Relembre sucessos de Cartola, que fundou a escola de samba Mangueira

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos tão mesquinhos
Vai reduzir as ilusões a pó” Cartola

Angenor de Oliveira, o popular Cartola, nasceu no dia 11 de outubro de 1908, e morreu no dia 30 de novembro de 1980, aos 72 anos. Nascido no bairro do Catete, Cartola logo se mudou para o morro de Mangueira com a família, e ajudou a fundar a tradicional escola de samba do Carnaval carioca. O apelido de Cartola veio da mania de usar um chapéu-coco para se proteger do cimento enquanto trabalhava como servente de obra. Apesar do talento, Cartola demorou a ser reconhecido, e só gravou o seu primeiro disco em 1974, aos 66 anos. Entre os seus maiores sucessos, estão clássicos da canção popular brasileira, como “As Rosas Não Falam”, “O Mundo É Um Moinho”, “Acontece”, “O Sol Nascerá”, “Cordas de Aço”, “Alvorada”, “Tive Sim” e muitas outras.

“Que Infeliz Sorte!” (samba, 1929) – Cartola
Cartola faleceu em 1980, aos 72 anos. Trabalhou como lavador de carros e foi encontrado exercendo o ofício pelo jornalista Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, que admirava o autor de “As Rosas Não Falam” desde antes de seu estrelato. A partir deste encontro e resgate, já que sua primeira canção foi gravada em 1929 por Francisco Alves (de nome “Que Infeliz Sorte!”), Cartola finalmente alcançou o sucesso, tendo sido gravado por nomes como Nara Leão, Elis Regina, Beth Carvalho, Clara Nunes, Alcione, Cazuza e Jair Rodrigues, entre outros.

“Não Quero Mais Amar a Ninguém” (samba, 1936) – Cartola, Carlos Cachaça e Zé da Zilda
Com o sucesso da escola de samba da Mangueira, Cartola se tornou conhecido de figuras famosas como os cantores do rádio Mário Reis e Francisco Alves, o sambista e poeta da Vila, Noel Rosa e o maestro Heitor Villa-Lobos. No ano de 1936, sua música “Não Quero Mais Amar a Ninguém”, em parceria com o amigo Carlos Cachaça e o bamba Zé da Zilda, recebeu prêmio no desfile da escola, e um ano depois foi gravada por Aracy de Almeida. Mestre de harmonia da Estação Primeira, Cartola vendia seus sambas, mas não abria mão da autoria.

Por essa época, ele uniu seus trapos com Deolinda, uma mulher mais velha, casada e com uma filha. Vizinha de Cartola, Deolinda o ajudava quando estava doente, e aos poucos o carinho que nutria foi se transformando em outro sentimento. Os dois resolveram morar juntos em um barraco com lugar para a filha e o pai de Deolinda. Com o passar do tempo, a casa passou a receber mais moradores, e um dos mais constantes era justamente Noel Rosa, nas noites em que tomava porres homéricos ao lado de Cartola.

Por uma triste ironia do destino, os anjos do morro levaram Deolinda para longe do menino que ela aprendeu a cuidar e a amar, e a música que ele havia composto para o Carnaval simbolizava agora o início de sua longa quarta-feira de cinzas. Cartola estava indo embora de Mangueira, desiludido com a vida e com o samba, e sentenciava: “Não quero mais amar a ninguém/ Não fui feliz, o destino não quis/ O meu primeiro amor/ Morreu como a flor, ainda em botão/ Deixando espinhos que dilaceram meu coração…”.

“Consideração” (samba, 1949) – Cartola e Heitor dos Prazeres
Heitor dos Prazeres nasceu no Rio de Janeiro, no dia 23 de setembro de 1898, e morreu na mesma cidade, no dia 4 de outubro de 1966, aos 68 anos. Passou a adolescência entre a Praça Onze e o Mangue, convivendo com chorões e bambas do samba. Bom de “pernada”, Heitor dos Prazeres passou a ser respeitado nas rodas de samba, e contribuiu para o surgimento de diversas escolas carnavalescas, como Mangueira, Portela e a pioneira Deixa Falar. Com Cartola, compôs “Consideração”, lançada por Beth Carvalho, no ano de 1980.

“Escurinha” (samba, 1952) – Geraldo Pereira e Arnaldo Passos
Geraldo Pereira criou, em 1952, uma interessante personagem do cancioneiro brasileiro. Ele próprio já tinha experiência nessa área ao trabalhar como ator numa peça de teatro que escreveu e dirigiu, e ao aparecer em filmes interpretando a si mesmo, como em “Brasil na Batucada”, de Luiz Barros, em que proclamava: “Não acabou a Praça Onze não!”, por ideia de Herivelto Martins.

Essa habilidade, portanto, de observar personalidades típicas do morro, já havia sido demonstrada por ele diversas vezes, mas nunca com tanta desenvoltura quanto no samba “Escurinha”, parceria com Arnaldo Passos. Na história, Geraldo desenvolve o embate entre o malandro apaixonado e a donzela requisitada: “Escurinha tu tem que ser minha de qualquer maneira, te dou meu boteco, te dou meu barraco, que eu tenho no morro de Mangueira, comigo não há embaraço”. O cantor fez questão de lançar a preciosidade, mais tarde revigorada por Cartola, João Nogueira, Jorge Veiga, Zizi Possi, e outros.

“Pranto de Poeta” (samba, 1957) – Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito
Em suas andanças pelos subúrbios do Rio de Janeiro, Nelson Cavaquinho frequentemente amarrava seu cavalo, conhecido como Vovô, em uma árvore no Morro de Mangueira e ia ao encontro de sambistas como Zé da Zilda, Carlos Cachaça e Cartola. Desde cedo conhecedor da alta malandragem carioca, representada por nomes como Brancura, Edgar e Camisa Preta, Nelson tornou-se amigo dos sambistas do morro a partir do emprego que conseguiu na polícia.

Ele Ficava horas bebendo cachaça e conversando com Cartola. Numa dessas, seu cavalo acabou fugindo e retornou sozinho para o Batalhão, o que ocasionou mais uma dentre as muitas prisões de Nelson, que, habituado a ficar dias sem aparecer, aproveitava o tempo na cela para compor. Sobre esse episódio, Nelson diria em entrevista: “E não é que o danado do cavalo tava rindo de mim quando cheguei no Batalhão?”.

No ano de 1938, antes de ser expulso da corporação, Nelson conseguiu dar baixa em seu cargo na polícia, separou-se de Alice e se entregou definitivamente ao samba e à boêmia. Em 1952, foi morar em Mangueira, onde permaneceu por um ano e meio, e, em 1968, dividiu com Cartola, Clementina de Jesus, Carlos Cachaça e Odete Amaral os vocais de “Fala Mangueira”, produzido por Hermínio Bello de Carvalho.

Já ao lado de Guilherme de Brito, ele compôs a música que seria lançada em 1957, por Lucy Rosana, e gravada em 1965 por Nara Leão, depois interpretada em dueto nada sóbrio de sua parte por ele e Cartola, em 1977: “Pranto de Poeta”. A música exalta a Mangueira onde ele criou raízes e conheceu geniais sambistas que nortearam sua trôpega trajetória de brilho infinito.

“Ciúme Doentio” (samba, 1962) – Nelson Sargento e Cartola
Nelson Sargento sempre foi bom de prosa, capaz de frases lapidares, como, por exemplo: “Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve”. Admirador confesso da obra do amigo, Nelson Sargento se tornou uma espécie de guardião de sua memória, participando de vários tributos e mantendo acesa a chama de sambas que se tornaram clássicos. Como não poderia deixar de ser, ele também se tornou parceiro de Cartola, em músicas menos conhecidas, mas igualmente belas, como “Deixa”, “Samba do Operário”, “Velho Estácio” e “Vim Lhe Pedir”.

Também com Cartola criou, em 1962, o samba “Ciúme Doentio”, que fala sobre a complicada relação com Ana Maria, “bonita mulher, mas de gênio, uma fera”. O samba só veio à luz muitos anos depois, nos anos 2000, quando Nelson o interpretou com Zeca Pagodinho, que já o apresentava em shows. Segundo Nelson Sargento, “Zeca queria gravar ‘Falso Amor Sincero’, mas eu não deixei”.

“O Sol Nascerá [A Sorrir]” (samba, 1964) – Cartola e Elton Medeiros
Passado o período noturno na vida de Cartola, ele agora vivia uma nova fase. Morando com Dona Zica, recebia diariamente a visita de amigos dispostos a curtir um bom samba. A ideia foi se transformando naquela que seria a casa mais famosa do Rio de Janeiro na década de 1960. Dona Zica cuidava da cozinha, enquanto Cartola cuidava do violão. Nascia o Zicartola, frequentado por bambas do morro e pela intelectualidade carioca que esboçava os primeiros passos da bossa nova.

Para garantir a qualidade dos espetáculos, Cartola chamou o amigo Zé Kéti para ser diretor artístico, e Hermínio Bello de Carvalho criou a Ordem da Cartola Dourada, que agraciava os grandes músicos brasileiros que ali se apresentavam. Entre eles, estavam Nelson Cavaquinho, João do Vale, Ismael Silva e Paulinho da Viola.

Localizada na Rua da Carioca, a casa despertou o interesse de Nara Leão, que gravou em seu disco de estreia três sambas, um deles intitulado “O Sol Nascerá”, também conhecido como “A Sorrir”, de Cartola e Elton Medeiros. Incluída no Show Opinião, a música tornou-se um dos maiores sucessos da carreira de Cartola, e recebeu regravações de Isaurinha Garcia, Elis Regina, Jair Rodrigues, dentre tantos outros. O refrão solar traduzia bem o momento de seu autor, sorrindo após a tempestade.

“Meu Drama [Senhora Tentação]” (samba, 1967) – Silas de Oliveira e J. Ilarindo
Silas de Oliveira morreu e nasceu numa roda de samba. Embora o pai não tenha concordado, por suas convicções pastorais e protestantes, Silas começou a ser Silas quando fundou, junto de seus pares – dentre eles o inseparável Mano Décio da Viola –, a Escola de Samba do Império Serrano, e para sempre foi batizado entre batuques, pandeiros e tamborins. Silas ficou conhecido, sobretudo, pela atividade nos desfiles de Carnaval. Compositor arguto e perspicaz de temas históricos para os tradicionais sambas-enredo, também merecem destaque seus sambas de roda, tais como “Meu Drama”, popularmente chamado “Senhora Tentação”. É desta canção que emergiram versos do quilate de “será que o amor por ironia/ move esta fantasia, vestida de obsessão?”, regravados por ninguém menos do que Cartola, no ano de 1976.

“Fiz Por Você o que Pude” (samba, 1967) – Cartola
Fundador da Estação Primeira de Mangueira, nome escolhido em razão do pioneirismo do trânsito ferroviário que interligava a Central do Brasil ao subúrbio carioca, onde a nata do samba se encontrava, Cartola foi também o responsável por escolher as cores de verde e rosa para a agremiação, uma homenagem ao Rancho do Arrepiado, do qual seu pai fazia parte. Curiosamente, o compositor chegou a admitir em entrevista que o seu estilo de samba, mais lento e melancólico, pouco combinava com a alegria da avenida. O que não o impediu de compor a bonita “Fiz Por Você o que Pude”, em 1967.

“Fala, Mangueira!” (samba, 1968) – Cartola, Nelson Cavaquinho e Carlos Cachaça
No ano de 1938, antes de ser expulso da corporação, Nelson Cavaquinho conseguiu dar baixa em seu cargo na polícia, separou-se de Alice, sua mulher à época, e entregou-se definitivamente ao samba e à boêmia. Em 1952 foi morar em Mangueira, onde permaneceu por um ano e meio, e, em 1968 dividiu com Cartola, Clementina de Jesus, Carlos Cachaça e Odete Amaral os vocais de “Fala Mangueira”, produzido por Hermínio Bello de Carvalho.

Esse álbum foi outro marco da produção nacional do período, por reunir, de uma só tacada, quatro dos bambas mais expressivos dos morros cariocas, além de Odete Lara. Clementina de Jesus, Cartola, Nelson Cavaquinho e Carlos Cachaça de uma só vez é para quem não tem medo de embriagar-se de toda a nossa arte natural.

“Tive Sim” (samba, 1968) – Cartola
As muitas agruras que a vida lhe proporcionou ao longo dos anos fizeram com que Cartola desistisse do samba. Ele já havia perdido a mãe em pequeno, sua esposa e agora decidira que abandonaria a música antes que esta o abandonasse. Os amigos achavam que estava morto, fizeram canções em sua homenagem. Carlos Cachaça o encontrou magro, sem dentes, bebendo dois litros de pinga por dia. Resolveu apresentá-lo à irmã de sua futura esposa.

Dona Zica acolheu Cartola nos braços e no coração. Em 1968, ele lhe dedicou um de seus sambas mais comoventes: “Tive Sim”, uma declaração de amor presente sem renegar as alegrias passadas. A música foi cantada por Cyro Monteiro na primeira Bienal do Samba, realizada pela TV Record, e ficou em quinto lugar. Durante a apresentação, Cyro foi vaiado por torcedores de outros concorrentes, e chorou mais tarde em uma mesa de bar: “Nunca fui vaiado na minha vida, ainda mais cantando música do Cartola!”. Mas já não havia mais motivo para choro. Cartola estava de volta.

“Alvorada” (samba, 1968) – Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio Bello de Carvalho
Assim que chegou ao morro de Mangueira, Cartola ficou amigo de Carlos Cachaça. Frequentando as zonas boêmias sempre que podia, foi apresentado aos malandros do local e se tornou um dos fundadores da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, em menção ao fato de ser a primeira estação onde parava o trem que partia da Central do Brasil. Inspirado por lembranças de sua infância, quando assistia às manifestações carnavalescas do “Rancho dos Arrepiados”, tingiu com elegância a combinação entre um “caule verde” e uma “rosa na ponta”, como costumava dizer.

A escola que ajudou a fundar, e o morro que lhe deu inspiração para tal, seriam homenageadas em várias de suas canções, uma delas lançada por Odete Amaral em 1968 e imortalizada em 1972 no canto de brisa de Clara Nunes: “Alvorada” foi composta em uma das madrugadas em que Carlos Cachaça e ele desciam o morro do Pendura a Saia. Os dois se impressionaram com a beleza dos primeiros raios de sol que surgiam no horizonte e iluminavam a paisagem sofrida de seus moradores. Ali começaram a ser coloridas as estrofes e melodias que ganhariam pinceladas de Hermínio Bello de Carvalho, e representavam a admiração dos autores pelo morro carioca.

“Acontece” (samba, 1972) – Cartola
O retorno de Cartola para as raízes de sua Mangueira aconteceu aos poucos. Depois de conhecer Dona Zica, passou a trabalhar como lavador de carros. Numa dessas noites, resolveu ir até um bar próximo e esbarrou por lá com Sérgio Porto, conhecido como Stanislaw Ponte Preta, que o reconheceu imediatamente: “Você não é o Cartola?”, ao que ele respondeu: “Sou”. O jornalista não conteve o espanto, escreveu sobre o encontro em sua coluna e passou a divulgar seu nome, levando-o para cantar em programas de rádio.

O sambista desaparecido havia sido encontrado. Ainda assim, Cartola se deparava com dificuldades e teve que trabalhar no jornal “Diário Carioca” e no Ministério de Indústria e Comércio, servindo café. Por conta do embalo inicial dado por Sérgio Porto e do amor despertado por Dona Zica, foi que Cartola voltou à cena definitivamente, e, em 1972, teve seu samba “Acontece” gravado por Paulinho da Viola. A música mais uma vez trazia a temática do amor diante do olhar sensível e resignado de Cartola, recusando-se a cultivar um disfarce.

“Pouco Importa” (samba-canção, 1975) – Cartola
Maria Creuza sussurra a poesia derramada do samba-canção “Pouco Importa”, do mestre da Mangueira, Cartola. Após a indiferença dos primeiros versos, vem a consagração erguida de um coração que superou ferimentos mesquinhos: “O ciúme e o desprezo são armas de dois gumes, quanto mais se digladiam, aumentam os queixumes, felizmente eu sou dotada de resignação, para não ferir meu coração”. Com o encerramento de um maravilhoso solo de saxofone.

“Ensaboa Mulata” (lundu, 1976) – Cartola
Ney Matogrosso estreou na carreira-solo em 1975, com o disco “Água do Céu-Pássaro”. Desde então, não parou de colecionar sucessos, em que se destacam músicas da estatura de “Homem com H”, “Balada do Louco”, “Bandido Corazón”, “Pro Dia Nascer Feliz”, “Seu Tipo”, “Até o Fim”, “América do Sul” e “Poema”. Em 2012, Ney Matogrosso foi eleito pela revista Rolling Stone a 3ª maior voz do Brasil, atrás apenas de Elis Regina e Tim Maia. Sob os canhões de luz e refletores potentes que ajudam a articular as intenções e os gestos lânguidos do artista, da malícia à provocação explícita, Ney registrou a melhor versão para o lundu “Ensaboa Mulata”, lançado por Cartola em 1976.

“Preciso me Encontrar” (samba, 1976) – Candeia
Portelense histórico, Candeia tinha apenas 17 anos quando, em 1953, compôs o samba-enredo “Seis Datas Magnas” (com Altair Prego), o primeiro a conseguir nota máxima, e que valeu à escola o título de campeã. Décadas depois, em 1975, ele iria fundar o Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo, ao lado de nomes como Nei Lopes e Wilson Moreira. Tido como um policial truculento e machista, Candeia teve que abandonar a profissão depois de levar cinco tiros, e passou a se locomover numa cadeira de rodas. Nessa condição, ele gravou oito discos e criou a clássica “Preciso Me Encontrar”. Gravada por Cartola em 1976, a canção eternizou esse triste lamento: “Deixe-me ir/ Preciso andar/ Vou por aí a procurar/ Rir pra não chorar”.

“Cordas de Aço” (samba, 1976) – Cartola
A voz de Cartola finalmente ecoou em disco no ano de 1974. Embora já tivesse feito participações em trabalhos de outros cantores, era a primeira vez que se ouvia seu canto em disco próprio. Lançado por iniciativa de João Carlos Botezzeli, o Pelão, através da gravadora “Marcus Pereira”, o álbum recebeu prêmios e reconhecimento instantâneo, sendo Cartola logo convidado a gravar mais três LPs.

A esses se seguiram turnês que percorreram o Brasil com enorme sucesso. Cada vez mais conhecido do grande público, Cartola também encantava a crítica, e participou, ao lado de João Nogueira, do bem sucedido Projeto Pixinguinha. Foi num desses álbuns, no ano de 1976, que ele deixou seu registro para a música “Cordas de Aço”, em que homenageava o companheiro de toda a vida, o querido violão. E lá iam os dois madrugada adentro, cantando.

“As Rosas Não Falam” (samba, 1976) – Cartola
Numa tarde de 1975, o compositor Nuno Veloso, que levava Cartola e dona Zica até a casa de Baden Powell, resolveu comprar flores para o casal. Ao se encantar com o desabrochar da roseira no dia seguinte, Zica questionou o marido: “Como é possível, Cartola, tantas rosas assim?”, ao que ele respondeu sem muito entusiasmo: “Não sei, as rosas não falam”. E começava a florescer naquele dia mais uma música que daria voz eterna a seu compositor. Gravada por ele e por Beth Carvalho em 1976, demonstrava toda a esperança lírica de Cartola, que a escrevera aos 67 anos. A música seria regravada várias vezes.

“Peito Vazio” (samba, 1976) – Cartola e Elton Medeiros
Desafiados por um produtor, Cartola e Elton Medeiros compuseram, em quase 40 minutos, a obra-prima “O Sol Nascerá”, gravada por Nara Leão (1942-1989) em 1964, quando a moça do apartamento na zona sul que gestou a bossa nova, subiu o morro para cantar Cartola, Elton Medeiros, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti. Com o ídolo Cartola, outra criação de indistinta beleza seria a tristíssima “Peito Vazio”: “Nada consigo fazer/ Quando a saudade aperta/ Foge-me a inspiração/ Sinto a alma deserta”. Lançada por Cartola em 1976, a música recebeu regravações de Nelson Gonçalves, Emílio Santiago, Ney Matogrosso, Áurea Martins, Cida Moreira e da mãe de Cazuza, Lucinha Araújo.

“O Mundo É Um Moinho” (samba, 1976) – Cartola
“O Mundo É Um Moinho” foi lançada por Cartola em 1976. Na música incisiva em que supostamente falava para uma sobrinha que saíra de casa para ser prostituta, Cartola era acompanhado pelo violão de Guinga, grande instrumentista com apenas 20 anos. A canção, que tinha sido ouvida dois anos antes em um programa especial na Rádio Jornal do Brasil, quando Cartola a cantara para o radialista e produtor Luiz Carlos Saroldi, pode ser considerada uma das mais bonitas da carreira do fundador de Mangueira.

Era Cartola destilando seus sentimentos claros em um mundo cheio de obscuridades e mesquinharias. Partindo para ver o céu no dia 30 de novembro de 1980, o pedreiro de chapéu coco é sempre lembrado como um dos grandes gênios da música brasileira, suas rosas mais do que nunca falam e levam a vida a sorrir nesse moinho de tristezas e alegrias. “O Mundo É Um Moinho” foi regravada por Beth Carvalho, Cazuza, Ney Matogrosso, Emílio Santiago, e etc.

“Autonomia” (samba, 1977) – Cartola
“Azul e Amarelo” é uma parceria tripla envolvendo Lobão e Cazuza, embora o outro “compositor” seja, na verdade, um homenageado, e uma das últimas dos dois. Como relata Lobão, “’Azul e Amarelo’ era uma música nitidamente de despedida”. Cazuza recorre às cores de seu guia espiritual no candomblé para dar título à música, conhecido por ser metade menino, metade mulher. A inclusão de Cartola como um dos parceiros veio por sugestão de Cazuza, que dizia usurpar versos de uma canção do sambista, no caso “Não quero/ Não vou/ Não quero”, presentes em “Autonomia”, lançado em 1977 por Cartola.

“Basta de Clamares Inocência” (samba-canção, 1979) – Cartola
Não é preciso muito para compreender que Elis Regina (1945-1982) é a maior cantora brasileira de todos os tempos: basta ouvi-la. Nascida em Porto Alegre, a gaúcha morreu aos 36 anos, vítima de uma overdose de álcool e cocaína. O disco “Tom & Elis”, de 1974, é considerado pelo crítico musical Hugo Sukman como “uma homenagem da nossa maior cantora ao nosso maior compositor”. A intérprete, cujo temperamento forte lhe rendeu o apelido de “Pimentinha”, deixou, ao longo da intensa carreira, 25 discos, registrados entre os anos 1961 e 1982. Em 1979, ela lançou “Basta de Clamares Inocência”, pérola de Cartola.

“Silêncio de Um Cipreste” (samba, 1979) – Cartola e Carlos Cachaça
“Eu definiria o Cartola como um dos grandes compositores brasileiros. Ele foi muito importante não só para o samba, mas para a música brasileira em geral. Ele é um dos poucos compositores que possui uma assinatura musical, ou seja, você reconhece as músicas dele por meio da linha melódica. Isso, por si só, já é de uma genialidade muito grande e representa a autenticidade e a qualidade do compositor”, elogia Teresa Cristina, que homenageou Cartola em 2017. Como vaticinou Cartola, no samba “Silêncio de Um Cipreste”, parceria com Carlos Cachaça, de 1979: “Todo mundo tem o direito de viver cantando…”.

“Feriado na Roça” (samba, 1979) – Cartola
“Foi a Teresa Cristina que me apresentou ‘Feriado na Roça’, uma música que está totalmente nesse contexto, embora o Cartola seja conhecido apenas como sambista”, destaca. Na referida canção, o marido traído é confrontado pela esposa, que o troca por um homem mais jovem. O desfecho trágico do enredo deixa no ar se todos morreram ao final. “Nesse universo, sinto que a letra tem um peso muito grande. Pela tradição de contar histórias, existe essa hierarquia da narrativa sobre a música. A melodia, ali, deve estar a serviço da poesia”, observa Mônica Salmaso, que gravou “Feriado na Roça” em 2017, no álbum “Caipira”, após o registro de Cida Moreira, de 2008. Cartola a lançou em 1979.

“Amargo Presente” (samba, 1983) – Cartola
Os mais conceituados letristas e melodistas brasileiros pegaram papel e instrumento para criar canções natalinas. Embora a temática se repita, a abordagem revela uma diversidade incrível de impressões sobre a festa, passando pela exaltação, alegria, reflexão, tristeza e melancolia. O humor também marca presença, assim como o samba, a marcha, o pop e a valsa. A experiência de Cartola com a festa natalina, retratada nos versos da música “Amargo Presente”, lançada por Beth Carvalho, é das mais difíceis e dolorosas. A melancolia toma conta da melodia ao reproduzir a história do protagonista abandonado em pleno dia de Natal. Ao fim, o compositor se lamenta pelo tal “presente”.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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