*por Raphael Vidigal
“A lembrança pura não tem data. Tem uma estação. Que sol ou que vento fazia nesse dia memorável? O devaneio não conta histórias…” Bachelard
Helena te pega pelo pescoço. Porém, aos poucos. A protagonista de “Helena Blavatsky, a voz do silêncio” é interpretada com galhardia pela atriz Beth Zalcman, sozinha no palco durante todo o espetáculo, a não ser que consideremos que os objetos do cenário e, sobretudo, a luz a acompanham, o que de fato acontece. O recurso do monólogo é herança do governo que ficou no passado com a nova eleição de Lula à presidência da República, período em que os artistas foram asfixiados tanto moral quanto financeiramente. A peça decorre desse período, o que sustenta a força de um de seus argumentos: a defesa da sabedoria, tão vilipendiada pelo nosso obscurantismo mais recente…
As informações sobre a protagonista são escassas. Uma senhora russa que, logo de cara, anuncia o dia da sua morte, sobre o qual a montagem se desenrola, nascida em 1831, que procura reconstituir sua vida através de acontecimentos que, logo intuímos, mudaram também a trajetória da Humanidade. Helena parece falar sobre filosofia, espiritismo, sublinhando os mistérios da existência e apegada à palavra “verdade”. O seu raciocínio, não raro complexo, ganha um ritmo próprio na expressão das palavras, e consegue se comunicar pelos gestos, que transmitem a paixão daquela mulher pelo que emerge de sua boca. Não fica muito claro sobre o que, afinal, ela de fato trata…
Descobrimos que passou uma temporada em Nova York antes de se apaixonar pela Índia, quando se tornou guru de Gandhi e foi sabotada por um casal de ingleses. As relações colonialistas e os preconceitos se imiscuem. Com certa ironia, Helena é peremptória ao afirmar que a maior parte da Humanidade não está lá muito disposta a refletir. Esta é, afinal, a grande missão de sua vida: elevar o pensamento à qualidade máxima, sem com isto determinar divisões corriqueiras, por exemplo, entre corpo e alma. Segundo ela, natureza e deus são apenas dois nomes diferentes para uma essência mesma. E tece uma bonita imagem, ao dizer que dela é apenas o laço de um ramo de flores, recitando Montaigne, o filósofo renascentista ligado à corrente do humanismo…
Pelo excesso de texto comum aos monólogos, a experiência pode soar enfadonha nos primeiros minutos, mas sabe chegar ao ápice e oferecer ao espectador a catarse que lhe pega pelo pescoço, invadindo a alma e, ao mesmo tempo, estimulando a reflexão crítica, distanciada, que permite ao homem – como, naquele tempo, era comum uma mulher à frente de seu tempo se referir à espécie e à Humanidade – dar um passo na direção de algo novo. É a luz, tanto da atriz quanto da direção, que conduzem o espectador nessa trajetória. Helena Blavatsky, mesmo para quem não a conhece ou jamais ouviu falar sobre Teosofia, doutrina filosófica e mística que propagou, fala sobre nós.
Ficha técnica
Texto original: Lucia Helena Galvão
Interpretação: Beth Zalcman
Encenação: Luiz Antônio Rocha
Cenário e Figurinos: Eduardo Albini
Iluminação: Ricardo Fujji
Foto: Andrea Menegon/Divulgação.