As melhores músicas brasileiras para o Dia Internacional das Mulheres

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Sou uma mulher que sorri.
Não passei dos trinta.
E como um gato tenho nove vidas.” Sylvia Plath

Não é de hoje que as mulheres bradam na música brasileira. O clamor pela igualdade e contra práticas abusivas vem de tempos remotos até os mais atuais. Ícones da cultura nacional influenciam e influenciaram nossas compositoras, como Leila Diniz, Elvira Pagã, Pagu e Luz Del Fuego, além de histórias cotidianas vividas por anônimas com as quais muitas se identificam. É o caso da “Maria da Vila Matilde” cantada por Elza Soares. Em verso, prosa e muito ritmo, selecionamos músicas brasileiras para celebrar o Dia Internacional das Mulheres, através do talento de Rita Lee, Cássia Eller, Angela Ro Ro, Joyce, Marina Lima, Elis Regina, Maria Bethânia, Fafá de Belém, e muitas outras. Afinal de contas, música é uma palavra feminina.

“Paraíba” (baião, 1950) – Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira
Embora seja o nordeste brasileiro identificado com frequência junto a um universo machista e de preconceitos, Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira quebraram esse paradigma de maneira enviesada em 1950. Outro forte costume da região é também o das mulheres fortes, que, não por acaso, tornam-se as lideranças das famílias e dos lares, capazes de enfrentar os maiores desafios e as violências dos próprios maridos e da moral do ambiente. No baião “Paraíba”, os compositores provavelmente prestam homenagem a essa figura bem atribuída à mãe, e reiteram: “Paraíba masculina, mulher macho, sim senhor!”. A música foi regravada pela leoa do norte Elba Ramalho.

“Pérola Negra” (MPB, 1972) – Luiz Melodia
Luiz Melodia compôs “Pérola Negra” em 1969, quando tinha 18 anos, e a batizou de “My Black”. Descoberto no bairro do Estácio pelos poetas Torquato Neto e Wally Salomão, recebeu a sugestão de Wally de mudar o nome da música para “Pérola Negra”, que era o “nome de guerra” de uma travesti que Wally conhecia. Foi também Wally quem levou a música para Gal Costa lançar em 1972, no show “FA-TAL: GAL A TODO VAPOR”. Em 1973, Luiz Melodia gravou a sua versão para o seu maior sucesso, no primeiro disco da carreira.

“Luz Del Fuego” (rock, 1975) – Rita Lee
Rita Lee certamente é a compositora com o maior número de obras identificadas ao feminismo, e também a que mais homenageou personagens desta seara. À sua maneira leve e descontraída, Rita inicia o ritual em 1975, no rock “Luz Del Fuego”, uma ode à icônica dançarina que provocou escândalo na sociedade brasileira com suas práticas liberalistas. Adepta do nudismo e do naturalismo, Luz foi brutalmente assassinada em 1967, aos 50 anos, mas seu legado de liberdade e amor continuou colocando fogo nos costumes e na hipocrisia. Sua história foi levada ao cinema em 1982, quando foi interpretada por Lucélia Santos. Luz Del Fuego foi aquela “que não tinha medo”, canta Rita.

“Dentro de Mim Mora Um Anjo” (MPB, 1975) – Sueli Costa e Cacaso
João Medeiros, que já era parceiro musical de Sueli Costa, foi quem a apresentou ao poeta Cacaso. Carioca criada em Juiz de Fora, Sueli logo se identificou com o mineiro de Uberaba que se mudou para o Rio. Juntos, eles criaram “Dentro de Mim Mora Um Anjo”, que foi gravada, em 1975, por Sueli para a trilha da novela “Bravo”, da Rede Globo. Atenta, Fafá de Belém não demorou a perceber a beleza daquela canção, e a regravou em seu terceiro disco de estúdio, “Banho de Cheiro”, lançado em 1978. A música abria o álbum em que Fafá aparecia na capa com um generoso decote e seu olhar sensual. A música foi gravada por Leila Pinheiro, Lucinha Lins e Wanderléa, entre outras.

“Perigosa” (música disco, 1978) – Rita Lee, Roberto de Carvalho e Nelson Motta
As Frenéticas foram um grupo formado pelo jornalista e compositor Nelson Motta, que acabara de inaugurar uma casa de espetáculos e teve a ideia de contratar garçonetes que, no meio da noite, subiriam no palco para cantar. O projeto deu tão certo que elas rapidamente se tornaram uma febre nacional. No período da invasão da música disco no Brasil, o grupo também trazia um discurso feminista, de liberação do prazer e da sexualidade feminina sem grilos nem dores de cabeça. É esse discurso que contamina toda a melodia e a letra da canção “Perigosa”, uma criação de Rita Lee, Roberto de Carvalho e do próprio Nelson Motta lançada em 1978 pela trupe. Um hino do prazer feminino.

“Agito e Uso” (rock, 1979) – Angela Ro Ro
Angela Ro Ro sempre conciliou o teor confessional a um distanciamento propício ao deboche em suas composições, sem nunca abrir mão da veia autobiográfica. Polêmica, perspicaz, piadista e homossexual assumida, foi uma das compositoras que melhor representaram a estética do blues no Brasil, e por isso se tornou admirada por artistas como Cássia Eller e Cazuza. Logo em seu disco de estreia, em 1979, Angela desafiava padrões, convenções e até a polícia. É o que fica explícito no rock “Agito e Uso”, de 1979, em que ela manda as regrinhas do bom comportamento para as cucuias; como a mulher corajosa que sempre foi. “Sou uma moça sem recato”, elabora nos versos iniciais.

“Essa Mulher” (MPB, 1979) – Joyce e Ana Terra
Joyce e Ana Terra são duas das compositoras mais proeminentes e pioneiras da música brasileira. As duas tomaram as rédeas da composição feminina em uma espécie de segunda onda desse movimento, após o aparecimento de nomes como Dolores Duran e Maysa nos anos 1950. Não foi por acaso que, em 1979, a música “Essa Mulher”, parceria da dupla, deu nome ao disco de Elis Regina, que trazia uma belíssima flor na capa. Segundo Elis, as compositoras “conseguiram traduzir o dilema das mulheres que”, assim como ela, “trabalham e cuidam da casa e da família”. A música é uma das mais fortes desse repertório.

“Mel” (MPB, 1979) – Caetano Veloso e Wally Salomão
Depois de gravar “Mel”, em 1979, Maria Bethânia passou a ser conhecida como a “Abelha-Rainha da MPB”, dado o sucesso da canção, que traz, logo no primeiro verso, essa denominação. A história da música que deu nome ao LP de Bethânia é curiosa. Encomendada a Wally pela cantora, que já havia gravado, de sua lavra, “Anjo Exterminado” e “A Voz de Uma Pessoa Vitoriosa”, ela enfrentou percalços. Wally já pesquisava o tema, mas empacou no meio e Caetano, responsável pela melodia, aconselhou Bethânia a desistir. Pelo contrário, ela afirmou que queria Wally “mil vezes mais tenso”. Foi esse o raio que impulsionou Wally a finalizar a letra de “Mel”, que cita espécies de abelha. “Ó abelha rainha faz de mim/ Um instrumento de teu prazer/ E de tua glória…”.

“Feminina” (MPB, 1980) – Joyce
De maneira um pouco menos explícita e mais comedida, Joyce também contestou, em seu disco, “Feminina”, de 1980, as obrigações que a cultura machista legava às mulheres. Na música de mesmo título, a compositora e cantora ensaia um suposto diálogo com a mãe, que seria representante desta tradição, e desvirtua o rumo da conversa. Afinal a mulher feminina de Joyce possui caminhos, possibilidades, e tem toda a liberdade para traçá-los como bem desejar. Uma típica peça da nossa MPB que encanta pela singeleza dos acordes, centrados no melhor do nosso samba, em que Joyce desfia o poema: “Termina na hora de recomeçar, dobra uma esquina no mesmo lugar…”.

“S.O.S. Mulher” (pop, 1981) – Vanusa
Em 1999, Vanusa lançou a autobiografia “Ninguém É Mulher Impunemente”, onde revelava agressões sofridas pelo pai e alguns de seus maridos. Casada seis vezes, a cantora paulista sempre levantou a bandeira da independência da mulher e do feminismo em suas canções. Uma das mais emblemáticas nesse quesito é, certamente, “S.O.S. Mulher”. A letra traça um retrato da violência diária a que as mulheres são submetidas no Brasil, muitas vezes presas em relacionamentos abusivos com a condescendência da sociedade, para, em seguida, conclamar as mulheres à luta: “Acorda pra vida e pede socorro/ Nada vale esse jogo/ No sufoco, vale tudo/ Ah, bota a boca no mundo!”.

“Gata Todo Dia” (balada, 1981) – Marina Lima, Léo Jaime e Tavinho Paes
Marina Lima sempre conjugou modernidade com elegância. A contenção procurada em seus versos e melodias, baseados em uma estética pop nunca impediu o discurso avançado, libertário e inovador. Marina representa a mulher moderna, livre, leve, solta e “Gata todo dia”, como canta na balada lançada por ela em 1981, uma parceria com Léo Jaime e Tavinho Paes. Além de ser uma ode aos prazeres da mulher, explicita também como ela constantemente desafia os limites impostos pela sociedade machista do patriarcado. Marina se expõe sem concessões, sem favores, sem pedir licença, assumindo o lugar de direito. “Tomo banho é de lambida”; “Mando na minha cabeça”, afirma a gata.

“Grávida” (MPB, 1991) – Arnaldo Antunes
Outra contribuição de Marina Lima para o universo feminista foi a música “Grávida”, música de Arnaldo Antunes gravada por ela em 1991. Nela, Marina revela outra faceta da mulher moderna, livre. O desejo da maternidade que não anula em nada as outras conquistas e os ambientes que esta mulher explora. Por isso a grávida da canção é capaz de gerir um filho como também “um terremoto, uma bomba, uma cor, uma locomotiva a vapor”. A capacidade geradora da mulher, seu senso de maternidade se aliança, desta maneira, às novas expectativas e perspectivas de um mundo moderno. Que talvez tenha começado quando Leila Diniz, grávida, expôs a barriga na praia em seu biquíni.

“Todas as Mulheres do Mundo” (rock, 1993) – Rita Lee
Rita Lee havia prometido uma canção para homenagear Leila Diniz em 1972, quando a atriz morreu aos 27 anos em um trágico acidente de avião. “Todas as Mulheres do Mundo”, título retirado do filme que Domingos Oliveira ofereceu à ex-mulher e que também explicita a relação de reverência e fascínio que Leila exercia sobre o diretor; só ficou pronta em 1993. Um rock ligeiro, rasgado, sem lero-lero, sem blá-blá-blá, com o espírito de Leila em seu embrião. E de todas aquelas que Rita cita em sua ode à mulher moderna, dentre elas: Dercy Gonçalves, Roberta Close, Dolores Duran, Luiza Erundina, Hortência, Ruth Escobar e a própria mãe. A música foi regravada, com gana, por Cássia Eller.

“1º de julho” (MPB, 1994) – Renato Russo
Em 1994, Renato Russo compôs especialmente para Cássia Eller a música “1º de julho”, em homenagem ao filho da cantora que acabara de nascer, Francisco, conhecido e chamado por ela de Chicão. Além de lançar uma luz poética e sensível sobre os mistérios da maternidade, Renato também acende sua lâmpada para a capacidade transformadora da mulher, os ciclos que a tornam não-linear, interessante e liberta das convenções de um mundo fadado ao preconceito e ao fracasso. Cássia Eller canta com toda a propriedade: “Sou fera, sou bicho, sou anjo e sou mulher, sou minha mãe, minha filha, minha irmã, minha menina, mas sou minha, só minha e não de quem quiser…”.

“Pagu” (rock, 2000) – Rita Lee e Zélia Duncan
Patrícia Galvão foi uma jornalista como poucas no Brasil. Como era de se esperar, não se ateve a uma só atividade. Foi escritora, poeta, diretora de teatro, incentivadora de Plínio Marcos, musa do modernista Raul Bopp, desenhista e militante do comunismo, sendo a primeira mulher presa no país por essa motivação, no início da década de 1930. É a essa figura lendária, folclórica e real, uma mulher de carne e osso que se sabia livre e dona do próprio destino e nariz que Rita Lee e Zélia Duncan se referem no rock lançado por elas já nos anos 2000. Provas de que Pagu continua revolucionando. “Nem toda feiticeira é corcunda, nem toda brasileira é bunda…”, as três afiançam.

“Maria da Vila Matilde” (pop rock, 2015) – Douglas Germano
Não é de hoje que Elza Soares representa a mulher sobrevivente, batalhadora, livre, dona de seus desejos e vaidades. Para coroar a carreira da nonagenária intérprete, nada melhor do que a canção “Maria da Vila Matilde”, peça que conjuga samba e música eletrônica, na veia da nova MPB, cheia de modernidade sem esquecer a tradição, bem ao estilo ousado e inquieto de Elza. Denúncia clara à violência contra a mulher, a canção serviu para suscitar debates e cumpriu com sua função social. Mais do que isso, exprimiu a arte de uma mulher talentosa, guerreira, determinada, que não abre mão de seus prazeres. A música ganhou uma versão do bloco feminista Sagrada Profana para o Carnaval de BH.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]