Primeira a usar biquíni no Brasil, Elvira Pagã compôs música feminista

*por Raphael Vidigal Aroeira

“O erotismo não é apenas o apetite do corpo, mas, em igual medida, o apetite da honra.” Milan Kundera

Chutes e socos na cabeça são desferidos contra Pamella Gomes de Holanda na presença de sua filha de colo, Mel, de apenas nove meses, pelo pai da criança. A divulgação das imagens pela vítima levou à prisão preventiva do agressor, o DJ Ivis, à época no auge do sucesso, em julho deste ano. Desde então, ele teve seis pedidos de habeas corpus negados pela Justiça. Embora chocantes, agressões desse tipo são comuns no Brasil. Em 2020, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foram registradas 105.821 denúncias de violência contra a mulher. As denúncias podem ser feitas de forma anônima, nas plataformas do Ligue 180 e ainda do Disque 100.

Na década de 1950, Elvira Pagã não contava com esses recursos, o que não significa que as mulheres estivessem imunes à violência promovida por uma sociedade machista, reacionária e patriarcal. “Eu que nem bem conhecia/ Aquele estranho rapaz/ Me viu sentada com outro/ Ai! E me mandou espancar”, canta Elvira em “Cassetete, Não”, música de sua autoria lançada em 1951, mas que, infelizmente, poderia ter sido composta hoje. Elvira, no entanto, não se curvou às repressões do seu tempo. “Cassetete, não/ Cassetete, não/ Não adianta tu não terás meu coração”, protesta ela no refrão da canção. Considerada polêmica, Elvira promoveu o nudismo, ao lado de Luz Del Fuego.

Nudismo. Ela posou nua diversas vezes, e, numa delas, mandou distribuir a imagem para amigos e admiradores como cartão de Natal. Nascida em Itararé, interior de São Paulo, no dia 6 de setembro de 1920 – a famosa véspera da data da Independência da República, “uma revolução”, como ela gostava de salientar – Elvira Cozzolino veio ao mundo determinada a desafinar o coro dos caretas. Filha de pai norte-americano e mãe paranaense, ela foi para o Rio – capital federal e Meca cultural do país – abalar as estruturas do conservadorismo com suas curvas, e se consagrar como cantora, atriz, compositora, mulher e vedete. O apresentador Heitor Brandão batizou a ela e à irmã de Irmãs Pagã, em 1935.

Elvira se apresentou com a irmã até meados da década de 1940. O casamento da outra foi o que ocasionou o fim da dupla, mais um indicativo do machismo vigente na época. Juntas, elas excursionaram pela América Latina, e gravaram músicas de Assis Valente e Ary Barroso. Assis Valente, aliás, conheceu o temperamento explosivo de Elvira Pagã de perto, quando ela lhe cobrou publicamente uma dívida. O fato ocasionou uma das muitas tentativas de suicídio do compositor. Elvira também tentaria tirar a própria vida em 1952, ao cortar os pulsos e permanecer internada no Hospital das Clínicas durante semanas. Elvira não negava a fama de escandalosa, e adorava ser uma Pagã.

Pecado. Segundo ela, o apelido que se colou à sua identidade era sinônimo de “atentado ao pudor, pecado e imoralidade”. Virtudes apropriadas a uma artista. O pioneirismo marcou sua trajetória. Primeira Rainha do Carnaval Carioca, ela estreou o biquíni na América do Sul ao rasgar um modelo duas peças, adaptado do também provocativo teatro rebolado. Sem papas na língua, indiferente às chamadas regras sociais da hipocrisia, definia o Carnaval de sua época como “uma orgia só”, com uma saborosa gargalhada de quem provou e se aproveitou da fruta até o caroço. Ela participou de chanchadas como “Cidade Mulher” (1936), “Carnaval no Fogo” (1949) e “Aviso aos Navegantes”.

Elvira gravou cerca de 50 músicas e compôs mais de uma dúzia, dentre elas títulos como “A Rainha da Mata” e “Condenada”, disponíveis para audição no site Discografia Brasileira. Nos anos 1970, tornou-se refratária aos holofotes, e passou a se definir como pintora, mística e sacerdotisa, “amante do mar e do sol”. Rita Lee, herdeira convicta de seu legado, jogou luz novamente sobre a figura marcante e única de Elvira Pagã ao compor em 1979, com o marido Roberto de Carvalho, o rock homônimo em homenagem à mulher que nunca se dobrou a convenções. “Então eu digo/ Santa, santa, só a minha mãe/ E olhe lá/ É canja-canja/ O resto põe na sopa pra temperar”, resume Rita, cheia de razão.

“Elvira Pagã” (rock, 1979) – Rita Lee e Roberto de Carvalho
Outra figura aplaudida por Rita Lee foi Elvira Pagã, vedete que, já na década de 1930, causou alvoroço na comportada sociedade brasileira da moral e dos bons costumes. Atrevida e colocando a libido no próprio nome artístico, Elvira também foi adepta das práticas de nudismo. De maneira debochada, Rita repreende as expectativas do homem comum, habituado à mulher comportada e obediente, na canção composta em 1979 com Roberto de Carvalho. O contrário de Elvira Pagã, figura escandalosa e explosiva, uma mulher ciente e lutadora de todos os seus direitos e liberdades. Rita avisa com ironia aos desavisados: “Santa, santa, só a minha mãe/ (E olhe lá!) é canja-canja…”, diz.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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