O labor literário nas três versões de “A Testemunha”, de Lygia Fagundes Telles

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Isso de dizer que só um fio de cabelo nos separa da loucura total é tolice” Lygia Fagundes Telles

A anotação feita a mão no final da página revela que a primeira versão do conto “A Testemunha”, de Lygia Fagundes Telles, foi publicada em 1958, pela Livraria José Olympio. Decorreram-se dezesseis anos até que a segunda versão viesse a lume, em 1974, desta vez pela Livraria Francisco Alves, outra editora de renome. A terceira e definitiva versão de “A Testemunha” consta no livro de contos “A Estrutura da Bolha de Sabão”, publicada pela Editora Rocco em 1999, ampliando o hiato para 25 anos entre esta e a anterior. Da primeira para a última versão, o intervalo é de 41 anos. A passagem do tempo, evidentemente, deixou marcas nessa singular narrativa de Lygia.

A autora operou modificações ao longo de todo o texto, mantendo intacta a estrutura narrativa, ciente de que o enredo é uma coluna cujas vértebras são as palavras. E foi no labor destas que Lygia se imiscuiu ao longo de décadas, na procura pela precisão capaz de ampliar o sentido ao torná-lo menos claro e mais obscuro, trocando a obviedade pela ambiguidade, como se constata no primeiro parágrafo. A frase que abre o conto mantém-se inalterada nas três versões: “Ele tinha o olhar fixo no anúncio luminoso”. Da primeira para a segunda versão, a providência da escritora encontra-se na inclusão de um “já” que embute o tom de ansiedade do protagonista na relação com o tempo, e em repetir a frase inicial antes de descortinar o que vem depois, no caso, a imagem de “um cisne negro em um retângulo negro”, que aqui não é dado onde se localiza, de bandeja, como na primeira versão, em que logo sabemos do que se trata…

Na terceira versão, a descrição dessa cena inicial é ainda mais detalhada, retendo o leitor para o íntimo do protagonista através de imagens exteriores que revelam um estado de espírito embebido em melancolia. A contemplação é interrompida com a chegada da outra personagem, cujo nome é trocado nas três versões: de Rolf passa a ser Jorge, e, finalmente, Rold, enquanto Miguel, que conduz a narrativa com seu interlocutor, é sempre o mesmo. Acontece, então, o primeiro diálogo, em que ficamos sabendo que algo incomoda Miguel. Sua angústia advém do fato de não saber o que aconteceu na noite anterior, em que ele e seu interlocutor (Rolf, Jorge, Rold, a depender da versão) encontraram-se em seu apartamento, conversaram, beberam, e uma estranha amnésia nublou a memória de Miguel, que despertou, no dia seguinte, num cenário assombroso: o lençol rasgado e o relógio (de novo, o tempo) aos pedaços.

Para completar, o animal de estimação que ora surge como gato, outrora como um cachorro, parece ter fugido. E há, ainda, o que Miguel não percebe ou esconde, que só o olhar do outro constata: o fato de ele estar mancando. Há um clima homoerótico que permanece nas três versões da história, assim como uma camada filosófica, de fundo existencial, sobre a incompreensão do que nos acontece, a escuridão que cerca os tímidos fachos de luz aos quais temos acesso, metonimicamente representada pelo anúncio luminoso em que a brancura do cisne é engolida pelo negror do espaço à sua volta. Mesmo a visão de quem contempla, de fora, é recortada, e não dá conta do todo.

Miguel acredita que seu interlocutor conhece a verdade do que aconteceu. E, como ele revela em determinada passagem do conto, a presença do outro o lembra, de maneira torturante, do que aconteceu e desapareceu de sua consciência. A decisão de Miguel, logo, é radical. Livrar-se do amigo atirando-o no rio que o abraça com a mesma escuridão que engole o cisne no anúncio luminoso da publicidade. O ato é meticuloso. Em todas as versões, Miguel atrai seu interlocutor para o fim com a ideia de ambos jantarem em um restaurante que, a bem da verdade, não existe, é uma mera desculpa.

Mais importante do que o acontecimento, no entanto, é a forma como ele acontece, como nos revela Lygia com seu labor literário ao longo dessas três versões que percorreram mais de quatro décadas da sua existência. Porém, existe um ponto fulcral, aquele em que o interlocutor que, pretensamente, aprisiona a verdade sobre o que aconteceu a Miguel, tece considerações sobre a loucura ao afirmar, de maneira um tanto debochada, que eles poderiam ter tido “um acesso” juntos, compartilhando, afinal, a falta de memória sobre o que realmente aconteceu naquela fatídica noite. É quando Lygia, menos veladamente do que em outros momentos, insere a temática da loucura com um viés psicanalítico. O gesto derradeiro de Miguel seria loucura ou racionalidade? Eis a dúvida que Lygia mantém “estralando” em nossas mentes ao final.

O suspense do dramático gesto derradeiro também vai se ampliando com os recursos que a autora emprega ao longo das versões. Se na primeira versão ela ocorre mais abruptamente, e na segunda já ocorre uma distensão maior do tempo, a terceira atinge o ápice da agonia na lenta preparação para o inevitável. “Miguel abrigou na gruta da mão a chama do fósforo. A face avermelhou, esbraseada”, escreve Lygia. Habilmente, a escritora vai conectando o interior da personagem ao exterior da paisagem, conferindo ao insondável da alma humana a aparência concreta do que conhecemos. A ideia da ponte, nesse sentido, como uma ligação do presente com o passado, de Miguel com seu interlocutor, mas também da construção material feita de concreto, se amplia à medida em que a autora fala menos e sugere mais, com a sutileza metafórica.

Mais importante do que ir ao detalhe das alterações realizadas por Lygia nas três versões para o conto “A Testemunha” é a lição que se apreende quase que instintivamente na leitura: como um texto nunca está pronto e permanece aberto, contendo infinitas possibilidades que conservam a sua essência, o âmago do que se procura dizer, mas que depende sobremaneira de como dizê-lo. Somos nós, os leitores, as testemunhas desse labor literário de Lygia Fagundes Telles, aqui apreendido entre a década de 1950 e a véspera da virada do milênio. Do mesmo modo, o olhar que contempla, como o de Miguel diante do anúncio luminoso, também confere sentido ao texto literário e, quanto maior a ambiguidade, a fresta oferecida pelo autor, maior a possibilidade de enxergar não uma nem três, mas incontáveis histórias…

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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