*por Raphael Vidigal Aroeira
“o abismo invoca o abismo.” Rabelais
…grudento, o sangue espelha entre as pedras – cada poça forma uma pasta gordurosa, e, uma a uma, as formigas preenchem o lago, fixadas no vermelho: o punhal atravessa as carnes com a lâmina fria e transparente – o cheiro é forte, o olho amarelo, balbuciam ossos, um ventre vivo, pulsa o sol como uma gema de ovo no infinito: a pele queima pregada na cruz escorrente… lateja uma pequenina perna preta, que, como cãibra, tudo imobiliza – o fígado contrai, dói o tímpano, urra o estômago no vazio, enquanto a água alcança a amígdala: flama a língua, por meio de ductos, têmporas, bile, glândulas, intestino; visgo amarelo… olho vermelho… íris que aglutina o punhal das formigas no espelho… lânguida gota de sangue constituída de pele: uma a uma as perninhas pretas… debate e aceita o sol sobre a têmpora – o terreno cediço engole o umbigo – lâmina movediça, punhal de areia sobre o olho amarelo-vermelho queima arde vomita – fuligem empesteada no ar de… grudento, cada uma a uma com um vivo fígado: o olho amarelo a antena caída, mingua: escorre: goteja: empapa: gruda: finca: na costela a lâmina transparente e fria o punhal das formigas: lateja: dentro: no âmago, corta, rasga-retalha a carne, fornalha acesa torra: amarelo feito sol desértico – a garganta seca; soluça uma saída… reincide o sol áspero… não há saída: trancada – músculos estouram; a pele descortina por sob os ossos balbuciam legiões de formigas caídas, com as asas negro anjo repentino: pernas pequeninas e no umbigo o abismo: dentro do dentro do dentro do dentro caído: e… lânguida firula a íngua o punhal das formigas = nuvens de gafanhotos na espiga de milho: cinza sobre o amarelo-verde, ar empesteado de cinza e o cadáver ao sol infinito – carcaça em putrefação suicida, grudento o sangue entre as pedras cinzas, remói o núcleo duro e incontinente da vida; o aguilhão sibila – doce sangue na boca do âmago – (finco, pé ante pé, pesa a barriga amolecida, abrasa o horizonte direto na nuca e o ar rarefeito do vento castiga, odor de relva, cansaço de origens, tremor da velhice, fome da condenação ao destino e o horror à espreita aflige, aceso o cigarro, a alma se divide entre o já visto e nunca entendido, mal-estar contínuo, prosseguir sem caminho, como o mais reles dos bichos que no entanto sabe que é bicho, tem a ampulheta na mira, a algibeira de um velho pano não contém mais as agruras sofridas, desejos de recolhida, ódios contra o famigerado, humores não aplacados, desavenças e ressentimentos, ser o que é sem ter sido, miséria costurada em tecido, e a fantasia pouco afunila, o núcleo incontinente e duro, sangue na boca do estômago) – o punhal das formigas no amarelo do sangue purulento, cicatriz cujo invólucro é vermelho – nuvens de gafanhoto à espreita enquanto a poça gruda sua consistência de pasta gordurenta na perna pequenina, tão pequenina, tão miúda e a língua se aproxima áspera como lixa recolhe o olho a antena os ossos o fígado engole o âmago o intestino sibila nesse movimento incontinente de deglutição grosseira e escarra o odor dos ventos: o cheiro é forte cheiro de cadáver em putrefação o punhal molhado de vermelho escorrente atravessa a carne com a lâmina fria e transparente corta o olho por dentro retira a íris pupila globo lambendo os beiços com sadismo fino, baba uma gordura amarela que logo contém no ar rarefeito antes que alcance a poça vermelha onde (jazemos, pé ante pé, barriga amolecida desfeita de fígado, bile, glândulas, intestino, estômago, e a têmpora onde o olho vermelho reflete o vazio do amarelo): o punhal sepulta com transparência o cordão das formigas inertes, de antenas caídas e perninhas pretas grudadas no martírio, como um espelho de pedras em sua real assepsia…
Pintura: Obra de Goya.