*por Raphael Vidigal Aroeira
“Ó virgens, ó demônios, ó monstros, ó mártires,
Da realidade grandes almas contendoras,
Em busca de infinito, devotas e sátiras,
Ora cheias de brados, de prantos outras horas” Charles Baudelaire
Manifestação popular, o Carnaval também agregou, desde o início dos tempos, uma conotação política, ao aproveitar a sua folia musical para atacar os poderosos que maltratavam o povo durante o resto do ano. Os quatro dias de respiro também eram a liberação para sátiras de todos os tipos. Nos últimos anos, as figuras mais proeminentes da política nacional continuaram recebendo essas homenagens, ora mais ou menos irreverentes. Para isso contribuíram os concursos de marchinhas que despontaram, junto com a ressurreição da festa.
“Na Coxinha da Madrasta” (marchinha, 2012) – Flávio Henrique
O bom humor marcante do músico Flávio Henrique o permitia relativizar tanto o sucesso quanto o fracasso. Em 2012, o músico foi responsável pela marchinha apontada por muitos como propulsora do renascimento do Carnaval de Belo Horizonte. “Na Coxinha da Madrasta”, rapidamente se transformou em sucesso que ultrapassou, inclusive, o território estadual. “Ele reclamava meio brincando que tinha feito sete discos, sido gravado por Milton e Ney Matogrosso e nunca fora tão procurado quanto estava sendo por conta da marchinha. Falava que o Brasil todo agora ligava para ele”, relembra Thiago Delegado, parceiro e amigo.
“Baile do Pó Royal” (marchinha, 2014) – Alfredo Jackson, Joilson Cachaça e Thiago Dibeto
O fim do ano se aproximava quando uma notícia triste abalou a comunidade do samba em BH. Aos 35 anos, morria Mestre Jonas, no dia 30 de dezembro de 2011, vítima de um acidente vascular cerebral. O músico e artista plástico era uma das figuras mais queridas e carismáticas da cena, tendo idealizado projetos como o Samba da Madrugada e o Samba do Compositor.
Àquela altura, já havia a ideia de criar um concurso de marchinhas na capital, fruto de uma provocação do radialista Tutti Maravilha, que questionava o fato de a folia na cidade ser dominada por músicas da Bahia e do Rio de Janeiro.
Como resposta, o locutor recebeu 38 músicas de ouvintes. Assim nascia, em 2012, o Concurso de Marchinhas Mestre Jonas, De lá pra cá, o concurso se tornou uma febre, com mais de mil canções inscritas, entre elas algumas que se tornaram hits nacionais, como “Na Coxinha da Madrasta” (Flávio Henrique) e “Baile do Pó Royal” (Alfredo Jackson, Joilson Cachaça e Thiago Dibeto).
“Não Enche o Saco do Chico” (marchinha, 2016) – Marcos Frederico e Vitor Velloso
No dia 21 de dezembro de 2015, ao sair de um restaurante onde jantava com amigos no Leblon, Chico Buarque foi cercado por um grupo de quatro jovens e hostilizado por suas posições políticas. Uma semana depois, uma manifestação em apoio ao compositor foi convocada para o mesmo local. Em janeiro de 2016, a música “Não Enche o Saco do Chico”, de Marcos Frederico e Vitor Velloso, venceu o concurso de Marchinhas Mestre Jonas, em BH. Em agosto, Chico prestou solidariedade à Dilma Rousseff durante o processo que a tirou da presidência, definido por ele como “golpe”.
“O Baile do Cidadão de Bem” (marchinha, 2017) – Jhê Delacroix e Helbeth Trotta
Cantora, atriz, bailarina, assistente social, artista plástica, contadora de histórias, escritora e tudo o mais que englobe a arte, a carioca Jhê Delacroix despontou como um dos destaques do Carnaval de Belo Horizonte em 2017, cidade onde se estabeleceu. Ela venceu o “Concurso de Marchinhas Mestre Jonas”, com a canção “Baile do Cidadão de Bem”, como intérprete e coautora. Detalhe: foi a primeira compositora mulher a levar o prêmio.
A música premiada, que tira um sarro daqueles que foram às ruas pedir o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, é uma parceria com Helbeth Trotta. “Acho importante ter uma mulher num concurso de marchinha, acho importante ter a mulher em qualquer espaço porque não é só homem que faz música de qualidade, que faz letra de qualidade, e a gente está aí pra provar isso”, sentencia Jhê.
“Pé na Jaca” (marchinha, 2020) – Bento Aroeira e Rubinho do Agogô
Durante a campanha eleitoral de 2018, o senador Cid Gomes, irmão de Ciro Gomes, presidenciável pelo PDT, se estranhou com apoiadores petistas e disparou: “O Lula tá preso, babaca!”. Da prisão, Lula reagiu com bom humor em uma entrevista, ao dizer: “Eu sei que estou preso, só não precisava chamar os outros de babaca”, e riu. Com a libertação do ex-presidente, o bordão se inverteu.
Para completar, o documentário de Petra Costa sobre o impeachment de Dilma, “Democracia em Vertigem”, foi indicado ao Oscar. Os compositores Bento Aroeira e Rubinho do Agogô criaram a marchinha “Pé na Jaca”, inspirados por toda essa trama. A interpretação é de Julie Amaral. A marchinha venceu o primeiro Concurso Satírico de Marchinhas de Ouro Preto, premiando-a em 2020.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.