*por Raphael Vidigal
“E, se acontecesse o pior, a existência estava lá, presa nas palavras, guardada naquela que sobrevivesse.” Eliane Brum
O movimento era fundamental. Mas não era um movimento comum. Paula Santoro mexeu a cabeça para frente e para trás, tentando alcançar a mente através do corpo. “Eu quero um álbum que faça as pessoas mexerem a cabeça assim”. Mineira de Belo Horizonte, radicada no Rio, a cantora acaba de lançar o seu sétimo álbum de estúdio.
“Todo álbum que faço sempre vai se mostrando para mim, na medida em que vou escolhendo o repertório de forma intuitiva. Depois de uma certa quantidade de músicas escolhidas, eu começo a compreender a cara do álbum. Muitas vezes, há um tema escondido ali, que se desvenda quando começo a analisar as letras e pensar em um conceito. Gosto de álbum com conceito. Pode ser legal só um desfile de canções também. Mas os meus álbuns quase todos têm um conceito”, salienta.
“Sumaúma” concentra dez canções, alinhavadas segundo a perspectiva de Paula, com compositores contemporâneos como Alexandre Andrés e Bernardo Maranhão, autores da faixa-título, e medalhões da MPB do porte de João Donato e João Bosco, que, inclusive, participam do álbum. “O critério de seleção começa pelos compositores que quero gravar ou a sonoridade que quero para o álbum, o clima. Nesse caso específico de ‘Sumaúma’ foram esses três parâmetros: compositores, sonoridade e clima”.
Ritmo. “Como que dançando com a cabeça”, Paula explicitou para o produtor Rafael Vernet a ideia do disco. A presença dessa vibe rítmica, do groove, como ela qualifica, se tornou decisiva e trouxe um diferencial em relação a seus trabalhos anteriores, sem perder de vista o requinte melódico e harmônico. A intérprete aproveitou essa característica para transformar o sonho em realidade: cantar com dois ídolos. João Bosco comparece com “Sassaô”, raridade de sua discografia em que ele compõe música e letra. A canção foi originalmente lançada em 1989.
“Levamos a música do João para um lugar mais africano do que a versão original, e aquela voz gutural dele contribuiu brilhantemente para o africanismo que quisemos imprimir na faixa”, observa. Donato tampouco se fez de rogado. Personalíssimo, como de praxe construiu o arranjo, cantou e tocou em sua participação. “Ficou bem a cara dele!”, constata Paula. Espécie de bossa-bolero de 2001, “Ê Lala Lay Ê” é uma canção de ninar às avessas, alegre, solar, feita por Donato e seu irmão Lysias Ênio para a mãe.
Feminina. A concepção de maternidade, no álbum, se constitui de forma ampla, como uma retomada da relação afetiva, de cultivo e cuidado, com a terra-mãe, o planeta, as raízes, o chão onde pisamos. Dessas intersecções surgiu o batismo de “Sumaúma”, árvore considerada sagrada pelos maias. “Segundo eles, ela une o mundo subterrâneo, de raízes profundas, com o mundo celestial, com sua copa muito alta, através do tronco, que representa o mundo dos homens”.
Coincidentemente, ou porque ambas estão conectadas com o seu tempo, “Sumaúma” é também o nome do portal de notícias criado pela jornalista Eliane Brum, que atualmente empreende uma luta pela preservação da Amazônia diretamente de Altamira, no Pará, epicentro das disputas entre garimpeiros, grileiros, narcotraficantes e povos originários de diversas etnias indígenas na região tida como a mais violenta do Brasil.
“Eu penso que ‘Sumaúma’ conceitua bem um disco que fala do feminino, da natureza e da distopia. Essa música fala de tudo isso, fala dos índios quando cita o aluá, que é uma bebida típica deles; fala da floresta; da distopia de ‘algum lugar, além do cais, além da dor, além da lenda, além da lei, além da arenga, além da lenga-lenga, além’”, cantarola Paula. “A lenga-lenga para resolver os problemas urgentes, a dor. A mãe é a própria árvore que acumula água no período das chuvas, para depois drenar essa água para as plantas que estão ao redor no período das secas”, elabora a entrevistada.
Envolvida. Paula entrou nessa onda de cabeça. E de corpo e alma, literalmente. “A parte visual do disco ficou absurdamente linda e conectada com o conceito. Realmente, eu caprichei quando escolhi tantos profissionais da área visual que são geniais”, derrete-se, sem disfarçar o orgulho. O processo começou pelo entendimento de que o álbum teria o nome da árvore considerada mãe da floresta: “Sumaúma”.
Uma viagem ao lado da fotógrafa Márcia Charnizon para Lavras Novas, no interior de Minas Gerais, possibilitou o encontro com o artista plástico Advânio Lessa, “que faz árvores de cipó que mais parecem seres extraterrestres, tamanha a energia que emanam”, e de quem ela já admirava as obras. Desde então, “só pensava nas árvores do Advânio”. A ansiedade as levou à cidade um dia antes do marcado para as fotos.
“No jantar com Advânio, entendemos que eu teria que ser envolvida pela arte dele, eu teria que estar nua e me vestir, me transformar na árvore ou na semente da árvore”, conta. Leonora Waissmann e Júlio Abreu deram forma ao projeto gráfico, enquanto Menote Cordeiro ficou responsável pelos desenhos da capa e da contracapa. O brilho expressivo salta aos olhos de Paula e dos que ouvem a sua arte.
Importância. Em 1981, já morando em Belo Horizonte, onde passou os últimos doze anos de sua vida, o carioca Gonzaguinha, criado no Morro de São Carlos, no Rio, lançou em um show comemorativo ao Dia do Trabalhador a música “Coisa Mais Maior de Grande”. “Amo Gonzaguinha, e nunca tinha gravado nada dele”, sublinha Paula. O derradeiro movimento do álbum da mineira é, justamente, recuperar uma parte dessa canção que veio ao mundo num momento em que o Brasil ainda se debatia contra uma cruel ditadura militar, e clamava por liberdade, dignidade e direitos sociais.
“Eu cantei o que eu queria dizer com a música. Portanto, é o que chamamos de excerto. Não é a música completa. Mas isso deu um vigor para a música, no sentido de ela não ser muito longa, porque hoje em dia ninguém tem muito tempo para ouvir faixas muito longas até o fim. Essa redução do tamanho tornou mais claro e objetivo o que eu queria dizer com ela, a ponto de eu escolhê-la para fazer um clipe. Estrategicamente, eu coloquei ela no final do álbum porque eu queria deixar uma mensagem de esperança: ‘Enquanto eu acreditar que a pessoa é a coisa mais maior de grande’. Ou seja, enquanto eu acreditar no poder do ser humano e sua potência para transformar o mundo, esse mundo ainda tem solução”, acredita.
Outro trecho que a seduziu, diz: “Nada se repete sob o sol/ Pois nada se repete, nem o sol”. “Essa frase é muito significativa para mim. Estamos em constante transformação. Em constante mudança. E sempre haverá um dia após o outro e outra oportunidade de mudarmos o mundo, pelo menos aquele ao nosso redor. O que já é muito!”, garante.
Preservar. Paula não esconde a tristeza com o que “as grandes corporações têm feito com o planeta”. Porém, escolheu transformar essa lágrima em luta. “O nível de destruição dos rios, das florestas, da fauna e flora é assustador. Este álbum pretende chamar a atenção para essa urgência de fazermos algo pela preservação do pouco que nos resta. E também chama a atenção para a distopia de nossa sociedade, em termos mundiais, não só no Brasil”, conclama.
“E Daí? (A Queda)”, parceria de Milton Nascimento com o cineasta Ruy Guerra capta esse espírito de desespero e obstinação, conjugando medo e esperança. “A música fala dessa sociedade distorcida e sem humanidade de forma mais escancarada, sem deixar de ser metafórica também. É muito triste ver o descaso com a educação, a cultura e, principalmente, a condição sub-humana que tantos vivem. O planeta está passando fome e o índice de desemprego é avassalador. Muita gente na rua. Difícil ver essa realidade e ainda assim conseguir ser feliz. Trabalho a arte como um instrumento de transformação e conscientização”, afirma.
Embora acredite que a situação possa melhorar a médio e longo prazo, Paula aponta para os problemas estruturais do país. “O Brasil é um país com dimensões continentais e, portanto, diversas condições climáticas e paisagens, e culturas regionais totalmente diferentes. Conseguir abarcar tudo isso e transformar o país e cada microrregião é um trabalho de toda uma vida! Eu acho que eu não verei um país mais justo e igualitário. Ademais, com toda essa engrenagem viciada e burocrática que o Brasil possui, há um atraso em certas mudanças que deveriam acontecer já”, afiança.
Esperança. Consciente do retrocesso patrocinado pelo governo Bolsonaro, Paula, nem por isso, desiste da reconstrução, como a protagonista vivida por Björk em “Dançando no Escuro”, filme de Lars von Trier, que se sacrifica pela geração futura. “O mais grave é que, em termos de educação, esse país ainda é muito arcaico. As escolas tinham que ser modernizadas para criar interesse nas novas gerações. Sem uma reforma real na educação não haverá nunca uma conscientização política, nem social. Temos que nos ver como um povo só, como uma gente só que luta por um país melhor. Essa divisão política não nos leva a nada. E, ainda, repito: as grandes corporações não estão nem aí para preservar a natureza ou dar condições melhores para seus empregados”, reforça.
“Então, a ignorância do povo gera uma falta de luta pelos nossos direitos como cidadãos e essa roda continua girando no mesmo sentido: os ricos ficando mais ricos e os pobres ficando mais pobres, e a classe média sendo esmagada e também empobrecendo. E olha que somos um dos países mais ricos em recursos naturais e ótimas condições climáticas para criarmos um país do qual possamos nos orgulhar. Enquanto não houver mais consciência política e educação não haverá um futuro justo nesse país. Viva a Cultura e a Educação! Fora a fome! O governo atual do presidente Lula está trabalhando para isso”, conclui.
Foto: Márcia Charnizon/Divulgação.