Relembre sucessos de Martinho da Vila: Mestre do samba e do partido-alto

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Dinheiro, pra quê dinheiro?
Se ela não me dá bola
Em casa de batuqueiro
Só quem fala alto é viola” Martinho da Vila

Martinho José Ferreira, o popular Martinho da Vila, ficou assim conhecido porque foi criado em Vila Isabel, bairro do Rio que também abrigou Noel Rosa. Martinho nasceu no dia 12 de fevereiro de 1938, em Duas Barras, município do Rio de Janeiro. Mudou-se para a capital com apenas quatro anos, e logo se enturmou com a galera do samba. Em 1967, se apresentou no Festival da TV Record. Dois anos depois, em 1969, gravou o primeiro disco e logo de cara emplacou um grande sucesso: “O Pequeno Burguês”, um samba sempre atual.

“Pra Quê Dinheiro?” (samba, 1969) – Martinho da Vila
Martinho da Vila provava, em 1969, que o assunto dinheiro não é unânime. Desmentindo a tese de que com dinheiro a vida é mais fácil e as conquistas vêm a reboque, o sambista relata o caso da mulher que se apaixonou pelos encantos de um bom tocador de viola e desprezou aquele que tinha dinheiro. Afinal de contas “em casa de batuqueiro/só quem fala alto é viola” deixa claro em certa altura da letra. A música foi regravada pela dupla sertaneja Chitãozinho & Xororó e pelo cantor Jair Rodrigues, comprovando o poder de identificação com várias camadas da nossa sociedade. Ou seja, a dimensão econômica da existência não necessariamente amplia ou anula as demais, como pensam alguns.

“Casa de Bamba” (samba, 1969) – Martinho da Vila
Martinho da Vila havia sido revelado para o grande público um ano antes, em 1968, ao cantar, no Festival da Canção daquele ano o partido-alto “Menina moça”. No entanto, poucos números da carreira do autor se comparam ao êxito de “Casa de bamba”, registrada por Jair Rodrigues e Martinho da Vila no mesmo ano, em 1969. Jair revelou a pérola em seu LP “Jair de Todos os Sambas”, e pela vida inteira repetiu a canção em shows, sempre com o mesmo sucesso e aclamação do público, no compasso da malemolência que pedia a letra. “Na minha casa/Todo mundo é bamba/Todo mundo bebe/Todo mundo samba”.

“Quem É do Mar Não Enjoa” (samba, 1969) – Martinho da Vila
A origem para a profusão de ditados entre os brasileiros tem uma explicação convincente no processo de colonização do país. Como os escravos não podiam se comunicar abertamente, estabeleceram uma linguagem codificada. A semelhança com a poesia, nesse aspecto, dá a medida exata do por que uma nação mestiça, influenciada pela cultura de portugueses, italianos, holandeses, japoneses, africanos, e outros mais, concebeu expressão tão rica e singular. A música é mais uma prova desse estilo. Por vias do samba, da marchinha, do rock e da vanguarda, e através das décadas de 30, 40, 50, 60, 70, 80, 90, até os dias atuais, o Brasil se estabeleceu como o país dos ditados. Tão populares que alguns já mereceram, inclusive, as páginas de dicionários. Já em 1969, Martinho da Vila desfilou alguns em “Quem É do Mar Não Enjoa”.

“Folia de Reis” (samba, 1970) – Martinho da Vila
Martinho da Vila exibe trajetória singular na música brasileira por ter, no meio do samba – a mais tradicional manifestação popular brasileira –, costurado estilo facilmente identificado à sua pessoa, tanto na maneira de viver como na de pronunciar-se. Um dos maiores sambistas da música popular brasileira não deixou ficar de fora do seu repertório uma importante menção à celebração do Dia de Reis. Já no disco “Meu Laiá-raiá”, o segundo de sua carreira, de 1970, Martinho da Vila mostrou ao público “Folia de Reis”, em que, com seu conhecido estilo, narrava aquela história: “A vinte e cinco de dezembro se reúnem os foliões e vão pra rua”.

“Segure Tudo” (samba, 1971) – Martinho da Vila
Verônica Sabino tem uma máxima. Ela acredita que, se você é brasileiro, “sabe cantar pelo menos uma ou duas canções de Martinho da Vila”. “E isso mesmo não sabendo ligado ao samba”, esclarece. A cantora carioca, filha de ninguém menos que o cronista belo-horizontino Fernando Sabino (1923-2004), acaba de colocar na praça “Meu Laiaraiá: O Samba de Martinho da Vila”, disco homenagem ao autor de “Disritmia”, “Pra Quê Dinheiro?” e “Canta, Canta Minha Gente”. Outra pérola da discografia de Martinho conhecida por todos é o samba de partido-alto “Segure Tudo”, lançado por ele no ano de 1971. Belo hit!

“Canta, Canta Minha Gente” (samba, 1974) – Martinho da Vila
Bamba da Vila Isabel, reduto de outro sambista histórico da música brasileira, o pioneiro Noel Rosa, o pacato e sensível Martinho da Vila levou seu estilo de vida para as próprias composições, praticamente indissociáveis de seu autor. Em 1974, ele já era um sambista considerado quando colocou na praça o LP “Canta, Canta, Minha Gente”. A faixa-título era uma ode à capacidade de resiliência do povo brasileiro que, àquela altura, enfrentava o pior período da tenebrosa ditadura militar que assolou o país durante vinte anos. Com ritmo sincopado e cadenciado, os versos conclamavam a uma alegria que deveria se impor aos poucos: “Canta, canta, minha gente/ Deixa a tristeza pra lá/ Canta forte, canta alto/ Que a vida vai melhorar”. O antídoto para aquela depressão jazia no samba.

“Disritmia” (samba, 1974) – Martinho da Vila
Na boca dos cantores, na pena dos poetas e sob o olhar dos amantes e das paixões tardias, ele recebe vários contornos, cores diversas, mas a expressão é sempre a mesma: símbolo do sentimento; representa o amor e a vida. Por isso foi instituída data para não esquecermos que ele merece cuidados. Para celebrar o Dia Mundial do Coração, listamos abaixo certas músicas brasileiras sobre o tema. Materno, leviano ou vagabundo; em desalinho ou de estudante; o coração do Brasil bate em seu tique-taque ao ritmo de forró, xote, samba, marcha e até tango. Dramático ou satírico, apaixonado ou tranquilo, o coração também marca a batida dos compassos do hit “Disritmia”, de Martinho da Vila.

“Ex-Amor” (samba, 1981) – Martinho da Vila
A tradição romântica da música brasileira data de meados do século XIX, quando a modinha e a valsa, importadas da Europa, deram origem às serenatas, alcunha surgida no Rio de Janeiro para rebatizar um antigo hábito popular das cidades: cantar sob a lua, por vezes munido de um violão, debaixo da janela da pessoa amada. Nas décadas de 1940 e 1950, o bolero, vindo do México, dominava as rádios brasileiras. Uma variação nacional para o estilo sentimental e derramado era o samba-canção, cujo caráter sofrido deu vazão a uma vertente ainda mais lamuriosa, conhecida como dor de cotovelo, expressão associada ao compositor gaúcho Lupicínio Rodrigues (1914-1974). Nessa linha, temos o samba “Ex-Amor”, lançado por Martinho da Vila em 1981.

“Meu Homem [Carta a Nelson Mandela]” (samba, 1988) – Martinho da Vila
Com o acompanhamento de Raphael Rabello no violão de sete cordas, Martinho da Vila registrou em 1990, no álbum “Martinho da Vida”, a composição de sua autoria que já havia sido lançada dois anos antes, em 1988, por Beth Carvalho, esta no LP “Alma do Brasil”. Na canção o sambista descreve um sonho em que desfeito de preconceitos os ensinamentos do líder sul-africano, Nelson Mandela, são seguidos, até que no final lembra-se dos tristes tempos do período Apartheid e roga para que um dia os sonhos sejam somente doces. “Meu Homem [Carta a Nelson Mandela]” combina em seu percurso melancolia e sensualidade, tanto na interpretação de Martinho da Vila quanto na de Beth Carvalho.

“Madalena do Jucu” (samba de congo, 1989) – Martinho da Vila
Há muitas Madalenas famosas na música brasileira, a começar por aquela da música de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro, eternizada na voz de Elis Regina, em 1971. Há também a “Madalena do Jucu”, de Martinho da Vila, um samba de congo que antecedeu o Mês da Consciência Negra em 1989. Não há como ignorar que todas elas trazem à baila a Madalena bíblica, fiel seguidora de Jesus. Na música brasileira, há uma Madalena anterior à de Martinho e Ivan Lins, poucas vezes relembrada com a devida reverência. Em 1951, Airton Amorim e Ari Macedo conheceram o primeiro sucesso quando o samba “Madalena” ganhou as ruas do Carnaval carioca, na voz de Linda Batista. A música mereceu uma regravação cheia de bossa do cantor Miltinho, em 1968.

“Mulheres” (samba, 1995) – Toninho Geraes
Todo mundo já cantou Toninho Geraes, mesmo que não ligue o nome à pessoa. Ou, nesse caso, à musica. São dele os versos propagados Brasil afora por outro bamba de respeito. É possível que muita gente cometa o equívoco de cantar “já tive mulheres, de todas as cores/ de várias idades, de muitos amores/ com umas até, certo tempo fiquei/ com outras apenas/ um pouco me dei”, e diga, na sequência, “aquela música do Martinho da Vila”. Mas não, letra e melodia desse grande sucesso foram compostas por ele, o Toninho das Geraes, que nasceu em Belo Horizonte e aos 17 anos migrou para o Rio de Janeiro em busca de um lugar ao sol. A música foi gravada por Simone em 1996.

“Devagar, Devagarinho” (samba, 1995) – Eraldo Divagar
Alterando o andamento do ritmo, puxando-o “para trás”, em suas próprias palavras, Martinho da Vila concedeu ao gênero toda a malemolência e a ginga características do povo, trazidas de Angola por seus ancestrais. Com esta mesma calma, Martinho jamais deixou de posicionar-se em relação à suas crenças musicais, religiosas e, consequentemente, políticas. É, sem dúvida, um dos artistas que mais contribuiu para a questão, seja para falar de dinheiro, racismo e os mais diversos preconceitos de gênero e sexualidade. Apreciar a música de Martinho da Vila, além de divertimento, também é aula de história. Em 1995, ele gravou “Devagar, Devagarinho”, bonito samba de Eraldo Divagar.

“Festa de Caboclo” (samba, 2001) – Martinho da Vila
Martinho da Vila foi buscar em suas raízes angolanas a inspiração para trabalhos mais recentes. Observador arguto do cotidiano, cronista dos nossos costumes em músicas, o segundo compositor mais famoso de Vila Isabel sempre aliou o humor às suas críticas sociais, como no exemplo de “Pequeno Burguês” que, sem se dirigir diretamente ao negro, mostra a triste situação do pobre no país, que invariavelmente possui a cor dos escravos que, segundo Joaquim Nabuco, ainda determina nossa característica nacional. “Festa de Caboclo” é celebrada no terreiro de Martinho da Vila, que estende a todos o convite, sem distinção de gênero, cor, ou classe. A união que a música aspira.

“Unidos e Misturados” (samba, 2021) – Martinho da Vila, Zé Katimba e Tuninho Professor
Martinho da Vila prepara um disco de inéditas, que deverá se chamar “Mistura Homogênea”. Seguindo a nova regra do mercado, ele resolveu disponibilizar alguns compactos para já deixar os fãs com aquele gostinho de água na boca. Foi o caso de “Era de Aquarius”, com o rapper Djonga, e “Vidas Negras Importam”, parceria com Noca da Portela. Como se constata, as discussões políticas estão no centro da roda do sambista. “Unidos e Misturados”, samba feito com Zé Katimba e Tuninho Professor, não deixa por menos. Interpretado ao lado da comadre Teresa Cristina, uma das artistas que mais se posiciona atualmente, Martinho dá as suas cutucadas no atraso com a habitual elegância.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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