*por Raphael Vidigal Aroeira
“Não se deve tocar nos ídolos: o dourado acaba por ficar agarrado em nossas mãos.” Gustave Flaubert
Os olhos de Nando Reis não acreditavam no que podiam ver. Na final da Copa da Rainha da Espanha, ele estava diante de uma autêntica rainha. Alexia Putellas, meio-campista do Barcelona, deixou três marcadoras no chão antes de deslocar a goleira adversária e marcar um gol espetacular na vitória por 4 a 0 sobre o time do Zaragoza, garantindo o troféu da competição à sua equipe.
Assim, começava a nascer a música “Alexia”, homenagem à jogadora espanhola que acaba de ser eleita a melhor do mundo pela FIFA, depois de também levar a Bola de Ouro, igualando feito que só a americana Megan Rapinoe havia conseguido, ao levar os dois títulos no mesmo ano e não deixar rastro de dúvidas sobre estar no topo de sua profissão. Na atual temporada, Alexia venceu, pelo Barcelona, a Liga dos Campeões, o Campeonato Espanhol e a Copa da Rainha.
Homenagens. Com letra de Nando Reis e música de Samuel Rosa, “Alexia” foi lançada em 2014 pelo Skank, com versos que começam se referindo, enviezadamente, a um sucesso de Jorge Ben Jor, como num drible que gera uma expectativa e surpreende: “Menina mulher da pele branca/ Com a classe de quem sabe a arte de jogar bem futebol/ A bela da tarde com charme encanta/ Filme de Buñuel, obra de Gaudi ou tela de Miró”.
Nada ali é por acaso. A dobradinha de Samuel e Nando já tinha gerado um dos maiores clássicos nacionais sobre futebol, justamente “É Uma Partida de Futebol”. Já Jorge Ben cansou de demonstrar a sua paixão pelo esporte mais popular do Brasil, em músicas como “País Tropical” e a controversa “Fio Maravilha”, quando homenageou o atacante (com fama de perna-de-pau) do Flamengo que entrou na Justiça contra a utilização de seu nome na letra. E esses não são casos isolados. A música brasileira está repleta de homenagens a jogadores e jogadoras de futebol.
“Balada Número 7: Mané Garrincha” (balada, 1971) – Alberto Luiz
Garrincha pendurou as chuteiras em 1972, ao defender o seu último clube profissional, o Olaria. O “Anjo Das Pernas Tortas” inebriou durante décadas os corações brasileiros, com jogadas geniais e impensadas, zombeteiras, lúdicas. Bicampeão do Mundo com a Seleção Brasileira em 1958 e 1962, foi considerado o melhor jogador da Copa no Chile, principalmente após a contusão de Pelé.
A música “Balada Número 7: Mané Garrincha” foi composta em alusão ao número histórico usado às costas pelo ídolo. No ritmo e na letra Alberto Luiz destrincha a trajetória irregular e dramática, principalmente nos últimos anos, do jogador, que entre glórias, dribles e alegrias, acabou sucumbindo ao alcoolismo. Mas a irreverência de Garrincha é sem dúvida a sua contribuição mais eterna e mais bonita na história brasileira. A canção é cantada, emotivamente, por Moacyr Franco.
“Fio Maravilha” (samba-rock, 1972) – Jorge Ben Jor
Jorge Benjor é talvez o compositor brasileiro que mais escreveu sobre futebol. Porém, entre seus inúmeros sucessos no tema o maior deles é, sem dúvida, “Fio Maravilha”, lançado pela mineira Maria Alcina no Festival da Canção da TV Globo em 1972. A interpretação esfuziante de Alcina e os versos simples e bem harmonizados ao ritmo por Benjor certamente contribuíram para o êxito. Outro fato importante relacionado à música é a polêmica envolvendo o homenageado.
João Batista de Sales, o Fio Maravilha, atacante do Flamengo famoso pela aparência exótica e por marcar gols esquisitos, acionou o compositor na Justiça exigindo o pagamento de direitos autorais pelo uso do apelido, o que levou Benjor a cantar “Filho” em versões posteriores. Fio acabou voltando atrás e permitindo que Jorge cantasse a música como no original. Mas o que ficou pra história, sobretudo, é o grito de gol dos fãs e da torcida brasileira.
“Meio-de-campo” (MPB, 1973) – Gilberto Gil
Gilberto Gil homenageia o jogador Afonsinho, habilidoso meia do Fluminense que tinha uma postura combativa contra a ditadura militar, na música “Meio-de-campo”, de 1973. Voltando do exílio em Londres imposto pelos militares, Gil mistura, com a habitual inteligência, versos que fazem referência tanto ao esporte quanto ao conturbado momento político da época, além de tecer reflexões existenciais.
Lançada com sucesso por Elis Regina no álbum “Elis”, a música faz referência a outros ídolos dos gramados, como o Rei Pelé, atacante do Santos; e Tostão, do Cruzeiro; dois importantes nomes na conquista, pela Seleção Brasileira, do Tricampeonato Mundial no México três anos antes, em 1970.
“Camisa 10” (samba, 1974) – Hélio Matheus e Luís Vagner
Zagallo esteve presente em quatro conquistas de Copa do Mundo defendendo o Brasil, duas como jogador, em 1958 e 1962, uma como treinador, em 1970, e outra como coordenador técnico, em 1994, além de um vice-campeonato em 1998, comandando a Seleção Brasileira contra a anfitriã França.
Apesar disso, o cantor Luiz Américo bem que pede desculpas, mas não perdoa o “Velho Lobo” quando da composição do samba “Camisa 10”, sucesso imediato em 1974, justamente por ir ao encontro dos anseios do povo que fazia as mesmas reclamações. A letra, de autoria de Hélio Matheus e Luís Vagner, brinca de forma espirituosa e bem humorada com situações vividas pelo escrete carinho e lança mão de referências implícitas a jogadores do time, como o goleiro Emerson Leão. O fracasso da equipe naquele mundial disputado na Alemanha corroborou para o sucesso da canção, eternizada no repertório de Luiz Américo.
“O Futebol” (samba, 1989) – Chico Buarque
Não é segredo para ninguém a paixão de Chico Buarque pelo futebol. Torcedor assumido do Fluminense, ele se permitiu até rimar futebol com rock’n’roll. Outro momento sagrado para o compositor são as peladas semanais, e, para isso, ele possui campo, time, uniforme, tudo como manda o figurino. Para expressar esse amor em ritmo não foi difícil para Chico, que resolveu fazê-lo em música de 1989, lançada no disco com seu nome.
Além de referências ao universo particular do esporte, Chico não deixar de homenagear seus ídolos, e os cita nominalmente: Didi, Mané, Pelé e Canhoteiro, numa tabela que, certamente, teria um único desfecho: “Para estufar esse filó como eu sonhei/ Só se eu fosse um Rei”, canta.
“Canhoteiro” (MPB, 2003) – Fagner, Zeca Baleiro, Fausto Nilo e Celso Borges
Um verdadeiro time é o responsável pela canção “Canhoteiro”, lançada por Fagner e Zeca Baleiro no disco da dupla de 2003, e que conta ainda na composição com Celso Borges e Fausto Nilo. A música homenageia um ídolo em comum dos dois cantores, o jogador José da Ribamar de Oliveira, conhecido como “Canhoteiro”, nascido no Maranhão, terra de Zeca Baleiro, que ainda é xará do atleta.
Como se não bastasse, foi revelado no Ceará, terra de Fagner, e fez sucesso defendendo as cores do São Paulo e da Seleção Brasileira. É para Pelé um de seus maiores ídolos, ao lado de Zizinho. A canção homenageia o jeito malandro e irreverente de Canhoteiro, famoso pelos dribles, e o compara, em dado momento a Garrincha. Nada mal para um time: de música e futebol, tanto ritmo.
“Sou Ronaldo” (samba rap, 2006) – Bruno Meriti
Ronaldo foi o principal nome da conquista do pentacampeonato pela Seleção Brasileira em 2002, na Copa do Mundo disputada na Coreia do Sul e no Japão. Após surgir para todo o Brasil no Cruzeiro com um início de carreira fenomenal e participar, do banco de reservas, do tetracampeonato em 1994, ele viveu um dos momentos mais turbulentos de sua vitoriosa carreira em 1998, quando sofreu uma convulsão às vésperas da final contra a França, que ergueu o troféu com um acachapante triunfo de 3 a 0.
Seguidas lesões e cirurgias no joelho deixaram muitos analistas céticos com relação à volta de Ronaldo aos campos, mas ele deu a volta por cima e se tornou um exemplo de superação. Parte dessa trajetória é recontada no samba rap “Sou Ronaldo”, de Bruno Meriti, lançado pelo rapper Marcelo D2 para a Copa do Mundo da Alemanha, em 2006.
“Princesa Andressinha” (rap, 2017) – Luciano D10
A música “Princesa Andressinha” começa com a narração de um golaço de falta contra a Seleção da Itália. Assim, o rapper Luciano D10 introduz a história da homenageada. Meio-campista da Seleção Brasileira e do Corinthians, Andressinha tem a trajetória de luta e sucesso exaltada nesse rap lançado em 2017, que ganhou videoclipe dois anos depois, em 2019. Andressinha fez parte, como destaque, do grupo da Seleção Brasileira que levou a medalha de ouro nos Jogos Pan-Americanos de 2015 em Toronto, no Canadá. Aficionado por futebol feminino, o rapper paraibano Luciano D10 também compôs homenagens às jogadoras Bruna Benites e Marta, da nossa Seleção Brasileira.
“Marta do Brasil” (samba-enredo, 2019) – Cláudio Russo, André Diniz e Altamiro
Maior artilheira de Copas do Mundo, eleita seis vezes a melhor jogadora pela FIFA – um recorde entre homens e mulheres – Marta é referência absoluta no mundo do esporte, uma verdadeira rainha, como compreendeu a escola de samba Inocentes de Belford Roxo, que, em 2019, desfilou na avenida com o samba enredo “Marta do Brasil: Chorar no Começo para Sorrir no Fim”, de Cláudio Russo, André Diniz e Altamiro, puxado por Pixulé e Tem Tem.
A música ganhou uma interpretação, ao cavaquinho, da própria homenageada, que postou o vídeo em suas redes sociais. Alagoana, Marta conquistou duas medalhas de prata com o Brasil, nas Olimpíadas de Atenas e Pequim, duas de ouro nos Jogos Pan-Americanos de Santo Domingo e do Rio de Janeiro e mais uma de prata na Copa do Mundo da China, de 2007.
“O Homem dos Três Corações” (samba, 2020) – Altay Veloso e Paulo César Feital
“O samba é um passaporte, a nossa principal carteira de identidade, assim como o futebol”, compara Alcione. Flamenguista e torcedora devota da Seleção Brasileira, ela presta reverência ao Rei do Futebol e Atleta do Século, nascido no interior das Minas Gerais, em “O Homem dos Três Corações”, de Altay Veloso e Paulo César Feital, que combina versos com a agilidade de uma troca de passes.
“Um drible da vaca na dor da ilusão, no revés/ Os deuses ao verem Arantes improvisar/ Assim como fazem artistas de jazz/ E rompem as regras que nem Holiday no piano-bar/ Perguntaram quem é esse homem de três corações a dançar?”. A música foi lançada em seu mais recente álbum, “Tijolo por Tijolo”.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.