*por Raphael Vidigal Aroeira
“No entanto, com aquela renúncia, ele a punha em condições extraordinárias. Ela se desligou, para ele, das qualidades carnais que ele não poderia obter; e ela foi, em seu coração, subindo sem parar e desprendendo-se dele, à maneira magnífica de uma apoteose que levanta vôo. Era um daqueles sentimentos puros que não atrapalham o exercício da vida, que são cultivados porque raros, cuja perda afligiria mais do que a posse alegraria.” Gustave Flaubert
Abelim Maria da Cunha adotou o nome artístico de Angela Maria para despistar a família, que não queria que ela seguisse a carreira artística, devido aos estigmas da época. Foi com esse nome que ela se consagrou como uma das maiores cantoras da música brasileira, especialmente na Época de Ouro do Rádio. Carioca de Macaé, ela nasceu no dia 13 de maio de 1929, e morreu em São Paulo, no dia 29 de setembro de 2018, aos 89 anos, pouco depois de lançar um disco dedicado à obra de Roberto e Erasmo Carlos. Ao longo dessa prolífica trajetória, Angela lançou sucessos do bolero, do samba-canção e do Carnaval, como “Lama”, “Orgulho”, “Vida de Bailarina”, “A Lua É dos Namorados”, e diversos outros, influenciando toda uma geração de intérpretes.
“Lama” (samba-canção, 1952) – Ailce Chaves e Paulo Marques
Um dos sambas-canções mais celebrados do repertório de fossa de todos os tempos, “Lama” trouxe a assinatura de uma mulher, algo raro numa época que era ainda mais machista do que a atual. Ailce Chaves foi uma compositora prolífica, gravada por estrelas como Angela Maria, Linda Batista, Elvira Pagã e Ciro Monteiro. No entanto, nenhuma composição atingiu o sucesso de “Lama”, parceria com Paulo Marques lançada pela cantora Linda Rodrigues em 1952. Ao longo dos anos, a música recebeu regravações celebradas de Núbia Lafayette, Zeca Pagodinho e Angela Maria. A mais inusitada interpretação, porém, ficou a cargo do experimentalista Arrigo Barnabé, que a registrou no ano de 1992.
“Orgulho” (samba-canção, 1953) – Valdir Rocha e Nelson Wadekind
Com a alma partida de dor, Ângela Maria entoa com emoção os versos cruéis da canção que fala sobre a despedida, o fim, a desistência. Fala a um Deus que sabe quem errou, fala a um homem que foi realidade feliz e agora se transforma em triste lembrança. Fala de um amor escondido. Um amor escondido pelo orgulho, pelas desilusões, os maus tratos. Um amor que agora mais parece um trapo, mas ainda está ali, por trás da taça de fel, mantendo mesmo que aos trancos e barrancos, seus finos tecidos de cetim que o rancor aos poucos escondeu. É um apelo à saudade, pedindo que ela nunca mais regresse.
“Vida de Bailarina” (samba-canção, 1954) – Américo Seixas e Chocolate
Atuando no programa “A Praça da Alegria”, o músico Chocolate ficou mais conhecido como comediante. Apesar disso, ele criou canções que fizeram muito sucesso, como “Canção de Amor”, parceria com Elano de Paula lançada por Elizeth Cardoso, e “Vida de Bailarina”, feita com Américo Seixas para Angela Maria, que se tornou um enorme sucesso no ano de 1954. Fã confessa de Angela Maria, a gauchinha Elis Regina regravaria a música dezoitos anos depois, em 1972, no famoso álbum em que ela aparece na capa sentada em uma cadeira. Ao repetir o êxito, a música também se tornou marcante com Elis.
“Amendoim Torradinho” (valsa, 1955) – Henrique Beltrão
Quando Carmen Miranda brincou com o duplo sentido na carnavalesca “Eu Dei”, de 1937, ela teve que se valer dos versos de Ary Barroso. O mesmo aconteceu com a cantora portuguesa Vera Lúcia, primeira intérprete da lânguida e sensual “Amendoim Torradinho”, obra de Henrique Beltrão lançada por ela em 1955, e que depois ganhou as vozes de Ney Matogrosso, Angela Maria, Alcione, Dóris Monteiro e Ivon Curi, entre outros. O fato ainda era comum no ano em que Maria Bethânia gravou, “O Meu Amor”, de Chico Buarque, em 1978, até que uma nova geração de compositoras decidisse abordar o sexo com as próprias palavras, como Angela Ro Ro, Rita Lee, Vanessa da Mata, MC Carol e Karol Conká.
“Mamãe” (bolero, 1959) – Herivelto Martins e David Nasser
O jornalista David Nasser e o compositor e intérprete do Trio de Ouro, Herivelto Martins, compuseram juntos um sem número de canções de sucesso de cunho afetivo. A maioria delas, no entanto, enveredava para o lado dos amores desfeitos, das paixões que não deram certo, e por aí vai, especialmente inspiradas na relação de Herivelto Martins com a cantora Dalva de Oliveira. Mas em 1959 os dois compuseram um bolero em elegia às mães, que pela simplicidade e descrição dos costumes daquela época, rapidamente mostrou seu poder de identificação com uma expressiva parcela do público. Tudo isso sublinhado pela interpretação magnífica e passional de Ângela Maria. Mais tarde a música seria regravada em dueto com Agnaldo Timóteo, também versado em canções para homenagear as mães. “Ela é a dona de tudo, é a rainha do lar…”.
“A Lua É dos Namorados” (marchinha, 1961) – Klécius Caldas, Brasinha e Armando Cavalcanti
O trio de foliões Klécius Caldas, Brasinha e Armando Cavalcanti optou por colocar um símbolo da paixão como protagonista da marchinha lançada no início da década de 1960 por Angela Maria: a lua. Além disso, a disputa espacial travada no período entre russos e norte-americanos contribuiu para inspirar os autores. Os versos de entusiasmo que abrem a composição servem, também, como refrão, e ainda voltam para encerrar a música. “Todos eles estão errados/a lua é dos namorados”.
“Rancho das Namoradas” (marcha-rancho, 1962) – Ary Barroso e Vinicius de Moraes
Muitas lendas e folclores se perpetuaram sobre sua figura mítica, um dos símbolos de um Brasil musical que ele defendia com unhas, dentes e microfones. Fosse narrando os jogos do Flamengo ou acompanhando Carmen Miranda ao piano, Ary Barroso sempre esteve ao lado das bandeiras mais populares do seu país. Luiz Peixoto, Noel Rosa e Vinicius de Moraes foram alguns dos que tiveram o privilégio de compor com Ary Barroso. Acostumado a criar letra e música, ele abria raras exceções para parcerias. Numa dessas, compôs com Vinicius de Moraes o “Rancho das Namoradas”, marcha-rancho lançada, em 1962, pela extraordinária cantora Angela Maria. E foi um sucesso.
“Nem às Paredes Confesso” (fado, 1969) – Artur Ribeiro, Ferrer Trindade e Maximiano de Souza
“O fado é triste porque é lúcido”. A constatação de Amália Rodrigues (1920-1999) demonstra o domínio que ela possuía sobre o gênero do qual se tornou a sua intérprete maior, sendo reconhecida como diva, rainha e voz do fado, dentre outras adjetivações hiperbólicas, à altura da cantora nascida em Lisboa, capital de Portugal. Os pais, pobres, a deixaram para ser criada com os avós em Fundão, numa província conhecida como Beira Baixa, onde Amália tomou contatou com as cantigas do folclore português que consagraria para a posteridade, casos de “Alecrim”, “Quando Eu Era Pequenina”, “O Trevo”, “Rapariga Tola, Tola”, dentre outras, com uma afinação impecável, a serviço da extensão no cantar que se coadunava com a expressividade dos gestos.
Invariavelmente de xale preto, Amália garantia que nunca cantava igual, porque vivia sob constante mudança interna. “Uma Casa Portuguesa” simboliza essa devoção à pátria. As tertúlias promovidas em sua morada se tornam famosas e geram, inclusive, discos. Num deles, o poeta Vinicius de Moraes revela o que mudaria no povo português: o formalismo excessivo. “Os portugueses precisam se desengravatar”, diz. Outra admiradora confessa de Amália no Brasil é a cantora baiana Maria Bethânia, que a equipara a Édith Piaf, Billie Holiday e Judy Garland no panteão das supremas. A gravação de Amália para o clássico “Nem Às Paredes Confesso”, de Artur Ribeiro, populariza a canção em solo tupiniquim, e rende regravações de Nelson Gonçalves, Angela Maria, Roberto Carlos e Agnaldo Rayol.
“Tango pra Tereza” (tango, 1975) – Evaldo Gouveia e Jair Amorim
A família de Abelim Maria da Cunha tinha horror de que ela se tornasse cantora de rádio, embora a menina já demonstrasse talento fora do comum no coro da igreja. Para despistar a família, ela adotou o nome de Angela Maria e se tornou uma das maiores cantoras da história da música brasileira, colecionando sucessos em série. Chamada carinhosamente de Sapoti, apelido dado por Getúlio Vargas, que considerava sua voz doce como o sabor da fruta, Angela Maria gravou, em 1975, “Tango pra Tereza”, música de Evaldo Gouveia e Jair Amorim, craques em sucessos radiofônicos. “Garçom ponha a cerveja sobre a mesa/ Bandoneon toque de novo que Tereza/ Esta noite vai ser minha e vai dançar/ Para eu sonhar”. A música foi regravada em 2010 por Ney Matogrosso.
“Estrela da Canção” (MPB, 1976) – Ricardo Vilas
Os vizinhos não compreendem como ela vive “sem correr como eles correm de manhã”. “Acontece que eu preciso de repouso matinal/ Pois não desligo antes das cinco da manhã”, prossegue Teca Calazans, ao dar vida à personagem de “Estrela da Canção”, música de Ricardo Vilas lançada quase simultaneamente por ela, Angela Maria e Simone na década de 1980. A faixa que integrou o LP “Povo Daqui”, de Teca e Ricardo, talvez ajude a compreender a personalidade da cantora que completa 80 anos, e que jamais colocou os holofotes da mídia à frente da real natureza de seu ofício.
“Começaria Tudo Outra Vez” (bolero, 1976) – Gonzaguinha
Ao som de bolero, samba, baião ou toada. Assim Gonzaguinha escreveu seu nome na canção brasileira. Um nome que já tinha peso antes mesmo de ele nascer, e que foi aos poucos penetrando nos ouvidos das pessoas com aquele diminutivo. O menino esguio que falava de dramas, amores e problemas sociais, cresceu e continuou menino. Continuou falando, cantando, observando aquilo que o tocava com o cuidado de quem enxerga uma fruta madura no pé da árvore. Gonzaguinha no palco era solto, espontâneo, como se estivesse em casa, mas quando escrevia era incisivo, agudo, enfático, dando a medida lhe que cabia da força dos relacionamentos humanos em sua vida. Não imaginava ele que, em 1976, só estava no começo, mas ainda assim decidia: “Começaria tudo outra vez/ Se preciso fosse, meu amor…”.
“Tapas na Cara” (rumba, 1987) – Cazuza
A formação musical de Cazuza tinha muito da música brasileira da Época de Ouro do Rádio, fonte de onde bebeu para maturar versos de dor de cotovelo adaptados ao espírito contestador que ele aprendeu com Janis Joplin, Jimi Hendrix, Jim Morrison e outros roqueiros norte-americanos. Do rol de ídolos nacionais, constava Dolores Duran, Maysa e Angela Maria, para quem compôs, em 1987, a rumba “Tapas na Cara”, bem ao estilo da intérprete. Em 1988, Cazuza resolveu adentrar o universo da bossa nova, com “Faz Parte do Meu Show”, parceria com Renato Ladeira. A música seria revisitada por Cauby Peixoto, em uma gravação impagável em que ele aproveitava a deixa para relembrar os próprios sucessos que, afinal de contas, faziam parte de seu show.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.