*por Raphael Vidigal Aroeira
“Em densas noites
com medo de tudo:
de um anjo que é cego
de um anjo que é mudo.” João Cabral de Melo Neto
Antônio Carlos Belchior, conhecido apenas como Belchior, nasceu em Sobral, interior do Ceará, no dia 26 de outubro de 1946, e morreu em Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul, aos 70 anos, vítima de um aneurisma que atingiu seu coração no dia 30 de abril de 2017. Cantor, compositor, músico e artista plástico, ele surgiu para a música brasileira como um dos integrantes do chamado Pessoal do Ceará, ao lado de Fagner, Amelinha, Ednardo, e outros.
Depois de estrear em disco em 1974, ele lançou, em 1976, “Alucinação”, com futuros clássicos da canção brasileira, como “Apenas Um Rapaz Latino-Americano”, “Velha Roupa Colorida”, “Como Nossos Pais”, “Sujeito de Sorte” e “À Palo Seco”. Reconhecido como um dos grandes nomes da música brasileira, Belchior teve suas obras regravadas por Elis Regina, Vanusa, Fagner, Amelinha e, recentemente, virou nome de bloco carnavalesco em BH.
Análise. Quando gravou o seu primeiro LP, em 1974, o Brasil vivia sob o domínio de uma nefasta ditadura militar que assolou o país até 1985. Para a música de Belchior, esse contexto era imprescindível. Nascido no interior do Ceará, as agruras de uma pobreza social uniam-se à violência estabelecida pela política em suas crônicas, cujas letras eram transformadas em música com o auxílio do violão.
Todavia, o caráter altamente narrativo e a maneira marcada de se expressar – com forte referência do canto falado de Bob Dylan e da dicção pausada da carioca Nora Ney, sucesso absoluto na “Era de Ouro” do rádio – deram às canções de Belchior, especialmente quando interpretadas por ele, uma característica muito diferente de tudo o que se fazia na sua época. A palavra, ali, se posicionava antes da melodia, e se sobressaía a ela sem nenhuma culpa. Tanto é verdade que, ainda hoje, é possível recitá-las como um manifesto.
E é o que de fato eram. Ao marcar em suas canções um ponto de vista panorâmico e, ao mesmo tempo, muito preciso de várias das imbricações momentâneas a que sua geração estava afeita, Belchior conseguiu definir também os sentimentos dos que vieram antes e daqueles que viriam depois, já que sua “tragédia de costumes” mirava a história para entender o presente, sem se contaminar por um engajamento simples.
Afinal, persiste a sofisticação no entendimento da angústia, aquela que transcende a opressão do cotidiano e alcança a existência. Se muitos foram os que o regravaram, poucos captaram essa conotação como Elis Regina, capaz de nacionalizar a envolvente “Como Nossos Pais”, ainda que vertebrada numa sinuosa narrativa. No entanto, é, provavelmente, pela associação muito íntima da criação com o intérprete, que Belchior é desses casos de compositor que melhor canta as dores que compartilha.
Fagner x Belchior
Parceiros em “Mucuripe”, os cearenses Fagner e Belchior tiveram uma relação conturbada, que começou como amizade e terminou mal. Na biografia de Belchior, o autor Jotabê Medeiros conta que os dois chegaram a se enfrentar com facas. Fagner admitiu que eles se agrediram fisicamente inúmeras vezes.
“Na Hora do Almoço” (MPB, 1971) – Belchior
Em um compacto com a etiqueta da gravadora Copacabana, Antônio Carlos Belchior estreou em disco. “Na Hora do Almoço” foi lançada e venceu o IV Festival Universitário da MPB, na interpretação da dupla formada por Jorginho Telles e Jorge Neri. Belchior havia se mudado para o Rio de Janeiro após se apresentar em uma série de festivais pelo Nordeste. A canção que abria as portas da indústria fonográfica para ele trazia ecos de “Panis et Circenses”, dos Mutantes, com sua radiografia das relações entre gerações no âmbito da classe média, marcadas pela hipocrisia e o jogo de aparências. “No centro da sala/ Diante da mesa/ No fundo do prato/ Comida e tristeza/ A gente se olha/ Se toca e se cala/ E se desentende/ No instante em que fala”, analisa Belchior.
“Mucuripe” (MPB, 1972) – Fagner e Belchior
Fagner e Belchior se conheceram em Fortaleza, depois do primeiro sair de Orós, e, o segundo, deixar Sobral. Juntos, ao lado de Rodger Rogério, Ednardo e Ricardo Bezerra, formaram o “Pessoal do Ceará”, que se apresentava semanalmente em um programa de rádio. Levando na bagagem as lembranças de sua terra, seguiram roteiros distintos, Fagner indo para Brasília estudar arquitetura, e, Belchior, indo para o Rio de Janeiro estudar medicina. Mas em 1971, no Festival de Música Popular do Centro Universitário de Brasília, Fagner inscreveu uma música que havia feito com o conterrâneo agora distante. “Mucuripe”, destino solitário das jangadas em Fortaleza, tirou o primeiro lugar e despertou a atenção. Um ano depois, a música foi interpretada por Elis Regina.
“Paralelas” (MPB, 1975) – Belchior
Quando o cantor e compositor Belchior (1946-2017) morreu, no dia 30 de abril de 2017, vários veículos respeitáveis de imprensa cometeram um equívoco imperdoável. A gafe, no entanto, fora provocada pelo próprio artista. Para tirar um sarro com jornalistas, Belchior costumava dizer que se chamava Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, a fim de comprovar que era, de fato, o “maior nome da MPB”. Na certidão de nascimento, no entanto, ele era apenas Antônio Carlos Belchior, três nomes próprios que, juntos, formavam um só. Ironicamente também é triplo o número de documentários em curso que pretende se debruçar sobre a personalidade múltipla do autor de clássicos do cancioneiro nacional, como “Paralelas”, lançada pela cantora Vanusa em 1975.
“Apenas Um Rapaz Latino-Americano” (MPB, 1976) – Belchior
Com um videoclipe conceitual veiculado no programa “Fantástico”, da Rede Globo, Belchior apresentou, para todo o Brasil, “Apenas Um Rapaz Latino-Americano”, e passou a ser chamado como tal, em inúmeros artigos de jornal. A música daria título ao álbum “Alucinação”, lançado em 1976, mas Belchior e o produtor Mazzola chegaram à conclusão de que o outro era mais expressivo do momento que o Brasil passava, sufocado por uma violenta ditadura militar que instituiu o AI-5 e abriu os porões para práticas abomináveis como a tortura, sem falar na censura explícita. “Apenas Um Rapaz Latino-Americano” realiza um compêndio de toda essa trágica situação social a partir do olhar do protagonista e de quebra tira sarro com Caetano Veloso, o “compositor baiano”.
“Velha Roupa Colorida” (MPB, 1976) – Belchior
Elis Regina chegou a participar de shows em comícios promovidos pelo PT para arrecadar fundos destinados às greves dos metalúrgicos do ABC Paulista. “Ela via em Lula, e também em FHC, caminhos possíveis para um futuro democrático para o país. E tinha uma visão política muito elaborada, porque, de fato, os dois chegaram à presidência do país e ajudaram a fomentar a democracia brasileira em seus mandatos, independentemente de suas controvérsias”, analisa o escritor Renato Contente. “Elis já esboçava uma reação estética à ditadura mais consolidada, e tomou de vez o bastão da resistência a partir do espetáculo ‘Falso Brilhante’”, cujo repertório agregava “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”, de Belchior, lançadas em 1976.
“Como Nossos Pais” (MPB, 1976) – Belchior
Elis Regina gostava de pinçar novos compositores e descobrir músicas cheias de frescor, prontas para serem trabalhadas e recriadas pela intérprete, aclamada como a maior do Brasil em todos os tempos. Numa dessas procuras ela descobriu Belchior, vindo de Sobral, no interior do Ceará, e deparando-se com as dificuldades e asperezas da cidade grande. O relato verborrágico e narrativo do compositor, que se cristalizaria como marca registrada ao longo dos anos, pegou de jeito não só a intérprete, como multidões de pessoas de todas as idades, que repetiam inflamadas os versos de inconformidade e desalento presentes na moderna elegia de Belchior. “Como Nossos Pais” ganhou prestígio imediato por seu poder de identificação, centrado na simplicidade do tema, salpicado de máximas e frases precisas. Eis um clássico.
“Sujeito de Sorte” (MPB, 1976) – Belchior
Majur, que se define como não binária, ambientou o clipe de “Africaniei” na sua cidade natal, Salvador. “É uma aula sobre a história do nosso povo. Somos um país laico que tem a diversidade como qualidade”, aponta. Em junho de 2019, ela gravou, com Emicida e Pabllo Vittar, o clipe de “AmarElo”, que considera “um ‘start’ para o mundo”. “Nós três temos histórias de luta e resistência e encontramos um jeito de deixar uma mensagem de ânimo, utilizando a música como tecnologia de afeto”, avaliza. Capitaneada pelo rapper Emicida, a composição traz um sample da música “Sujeito de Sorte”, lançada por Belchior em 1976, no histórico disco “Alucinação”. Os versos iniciais tornaram-se cada vez mais atuais no Brasil. “Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”.
“Alucinação” (MPB, 1976) – Belchior
Juventude. É a essa característica que Amelinha atribui a identificação do público mais jovem com Belchior, a quem ela dedicou o álbum “De Primeira Grandeza”, lançado em 2017. “Como bom filósofo, ele não dá receita para ninguém, mas questiona o tempo todo. Belchior gostava muito de ouvir, não dava lições, ele soltava uma ideia, e todos discutiam. Cansei de estar em mesas com ele em que isso acontecia”, revela. Não é de espantar, portanto, que o discurso forjado nas décadas de 70 e 80 permaneça atual. “Em ‘Alucinação’, Belchior já falava de intolerância, questões de gênero e, de uma forma subjetiva, é muito contemporâneo”, aponta a intérprete. “Alucinação”, lançada em 1976, deu nome ao disco que reuniu grandes sucessos do cantor.
“A Palo Seco” (MPB, 1976) – Belchior
A expressão “a palo seco” aparece na poesia árida e matemática de João Cabral de Melo Neto, considerado, por muitos, o maior poeta do Brasil. “Eis uns poucos exemplos /de ser a palo seco,/ dos quais se retirar/ higiene ou conselho:/ não o de aceitar o seco/ por resignadamente,/ mas de empregar o seco/ porque é mais contundente”, escreve ele. Belchior, leitor assíduo de poesias, recupera essa expressão na canção de mesmo nome, lançada por ele em 1976, no disco “Alucinação”. “Se você vier me perguntar por onde andei/ No tempo em que você sonhava/ De olhos abertos lhe direi/ Amigo eu me desesperava…”, anuncia Belchior, com seu cantar rascante, em “A Palo Seco”. A música foi mais uma que se transformou em emblema de toda uma geração.
“Coração Selvagem” (MPB, 1977) – Belchior
Após o estrondoso sucesso do disco “Alucinação”, Belchior aportou na praça, um ano depois, com “Coração Selvagem”. A faixa-título era, aparentemente, uma canção romântica, que bebia na tradição da música brasileira, mas aos modos de Belchior. “Meu bem guarde uma frase pra mim/ Dentro da sua canção/ Esconda um beijo pra mim/ Sob as dobras do blusão/ Eu quero um gole de cerveja no seu copo/ No seu colo e nesse bar”, afirma o eu-lírico. A música foi uma das que se destacou no novo álbum e, com o tempo, mereceu regravações das cantoras Ana Carolina e Ana Cañas. O LP também trazia a versão do autor para “Paralelas”, lançada por Vanusa em 1975, “Todo Sujo de Batom”, “Galos Noites e Quintais”, “Como Se Fosse Pecado”, entre outros hits.
“Galos, Noites e Quintais” (MPB, 1977) – Belchior
Em uma participação no programa “Sr. Brasil”, apresentado por Rolando Boldrin na TV Cultura, Chico Anysio cantou, emocionado, uma versão para “Galos, Noites e Quintais”, uma das músicas lançadas por Belchior em 1977, e que o próprio já cantara na mesma atração. A identificação de Chico Anysio com a música vinha, entre outros motivos, pelo fato de, assim como Belchior, ele também ser cearense. Além disso, para quem não sabe, o humorista manteve, durante muitos anos, forte ligação com a música brasileira, inclusive como compositor de sucessos como “Rio Antigo”, parceria com Nonato Buzar eternizada na voz de Alcione, e “Não Se Avexe Não”, com Haydée de Paula, lançada por Dolores Duran. “Galos, Noites e Quintais” merece essa deferência.
“Medo de Avião” (MPB, 1979) – Belchior
“Essa música pertence à minha memória afetiva, lembro que achei estranho e originalíssimo o jeito de ele falar sobre uma relação romântica a partir do medo de avião”, observa Marcus Fernando, diretor e roteirista de “Torquato Neto: Todas as Horas do Fim”, que também resolveu se aventurar em “Belchior: Coração Selvagem”, documentário cujo título permanece provisório. “Medo de Avião”, que Marcus Fernando ouviu Belchior cantar pela primeira vez na TV no programa de Silvio Santos, no SBT, tornou-se uma das canções de maior apelo popular do compositor, provavelmente por conta da temática amorosa envolvida. O grande diferencial, no entanto, é a maneira com que Belchior aborda o assunto, a partir de uma situação inusitada, como a trazida pela letra.
“Comentário a Respeito de John” (MPB, 1979) – Belchior e José Luís Penna
A prova de que o compositor cearense, nascido em Sobral, continua surpreendendo está numa recente descoberta do diretor Paulo Henrique Fontenelle. “Eu achava que ele tinha composto ‘Comentário a Respeito de John’ em homenagem à morte do John Lennon (1940-1980), mas, na verdade, foi quando ele saiu dos Beatles, e o Belchior fez essa música para apoiá-lo”, observa Fontenelle. “Essa é uma canção que talvez traga pistas sobre as vontades que Belchior colocou em prática no fim da vida”, aposta o documentarista. “Saia do meu caminho, eu prefiro andar sozinho, deixem que eu decida a minha vida”, dizem os versos desta parceria com José Luís Penna lançada em 1979, no contundente LP “Era uma Vez um Homem e Seu Tempo”.
“Contramão” (MPB, 1985) – Fagner e Belchior
Cazuza foi criado em casa com os Novos Baianos, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee e “Os Mutantes”. Essas presenças não eram impalpáveis, em discos, mas reais, lá estavam eles dividindo o sofá e a casa com seu pai, João Araújo, dono da gravadora “Som Livre”. Por isso não espanta que as influências do compositor passeiem pelo blues e a música nordestina. Ele mesmo dizia que era cantor de rock por acaso, e se caísse numa banda de pagode estaria compondo do mesmo jeito. Amigo de Fagner, os dois lançaram juntos a música “Contramão”, em 1985, composição do cearense com Belchior.
“De Primeira Grandeza” (MPB, 1987) – Belchior
Certa vez, eles se encontraram nos bastidores de um programa de TV, em São Paulo, e, após “cantar bem baixinho, no camarim”, Belchior confidenciou que adoraria ouvir “De Primeira Grandeza” na voz de Amelinha. “Quando eu estou sob as luzes/ Não tenho medo de nada/ E a face oculta da lua, que é a minha/ Aparece iluminada”, elucida a abertura da música que intitula a homenagem de Amelinha a Belchior. “As observações do Belchior a respeito da existência permanecem atuais. Gostei muito dos arranjos contemporâneos do disco. Canto com carinho, me lembrando dele, das brincadeiras, é bem emocionante”, assinala. Da convivência íntima, ela guarda as lembranças de “uma pessoa cordial, amorosa, um gentleman”. Já Belchior lançou a canção no ano de 1987.
“As Várias Caras de Drummond” (antologia, 2004) – Belchior
Um ano antes de dar início à série de desaparecimentos que marcaram os últimos anos de sua trajetória, o compositor e cantor Belchior concretizou um de seus projetos mais ambiciosos. “As Várias Caras de Drummond”, lançado em 2004, é fruto do empenho do músico em criar melodias para nada menos do que 31 poemas de Carlos Drummond de Andrade, em que se misturam obras conhecidas, casos de “Sentimental” e “No Banco de Jardim”, com outras menos propagadas, como “Liquidação” e “Lanterna Mágica”. Nos últimos tempos, Belchior se dedicava a projeto parecido com a obra de Dante Alighieri.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.