*por Raphael Vidigal Aroeira
“Ah, quantas lágrimas eu tenho derramado
Só em saber que não posso mais
Reviver o meu passado
Eu vivia cheio de esperança e de alegria
Eu cantava, eu sorria” Manacéia
O instrumentista Henrique Cazes dividiu, com Cristina Buarque, dois discos dedicados a Noel, e assim ele define a amiga: “Vivendo com a simplicidade dos sábios na ilha de Paquetá, pedalando sua bicicleta orgulhosamente ornada com o escudo do Fluminense, Cristina curte netos, filhos, gatos e amigos, não necessariamente nessa ordem”, destaca, completando que ela tem preferência por “uma cerveja sem frescura”, nas palavras dessa própria cantora paulistana.
Nascida em São Paulo, no dia 23 de dezembro de 1950, irmã de Chico Buarque e Ana de Hollanda, também ligados à música, filha do historiador Sérgio Buarque de Holanda (autor do fundamental “Raízes do Brasil”), Cristina traçou caminho próprio nas artes, sempre ligada umbilicalmente ao samba, de preferência originário e esquecido, pronto para seu resgate. Entre os compositores que interpretou estão Ismael Silva, Paulo Vanzolini e Noel Rosa.
“Cordiais Saudações” (samba, 1931) – Noel Rosa
Nascido em Piracicaba, no interior de São Paulo, o cantor Roberto Seresteiro sempre esteve atento ao passado, e se tornou fã de artistas como Geraldo Pereira e Ivon Curi, além de Mário Reis, sua grande referência de canto. A estreia em disco, no entanto, teve como título uma música de Noel Rosa, “Cordiais Saudações”. O samba foi lançado em 1931, pelo próprio autor com o Bando de Tangarás, e obteve regravações posteriores de Marília Batista, Silvio Caldas, Cristina Buarque, Henrique Cazes, e do conjunto Garganta Profunda.
“Para Me Livrar do Mal” (samba, 1932) – Noel Rosa e Ismael Silva
São 35 os registros contabilizados de “Para Me Livrar do Mal”, samba de Noel Rosa e Ismael Silva lançado em 1932, na voz de Francisco Alves. Aliás, em muitos sambas da dupla, Francisco Alves também aparece como compositor, o que revela um expediente comum na época: pagar para ter o nome incluso na parceria. Em troca, o cantor ou radialista consagrado, oferecia a oportunidade de tocar no rádio. “Para Me Livrar do Mal” ganhou, ao longo do tempo, as vozes de Dóris Monteiro, Miltinho, Marília Batista, Aracy de Almeida, Martinho da Vila, Cristina Buarque, Ivan Lins, Elza Soares, Ciro Monteiro, MPB-4, Os Originais do Samba, e outros, o que só comprova o seu sucesso permanente…
“Deixa de Ser Convencida” (samba, 1935) – Noel Rosa e Wilson Batista
Embora tenha ficado com a vilania na disputa, por posteriores respostas menos inspiradas, Wilson Batista foi primeiramente provocado por Noel Rosa, que questionou a pose de malandro do garoto de Campos instalado no Rio de Janeiro com “Rapaz Folgado”, belo samba. “Lenço no Pescoço”, composto em 1933, exibe o modo de vida que Wilson acalentava para si. Além disso, denuncia a dificuldade do trabalhador honesto para se sustentar. Dois anos depois, Wilson e Noel Rosa compuseram o samba “Deixa de Ser Convencida”, que permaneceu inédita até a gravação de Cristina Buarque, feita no ano 2000.
“Tarzan, o Filho do Alfaiate” (samba, 1936) – Noel Rosa e Vadico
Composta para o filme “Cidade Mulher”, de Humberto Mauro, “Tarzan, o Filho do Alfaiate”, é um samba de Noel Rosa e Vadico, de 1936, cujo título parodia a saga de “O Filho das Selvas”. A canção fazia troça com o hábito que se tornou comum entre os homens da época de se utilizarem se enchimentos no paletó a fim de parecerem mais musculosos. Lançada por Almirante, a música recebeu regravações de Zeca Pagodinho, Djavan, Cristina Buarque e Henrique Cazes.
“Século do Progresso” (samba, 1937) – Noel Rosa
Aracy de Almeida tornou-se conhecida de toda uma geração como a jurada mal-humorada de programas de calouros comandados por Silvio Santos e Chacrinha. A pecha, no entanto, não faz justiça à sua história. “Araca”, apelido que ganhou do cronista e compositor Antônio Maria, era a cantora predileta de Noel Rosa, e uma das mais requisitadas na Era de Ouro do Rádio. Foi ela quem lançou, em 1937, “Século do Progresso”, samba de Noel que versa sobre a violência urbana do Rio de Janeiro, como uma espécie de crônica. A música recebeu regravações de Elizeth Cardoso, Ivan Lins, Cristina Buarque, e outros.
“Teu Riso Tem…” (samba, 1938) – Wilson Batista e Roberto Martins
Era notória nos arredores da Lapa, a fama de conquistador de Wilson Batista. Apesar disso, ele fixou residência no amor, ao se casar com Marina Batista e ter com ela três filhos. No samba de 1943, “Louco (Ela é Seu Mundo)”, em parceria com Henrique de Almeida, Wilson apresenta a loucura como a condutora oficial do sentimento menos previsível do homem.
Com versos que descrevem a agonia do protagonista, o compositor apresenta uma bela letra, que acompanha os passos sem rumo. Lançada por Orlando Silva, ela ganhou regravação de Nelson Gonçalves, que revive com maestria todas as nuances da melodia, João Nogueira, Noite Ilustrada, Joyce, Cristina Buarque, Aracy de Almeida, João Gilberto, Elza Soares entre outros, reafirmando a sua qualidade. Cristina Buarque ainda gravou “Teu Riso Tem…”, de Wilson e Roberto Martins, lançado em 1938, pelo seresteiro Silvio Caldas.
“Sou Eu Que Dou as Ordens” (samba, 1946) – Heitor dos Prazeres
Com Cartola, o músico e pintor Heitor dos Prazeres compôs “Consideração”, gravada por Beth Carvalho. “Canção do Jornaleiro”, outro êxito, fez sucesso com Wanderley Cardoso. Já “Noite Enluarada” ganhou a voz de Pery Ribeiro, filho de Dalva de Oliveira e Herivelto Martins, parceiro no samba. “Sou Eu Que Dou as Ordens” foi lançada por Aracy de Almeida e regravada pela sempre atenta Cristina Buarque. A nova geração também se voltou para Heitor dos Prazeres. Pedro Miranda, Julieta Brandão e Juliana Amaral regravaram pérolas pouco conhecidas de sua obra. Até hoje, é considerado um sambista histórico.
“Apaga o Fogo, Mané” (samba, 1956) – Adoniran Barbosa
Adoniran Barbosa, poeta do chapéu, do terno, do cachecol e da gravata borboleta. Afinal, vivia na cidade da garoa e precisava se proteger da chuva e do vento. Mas a cidade da garoa era para ele muito mais do que chuva e vento, eram as pessoas humildes que viam seus trens, seus sonhos, seus amores irem embora. Adoniran Barbosa era um cronista irreverente, que cantava uma cidade que ia embora e aos poucos deixaria de existir para dar lugar ao progresso. Mas o que jamais iria embora seria sua música, sua maloca, seu trem das onze que ele eternizou em versos. Em 1956, os Demônios da Garoa lançaram “Apaga o Fogo, Mané”, um samba regravado por Cristina Buarque.
“Sempre Teu Amor” (samba, 1963) – Manacéia
“Sempre Teu Amor” apareceu pela primeira vez em disco no ano de 1963, no álbum “Grandes Sucessos da Portela”, na interpretação de Abílio Martins e Zezinho. Em 1976, dois anos depois de estourar com o clássico “Quantas Lágrimas”, a sempre atenta Cristina Buarque voltou à obra de Manacéia. No disco “Prato e Faca”, ela resgatou “Sempre Teu Amor”, ampliando o acesso a essa composição de teor romântico que, como anuncia o título do disco de Cristina, lança mão do prato e da faca no início de sua percussão. A faixa traz a participação da Velha Guarda da Portela. A produção do álbum ficou a cargo de Fernando Faro. Em 1988, Beth Carvalho regravou a música no disco “Alma do Brasil”. “Eu não sou ninguém/ Como tu sabes amor/ Só tenho a vida”, canta.
“Chorava no Meio da Rua” (samba, 1967) – Paulo Vanzolini
Paulo Vanzolini descamba a maioria das gravações feitas com seu repertório. Delineia que Maria Bethânia é “muito mais uma declamadora do que uma cantora”, e que a suposta homenagem de Caetano Veloso ao introduzir partes de “Ronda” em “Sampa”, está mais para plágio. No entanto, o compositor-cientista rende-se ao charme do canto de Cristina Buarque, que desaforada, teve a audácia de modificar uma composição sua, um fato que, segundo ele próprio, o deixa bastante irritado. Só que dessa vez não foi o caso, Vanzolini acatou a sabedoria da irmã mais nova de Chico Buarque, segundo Cartola, “cantora pra compositor”, que entoou em 1967 os versos do samba assumido: “Se eu tivesse que chorar, chorava no meio da rua…”.
“Beija-Flor” (samba, 1968) – Nelson Cavaquinho, Noel Silva e Augusto Thomaz Jr.
Os versos de uma das mais tocantes músicas de Nelson Cavaquinho deram a deixa perfeita para que em 1985, Cristina Buarque e Carlinhos Vergueiro pudessem arquitetar as matizes de “Flores em Vida”, disco em homenagem ao sambista que trazia as participações de Chico Buarque, Paulinho da Viola, João Bosco, Beth Carvalho, Toquinho, além do próprio Nelson cantando. Vergueiro e Cristina gravaram juntos uma das músicas menos conhecidas do repertório de Nelson Cavaquinho, o samba “Beija-Flor”, lançado pelo MPB-4.
“Quantas Lágrimas” (samba, 1970) – Manacéia
Produzido por Paulinho da Viola, o disco “Portela, Passado de Glória”, foi lançado em 1970. O trabalho apresentou composições dos mais ilustres nomes da Escola de Samba na interpretação da Velha Guarda da Portela. Entre elas, a música “Quantas Lágrimas”, que, como o próprio disco, não recebeu a atenção merecida e passou despercebida. Felizmente, o Brasil tem Cristina Buarque que, quatro anos depois, em 1974, estreou em disco e chamou a atenção do país para a beleza de “Quantas Lágrimas”. A música se transformou no maior sucesso da carreira de Cristina e de Manacéia, e recebeu mais de 40 regravações, passando pelas vozes de Teresa Cristina, Zélia Duncan, Noite Ilustrada, Paulinho da Viola, Marisa Monte, Nana Caymmi, e etc.
“Carro de Boi” (samba, 1976) – Manacéia
No mesmo disco de 1976 em que deu voz a “Sempre Teu Amor”, Cristina Buarque sacou da cartola outra composição emblemática de Manacéia. “Carro de Boi” também conta com a participação de uma esperta cuíca em seu arranjo. A música ganhou o registro de Beth Carvalho um ano depois, em 1977, no álbum “Nos Botequins da Vida”. Beth voltou à canção em 1987, no disco ao vivo gravado em Montreux, na Suíça. A música parte de uma ideia simples, composta com poucos versos e uma melodia envolvente. “Meu carro de boi ficou no lamaçal/ Vai buscar meu boi, vai buscar meu boi, menino”, diz a letra. Com a gravação de Beth, Manacéia passava a incluir mais uma sambista de estirpe no rol de cantoras que regravaram a sua obra, como Cristina e Marisa.
“Mente” (samba-canção, 1978) – Paulo Vanzolini e Eduardo Gudin
“Para cantar nos meus discos é obrigatório ter duas qualidades: ser meu amigo e ter bom caráter”. É essa afirmativa que enchem as obras dedicadas à Paulo Vanzolini de músicos consagrados e ilustres desconhecidos do grande público, com a realeza de gozarem do prestígio da amizade do compositor. Luiz Carlos Paraná comandou com ele o famoso bar “Jogral”, um dos primeiros de São Paulo dedicado à música, e foi o responsável pelo abatimento gradual de Vanzolini após sua morte, em 1970. Adauto Santos tornou-se o responsável por levar às notas o canto que ele guardava na cabeça.
Poucos outros tiveram tamanho privilégio, dentre eles, Eduardo Gudin, que em 1978 dividiu duas composições com o compositor-poeta, “Longe de casa”, e “Mente”, reiterada por Clara Nunes no mesmo ano, com a acentuação perfeita das contradições fetichistas: “Mente, ainda é uma saída, é uma hipótese de vida, mente, sai dizendo que me ama… Pois na mentira, meu amor, crer eu não creio, só pretendo que de tanto mentir, repetir que me ama, você mesma acabe crendo”. Cristina Buarque também deu sua versão dessa bela música.
“Coração Leviano” (samba, 1978) – Paulinho da Viola
Nomeado “Ministro do Samba” por Batatinha em música com tal título, Paulinho da Viola aprendeu em casa os ensinamentos do ritmo. Filho de Benedito Faria, integrante do conjunto “Época de Ouro”, que era conduzido por ninguém menos do que Jacob do Bandolim, o filho mais velho do chorão célebre uniu as influências do chorinho ao samba para criar uma maneira única e inconfundível de cantar e compor, assimiladas à sua própria personalidade.
Por mais que cante desenganos, desamores, fracassos, Paulinho mantém certa calma na voz que é capaz de tranquilizar os corações mais aflitos. “Coração leviano”, um samba lançado no ano de 1978, reclama com a elegância típica do autor da deslealdade e ingratidão de quem “fere quem tudo perdeu”. E Cristina Buarque a regravou, no álbum “Ninho de Cobras Ao Vivo”.
“Portela na Avenida” (samba, 1982) – Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro
A portelense Clara Nunes vivia pedindo ao marido, Paulo César Pinheiro, um samba em homenagem à sua escola. Acontece que o poeta sentia-se meio inibido para a tarefa, pois, além de ter um coração mangueirense, achava que já existia uma obra definitiva sobre a Portela, o samba “Foi um Rio que Passou em Minha Vida”, de Paulinho da Viola. Mesmo assim, para agradar à mulher, começou a pensar no assunto e até criou uma pequena célula melódica que não conseguiu desenvolver a contento.
Um dia, quando menos esperava, encontrou a idéia numa sala de sua própria casa, onde Clara havia montado um altar para as suas devoções: a imagem de Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, uma santa negra com o seu manto azul e branco (as cores da Portela), o pombo de asas abertas, representando o Espírito Santo (a águia portelense), enfim, a combinação do místico com o profano. A música foi regravada por Cristina Buarque.
“Injuriado” (samba, 1998) – Chico Buarque
Se a história da música popular brasileira possui uma linhagem, nela não pode faltar o nome de Chico Buarque de Hollanda. Filho do historiador Sérgio Buarque – e irmão das também cantoras Miúcha, Cristina Buarque e Ana de Hollanda – o garoto prodígio da canção nacional, como era de se esperar, começou cedo.
Enfileirou sucessos desde o princípio da carreira, nos anos 1960, auge da bossa nova, passando por vários ritmos, gêneros e inclusive movimentos musicais, alinhavando parcerias com nomes como o poeta Vinicius de Moraes, o maestro Tom Jobim, o dramaturgo Ruy Guerra e o tropicalista Gilberto Gil, além de outros compositores de peso, tais como Milton Nascimento, Francis Hime e Edu Lobo. Em 1998, lançou o saboroso samba “Injuriado”, que interpretou ao lado da irmã Cristina Buarque, sambista de prima.
“Se Um Samba Vem” (samba, 2005) – Teresa Cristina
Se o cantor e compositor Cartola (1908-1980) só foi descoberto pelo mercado fonográfico e pelo grande público aos 65 anos de idade, quando gravou seu primeiro disco, para a cantora Teresa Cristina o encontro definitivo aconteceu ainda mais adiante, próximo à morte do sambista. “Eu me lembro de ouvir ‘As Rosas Não Falam’ e ‘O Sol Nascerá’ quando era pequena. Mas comecei a estudá-lo com mais atenção em 1980. Desde então, eu sempre tive uma admiração muito grande e passei a reconhecê-lo como um gênio da música brasileira”, exalta. Seguindo essa tradição, Cristina Buarque gravou, em 2005, a bonita composição “Se Um Samba Vem”, de autoria de Teresa Cristina.
“Lenha na Fogueira” (samba, 2005) – Mauro Duarte e Paulo César Pinheiro
O ritual se repete toda manhã. Paulo César Pinheiro toma café, lê os jornais e, sentado diante da mesa, coloca sobre ela folhas em branco, à espera da inspiração que inevitavelmente sempre vem, pelo menos há mais de cinco décadas, quando ele compôs o primeiro verso, com 13 anos. “Eu me lembro de não saber o que estava acontecendo comigo, fiquei agoniado, nervoso, então eu vi um papel e um lápis, e depois que escrevi foi que me acalmei e consegui dormir”, conta o poeta, letrista, melodista, dramaturgo e cantor, entre outras habilidades que um dos mais prolíficos artistas brasileiros da atualidade vez ou outra explora. Entre as parcerias com Mauro Duarte está “Lenha na Fogueira”.
“Samba do Eleitor” (samba, 2008) – Mauro Duarte e Adélcio Carvalho
A música brasileira, assim como sua gente, é mista e abarca uma variedade de gêneros. Dos mais diferentes tipos, passando por inúmeros trejeitos, atravessando gerações e ritmos, os compositores da terra tematizaram sobre política, de maneira crítica, panfletária, indignada ou persuasiva.
O que também traz à tona outra característica rica e importante, fundamental, tanto para a música quanto para a política: a diversidade de opiniões que compõe uma democracia. Eleja o seu candidato preferido, eles desfilam com seus galardões. Noel Rosa, Cazuza, Adoniran Barbosa, Lobão, Raul Seixas, Nássara, João do Vale, Renato Russo, Arlindo Marques apresentam propostas. Outro exemplo é o “Samba do Eleitor”, de Mauro Duarte e Adélcio Carvalho.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.