do racismo ao existencialismo. “Cabelo, cabeleira, cabeluda, descabelada/ Quem disse que cabelo não sente/ Quem disse que cabelo não gosta de pente/ Cabelo quando cresce é tempo/ Cabelo embaraçado é vento”, conceitua o samba-rock.

“Holofotes” (MPB, 1990) – João Bosco, Antonio Cicero e Wally Salomão
Ao dar um tempo na parceria com Aldir Blanc, o bom-mineiro João Bosco não deixou barato em termos de poesia, e recrutou Wally Salomão e Antonio Cicero para auxiliarem, com os textos impecáveis que detinham, as suas melodias. Esse trio de ouro da música brasileira compôs, em 1990, a música “Holofotes”, lançada por Gal Costa no álbum “Plural”. O próprio João Bosco registrou a sua versão um ano depois, no disco “Zona de Fronteira”. Valéria Oliveira também a regravou, em 2004. Ela voltou ao repertório de João Bosco em “Mano Que Zuera”, álbum lançado em 2017, renovando o seu poder de encantamento. “Ar, pedra, carvão e ferro/ Eu lhe ofereço/ Essas coisas que enumero/ Quando fantasio/ É quando sou mais sincero”, dizem os expressivos versos dos poetas.

“Piano na Mangueira” (1993) – Tom Jobim e Chico Buarque
A sofisticação da música de Tom Jobim aliada à poesia de Chico Buarque se pôs a serviço da mais celebrada escola de samba em canções: a Estação Primeira de Mangueira. Desse encontro nasceu “Piano na Mangueira”, lançada por Chico no álbum “Paratodos”, em 1993. Posteriormente, seria regravada pelo próprio Tom, Gal Costa, Leila Pinheiro, Zimbo Trio, Hamilton de Holanda, Jamelão e muitos outros. A letra destaca as figuras folclóricas do morro, como o malandro que se veste de branco e chapéu de palha, e a cabrocha que “pendura a saia no amanhecer da quarta-feira”. Para completar, sobe o piano!

“Socorro” (blues, 1994) – Arnaldo Antunes e Alice Ruiz
Apontado como um poeta do rock nacional, Arnaldo Antunes se uniu a outra grande poeta para compor, em 1994, uma de suas mais expressivas canções. “Socorro” é resultado da parceria de Arnaldo com Alice Ruiz, que foi casada com Paulo Leminski. Em clima de blues, principalmente no canto rascante de Cássia Eller, a música ganhou a sua primeira gravação no disco homônimo lançado pela cantora. Arnaldo Antunes só lançou a sua versão quatro anos depois, em 1998, no elogiado álbum “Um Som”. Já Alice a registrou em 2004. Comprovando o poder de fascinação da música, Gal Costa a regravou em 2002. “Socorro, não estou sentindo nada/ Nem medo, nem calor, nem fogo/ Não vai dar mais pra chorar/ Nem pra rir/ Socorro, alguma alma, mesmo que penada/ Me empreste suas penas/ Já não sinto amor nem dor/ Já não sinto nada”, proclamam os versos que dispensam maiores explicações. Basta ouvir.

“Onde Deus Possa Me Ouvir” (balada, 2002) – Vander Lee
A voz cristalina, quase transparente de Gal Costa, se afinou perfeitamente com a lírica de “Onde Deus Possa Me Ouvir”. A baiana foi a primeira a gravar essa balada espirituosa – até mais do que espiritual –, de Vander Lee, revelando ao mundo a beleza de uma de suas mais delicadas canções, capaz de enternecer o coração mais ateu. No ano seguinte, Vander Lee concedeu a sua gravação para o clássico, revisitado por Leila Pinheiro, Simone, Elba Ramalho e o Padre Fábio de Melo, e outros. O irmão Marcos Catarina também costuma canta-la.

“Quando Você Olha pra Ela” (MPB, 2015) – Mallu Magalhães
Apontada como espécie de precursora da chamada “MPB Fofa”, Mallu Magalhães, a exemplo de Anavitória e Ana Vilela, primeiro chamou a atenção do público com vídeos divulgados na internet. Hoje, ela acumula quatro álbuns solo e uma carreira consolidada no mercado fonográfico. “Sim, vejo uma leveza na minha composição, uma ausência de agressividade e vejo que trabalho, geralmente, com um ânimo mais contemplativo, uma intenção de compreender e ver beleza na vida, com alguma melancolia”, conta Mallu, que, em 2015, garantiu o hit “Quando Você Olha pra Ela” a Gal Costa, no CD “Estratosférica”.

“Sem Medo Nem Esperança” (rock, 2015) – Antonio Cicero e Arthur Nogueira
Gravado por Gal Costa em 2015, com “Sem Medo Nem Esperança” (feita com Antonio Cicero), e que batizou o respectivo álbum, Arthur Nogueira se vale de um ensinamento do escritor irlandês Oscar Wilde para dizer que “o trabalho do poeta é para que as pessoas não se esqueçam de olhar as estrelas”. “Caso contrário, tudo é treva”. O paraense vai além: “A poesia, especialmente a poesia escrita, nunca teve grande capacidade de influir no mundo contemporâneo a ela. Porém, se não pode mudar o mundo concretamente, o sentido do poema é, como diz Antonio Cicero, permitir o acesso a novos mundos, a outras dimensões do ser”, corrobora Nogueira, que também abriu parcerias recentes com Fernanda Takai, Zélia Duncan e Adriana Calcanhotto.

“Cuidando de Longe” (balada, 2018) – Marília Mendonça, Juliano Tchula, Junior Gomes, Vinicius Poeta
“Eu sou uma cantora que gosta de inovar, de dar saltos na minha carreira, ousar, não tenho medo de mudar e de gravar outros estilos e criar novos caminhos”, afirma Gal Costa. Em 2018, o produtor Marcus Preto sugeriu que ela gravasse uma música de Marília Mendonça, fenômeno do segmento conhecido como sertanejo universitário que viu a presença feminina dar um salto na última década. Compositora de hits como “Infiel” e “Amante Não Tem Lar”, Marília assina, com Juliano Tchula, Junior Gomes e Vinicius Poeta, a balada romântica “Cuidando de Longe”, e realiza um dueto com Gal na faixa.

*Bônus
“Espinha de Bacalhau” (choro, 1936) – Severino Araújo

Nascido em Limoeiro, no interior de Pernambuco, Severino Araújo mudou-se para João Pessoa, na Paraíba, ainda na década de 30. Filho de um mestre de banda, ele logo adotou a clarineta como instrumento predileto. Em 1936, o futuro maestro da Orquestra Tabajara, que dirigiu por décadas, compôs o maior de todos os sucessos: “Espinha de Bacalhau”, um choro ligeiro como os melhores do gênero. Em 1981, a composição ganhou letra de Fausto Nilo e interpretação de Ney Matogrosso e Gal Costa. Também foi regravada por Dominguinhos e Altamiro Carrilho. Morando no Rio de Janeiro a partir dos anos 40, Severino comandou sua Orquestra em discos antológicos ao lado de Jamelão, em homenagem a Lupicínio Rodrigues. Outro admirador da obra de Severino é o irreverente Jards Macalé, e que criou o belo “Choro de Archanjo”.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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