*por Raphael Vidigal Aroeira
“Onde alguém domina, existem massas: onde existem massas, há uma necessidade de escravidão. Onda há escravidão, os indivíduos são em número pequeno, e têm contra si o instinto de rebanho e a consciência.” Nietzsche
Foi ao chegar ao litoral português, na região do Algarve, para as locações, que “o personagem nasceu de fato”, relembra Paulo Azevedo. Natural de Belo Horizonte, o ator integra o elenco de “Sobreviventes”, último filme do cineasta José Barahona, falecido no ano passado, e que estreia nacionalmente no dia 24 de abril, tendo como pano de fundo algumas obsessões do diretor lusitano, como a escravatura e as implicações de um sistema sociopolítico injusto.
Paulo conta que “Sobreviventes”, no qual atuou ao lado de Roberto Bomtempo, Miguel Damião, Allex Miranda, Anabela Moreira e Zia Soares, dentre outros, com trilha na voz de Milton Nascimento, “é o resultado de quase dez anos de trabalho”. “A mensagem do filme é atemporal e trata de algo universal. Mesmo em uma situação extrema, é possível renunciar a preconceitos e valores ultrapassados para reconstruir uma nova história em sociedade?”, questiona.
O roteiro, assinado pelo escritor angolano José Eduardo Agualusa em parceria com Barahona, parte das expedições marítimas portuguesas no século XIX para flagrar uma trupe de náufragos que se encontra à deriva numa ilha isolada do Oceano Atlântico, composta por um fidalgo, um padre, um escravo, mãe e filha duma classe abastada e um marinheiro. Paulo Azevedo encarna o religioso.
Qual foi o processo, as referências e inspirações na composição da sua personagem?
O processo de criação do Padre Angelim foi intenso. Por conta do curto tempo de preparação, precisei confiar na parceria antiga com o José Barahona e contar muitas referências que já conhecia, como o livro “Nação Crioula”, do corroteirista e escritor angolano José Eduardo Agualusa, que serviu de inspiração para muitos personagens de “Sobreviventes”.
Assisti filmes, como “A Missão” (1986), de Roland Joffé; e “Silêncio” (2016), de Martin Scorsese; que trazem padres como protagonistas em contextos semelhantes, além do “Náufrago” (2001), de Robert Zemeckis, que foi uma indicação do próprio Barahona.
Como o Angelim nasceu em Portugal e veio ainda jovem para o Brasil, quis entendê-lo dessa mistura de culturas e da falta de pertencimento por meio de um sotaque que ficasse entre o português lusitano e o brasileiro. Para isso, contei com o acompanhamento da fonoaudióloga e cantora Mariana Brant, antiga parceira em outros trabalhos.
Acredito que o personagem nasceu de fato quando cheguei nas locações no litoral português, na região do Algarve. Foram quase 2 meses, muitas horas por dia sob o sol e o frio da noite, lidando com o poder da natureza e a impotência humana disso, que também é um dos temas do filme.
Na sua opinião, o que “Sobreviventes” tem a dizer de mais forte para o momento atual do Brasil e do mundo?
“Sobreviventes” é o resultado de quase de 10 anos de trabalho. A mensagem do filme é atemporal e trata de algo universal: mesmo em uma situação extrema, é possível renunciar a preconceitos e valores ultrapassados para reconstruir uma nova história em sociedade?
Estamos em contexto muito difícil. De individualidade extrema, enfraquecimento do coletivo, em que muitos acreditam que ações totalitárias são solução imediatas para antigos problemas. Como se as nossas diferenças, uma das maiores riquezas humanas, fossem algo possível de ser eliminado. Nos últimos anos, tristemente estamos vendo a história se repetir como se o mundo fosse dividido entre quem é humanista e quem não é.
A arte está sempre à frente. Abordar qualquer tema por meio de uma música, um filme ou uma peça de teatro é sempre muito poderoso. A arte é um espelho que nos acessa pelos sentidos, pela emoção e nos convida à reflexão e provoca a mudança.
Como foi trabalhar com o cineasta José Barahona em seu último filme e pouco antes da morte do cineasta?
Tínhamos muita afinidade em vários aspectos, como pensar o cinema como um ato de reflexão sobre o mundo. A nossa parceria rendeu não só filmes, mas uma amizade que extrapolou os sets de filmagens. Vi seus filhos crescerem. A Carolina Dias, sua parceria na vida e no cinema, é outra amizade que surgiu desse nosso encontro. O Zé, como era carinhosamente conhecido, me deu Portugal como outra casa. A cada nova ideia, ele sempre me contava e pensava uma maneira de continuarmos trabalhando juntos. Tínhamos muita admiração, afeto e respeito mútuo, mesmo nas diferenças.
Conheci o Barahona em 2013 no teste para protagonizar o longa “Estive em Lisboa e Lembrei de Você”, baseado no livro homônimo do escritor mineiro Luiz Ruffato (disponível na AppleTV). Tivemos uma conexão imediata. Os meses de filmagem entre o verão de Cataguases, no interior de Minas, e o inverno de Lisboa revelou uma visão comum de pensar a obra como um todo, além da paixão pelo Brasil.
Não à toa, ele me convidou para o docficção “Alma Clandestina” (2018), que retrata a intensa e breve trajetória de Maria Auxiliadora Lara Barcellos, que foi uma militante política que lutou contra a ditadura brasileira nos anos 1960. É muito especial que precisa ser mais visto e dialoga com “Ainda Estou Aqui” e muitos outros filmes que buscam revelar importantes personagens pouco conhecidos da nossa história recente.
Nosso último encontro foi na estreia de “Sobreviventes”, em maio de 2024. Ele estava muito feliz com filme, que nasceu da ideia de criar uma história no lugar (agora imortalizado na tela) onde sempre visitava com a família. Ainda é muito difícil lidar com sua passagem, tão precoce. Ele tinha um novo projeto: um filme policial rodado no Rio de Janeiro, protagonizado por mim e o Roberto Bomtempo. Mesmo lutando pela cura, ele continuava sonhando cinema. Sua paixão pelo cinema e esta história era enorme. O Zé era um incansável operário da sétima arte. E isso está na tela.
O que esse trabalho significou na sua trajetória artística e pessoal? Quais foram os maiores desafios desse processo?
Estou completando 25 anos de carreira profissional, com mais de 20 filmes e 20 espetáculos. Cada novo trabalho é uma celebração do ofício de atuar. Uma nova chance de reafirmar a vocação, ainda mais em um país com políticas públicas culturais tão precarizadas. Sinto que “Sobreviventes” é um marco da minha maturidade artística e um posicionamento importante como pessoa. Estar em um projeto com profissionais de diferentes países foi extremamente rico. Essa convivência trouxe diferentes olhares para a narrativa.
Foi um presente voltar a trabalhar como um parceiro como o Barahona. Criamos um espaço de confiança na qual era possível dialogar sobre os roteiros, muito além da composição dos meus personagens, o que é algo raro e muito especial no audiovisual. Mesmo antes de entrar para o elenco de “Sobreviventes”, tínhamos longas discussões sobre o roteiro e as diferentes visões sobre a escravatura entre o Brasil e Portugal.
O desafio maior foi mergulhar nos meus próprios preconceitos. É um grande exercício dar vida a um personagem como Padre Angelim e não o julgar por suas atitudes e falas terríveis, ainda presentes no nosso cotidiano. Ele um personagem covarde, medroso, com um passado obscuro, que se esconde atrás de uma batina, de uma instituição. Acredito que tenha sido meu trabalho mais complexo: desde lidar com as intensas rotinas de filmagens a lidar com a curva emocional do Angelim ao longo da trama.
Qual a importância de se debater um tema como a escravatura através da arte na sua opinião?
É preciso sempre relembrar determinados fatos da história. A escravatura foi um dos maiores genocídios da humanidade e não pode se repetir jamais. A arte acaba sendo um instrumento poderoso de manutenção da memória. Quantos filmes sobre a 2ª guerra já não vimos e, ainda hoje, vemos a ascensão nazista? “Sobreviventes” é um filme de aventura o que torna essa discussão ainda mais acessível para todos os públicos.
Foi curioso perceber a reação do público, tanto na estreia no IndieLisboa – Festival Intl. de Cinema quanto na Mostra de Cinema de São Paulo. Muitas pessoas vieram me dizer da raiva que sentiram do Angelim, o que é um presente enorme pra mim! Ver a conexão da plateia com o filme é muito gratificante. O profundo silêncio no final das sessões no Brasil mostra o quanto ainda estamos longe de encerrar as discussões sobre racismo e seus impactos na nossa realidade. A desigualdade, a pobreza e o genocídio de pessoas pardas e pretas são frutos desse trágico capítulo da nossa história, que entrelaça muitos países.
De que maneira diálogos entre os cinemas de língua portuguesa podem ser intensificados, a partir deste e de outros filmes?
O português é o 4º idioma mais usado no mundo. Quase 300 milhões de pessoas têm o português como língua oficial. Existe um mercado imenso a ser explorado, a começar de políticas públicas que incentivem eventos e ações que promovam o intercâmbio. Nossa cultura é imensa e pode ter um alcance global, como a nossa música, nosso cinema e nossas novelas já provaram.
Existem cineastas e outros artistas portugueses incríveis que admiro muito e gostaria de ver seus trabalhos circularem mais pelo Brasil. Agora estamos discutindo a regulamentação dos streamings e a cota de telas. Esse é um passo importante para que consigamos dar mais fôlego e visibilidade para a nossa indústria cultural. Afinal, é uma das que mais gera empregos e mais dá retorno aos cofres públicos a cada real investido, sem contar o imensurável valor humano e simbólico. Temos vários exemplos disso: há poucas décadas, não conhecíamos a cultura coreana. Por meio de política pública e estratégia, hoje assistimos doramas, filmes ocupam destaques nas principais premiações e os artistas de K-pop lotam estádios no mundo todo.
Como assistiu ao Oscar para “Ainda Estou Aqui” e o que isso pode representar para o cinema de língua portuguesa?
Assisti ao Oscar em casa, mas acompanhado pelos gritos das pessoas nas ruas do meu bairro, em São Paulo. Eu estava totalmente viciado na Fernanda Torres e suas entrevistas mundo afora. Foi tudo muito emocionante e representativo. Mais que o prêmio em si, o filme trouxe maior visibilidade internacional para nossa cultura e deu aos brasileiros a chance de ser orgulhar novamente do nosso país.
Desde que li o livro do Marcelo Rubens Paiva e o entrevistei para o meu podcast, o Almasculina, estava ansioso para ver a adaptação do genial Walter Salles para o cinema. Quando assisti “Ainda Estou Aqui”, sai com a mesma sensação que tive ao ver filmes como “Central do Brasil”, “Lavoura Arcaica”, “Cidade de Deus” e tantos outros que reafirmam nossa potência criativa e poética.
“Ainda Estou Aqui” é um marco histórico e espero que possa impulsionar mudanças significativas para o mercado audiovisual em língua portuguesa. Estou ansioso para acompanhar as pré-estreias no Brasil e a exibição de “Sobreviventes” na Mostra Competitiva do Festival du Cinéma Brésilien de Paris, ao lado de grande artistas do nosso cinema. O Brasil será o “País de Honra” no Marché du Film que acontece durante o Festival de Cannes 2025, que pode contar importantes obras na competição. Espero que o Brasil continue positivamente em foco no cenário mundial e atraia mais investimentos.
Quais os seus projetos para 2025? Há novos filmes ou participações em outras produções audiovisuais a caminho?
Meu foco agora é o lançamento de “Sobreviventes” no Brasil, após estrear nos cinemas portugueses. E após estrear meu solo, “Heróis”, em 2020, volto aos palcos com uma comédia dramática, realizada em parceria com as incríveis Cris Wersom e Juliana Rosenthal. “Dá Trabalho” estreia no dia 2 de julho, em São Paulo, para depois seguir em turnê pelo Brasil.
A peça aborda a saúde mental no trabalho e o enorme impacto que o burnout, a depressão e a ansiedade gera na vida das pessoas. É uma questão urgente e os dados no Brasil são alarmantes: o número de afastamentos por burnout não para de crescer. Ocupamos o 1º lugar em ansiedade e o 4º em depressão no mundo. O humor é uma via poderosa de aproximação com o público. Tem sido um prazer enorme experimentar essa linguagem, ao lado de parceiras tão especiais. A peça provoca reflexões de forma leve e facilmente reconhecíveis para que consigamos encontrar caminhos para mudar esse quadro que exige o comprometimento de toda a sociedade.
Como a sua origem mineira está presente na sua formação como ator e de que maneira ela foi importante para este filme, “Sobreviventes”, em especial?
Minas é a base da minha formação e meu jeito de olhar o mundo. Nasci e cresci em Belo Horizonte. Percebi que minha vocação era possível assistindo os trabalhos do Grupo Galpão, Grupo Corpo, Oficcina Multimédia, Yara de Novaes, Uakti, Dudude, Clube da Esquina e tantos outros coletivos e artistas de tantas áreas. Tive a honra de trabalhar com muitos que são uma referência pra mim. E trago um pouco de cada um em mim. Sou muito orgulhoso disso.
Estou em São Paulo há mais de 15 anos. Costumo ouvir que um diferencial do artista mineiro é nosso afeto e capacidade de olhar a obra como um todo. Temos a capacidade de transitar por várias funções e linguagens com domínio e criatividade. Acredito que o fato de atuar, dirigir, escrever e produzir é um pouco fruto desse nosso jeito de fazer e entender a arte como um ato coletivo. E isso, em “Sobreviventes”, foi bastante evidente. A admiração da equipe pela forma como trabalhamos, com disciplina, dedicação e aprofundamento chama a atenção. Antes de ir para o set, por exemplo, eu já estava imerso no roteiro, no contexto histórico, temas e a visão do Barahona para contar esta história. Além disso, manter a curiosidade, o interesse nas pessoas e a abertura para manter-se em movimento.
Crédito da foto: Hugo Azevedo/Divulgação