*por Raphael Vidigal Aroeira
“Eu hoje estou pulando como sapo
Pra ver se escapo
Desta praga de urubu
Já estou coberto de farrapo
Eu vou acabar ficando nu…” Noel Rosa
Noel Rosa nasceu no Rio de Janeiro, no dia 11 de dezembro de 1910, e morreu na mesma cidade, no dia 4 de maio de 1937, com apenas 26 anos, vítima de uma tuberculose. Apesar do pouco tempo de vida, Noel deixou verdadeiros clássicos da canção brasileira, e segue considerado por muitos o maior compositor do país. Boêmio, vindo de uma família de classe média, cursou medicina e também se tornou peça fundamental na ponte entre o morro e o asfalto que ajudou a popularizar o samba. Entre os grandes sucessos de Noel Rosa estão músicas como “Filosofia”, “Gago Apaixonado”, “O Orvalho Vem Caindo”, “Com Que Roupa?”, “Palpite Infeliz” e muitas outras, gravadas por Zeca Pagodinho, Martinho da Vila, Gal Costa, Beth Carvalho, Maria Alcina.
“Quem Dá Mais? [Ou Leilão do Brasil]” (samba, 1930) – Noel Rosa
Um dos primeiros sambas compostos por Noel recebeu o subtítulo de “Leilão do Brasil”, e foi definido, por ele, como “samba-humorístico”, um subgênero no qual se especializou graças à sua contumaz picardia. “Quem Dá Mais?”. A peça lança mão das mazelas brasileiras para tirar humor a partir de nossas fragilidades, um expediente que tantos outros repetiriam, onde aparece até o imperador Dom Pedro. Lançado pelo próprio autor, o samba recebeu uma regravação saborosa de Eduardo Dussek, e que investiu em toda a sua verve.
“Cordiais Saudações” (samba, 1931) – Noel Rosa
Nascido em Piracicaba, no interior de São Paulo, o cantor Roberto Seresteiro sempre esteve atento ao passado, e se tornou fã de artistas como Geraldo Pereira e Ivon Curi, além de Mário Reis, sua grande referência de canto. A estreia em disco, no entanto, teve como título uma música de Noel Rosa, “Cordiais Saudações”. O samba foi lançado em 1931, pelo próprio autor com o Bando de Tangarás, e obteve regravações posteriores de Marília Batista, Silvio Caldas, Cristina Buarque, Henrique Cazes, e do conjunto Garganta Profunda.
“Mulato Bamba” (samba, 1931) – Noel Rosa
Esse samba de 1931, batizado de “Mulato Bamba”, é a primeira música de relevante importância para a música popular brasileira no que diz respeito à representação do homossexual. Noel Rosa a compôs como forma de homenagem a Madame Satã, famoso capoeirista e malandro homossexual da Lapa. Como já foi dito, a canção é uma homenagem, e retrata o homossexual de maneira respeitosa e até com certa admiração. Interessante notar que foi feita em um meio musical (samba) e uma época (década de 1930) extremamente conservadoras. Lançada por Mário Reis, foi bastante regravada.
“Com Que Roupa?” (samba, 1931) – Noel Rosa
Logo no início da década de 1930, um dos mais prolíficos e reconhecidos compositores populares do país deu o seu pitaco no tema, ao abordar, a partir de uma melodia inspirada no “Hino Nacional”, a dificuldade de um cidadão em se aprontar para a festa diante das dificuldades financeiras. Noel Rosa, conhecido como o “Poeta da Vila Isabel”, natural do bairro carioca em questão, entremeia expressões como “não está sopa”, “pulando como sapo” e “praga de urubu”, a outras que ele mesmo tratou de tornar populares, a exemplo dos versos “meu paletó virou estopa” e o inesquecível refrão “com que roupa, eu vou?”. A música, lançada pelo autor, foi regravada por diversos cantores, como Nelson Gonçalves, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Ivan Lins e Aracy de Almeida.
“Gago Apaixonado” (samba, 1931) – Noel Rosa
Filho do violonista e advogado João Batista Nogueira, conhecido como Mestre, o cantor e compositor João Nogueira cresceu em um ambiente musical, já que sua irmã, Gisa, também compunha. Foi com ela, aliás, que ele estreou no ofício que o levaria a ser gravado por Eliana Pittman (“Das 200 pra Lá”), Clara Nunes (“Meu Lema”) e Elizeth Cardoso (“Corrente de Aço”), a quem ele agradeceria o batismo musical na faixa “Wilson, Geraldo e Noel”, preciosidade em que presta reverência a Wilson Batista (1913-1968), Geraldo Pereira (1918-1955) e Noel Rosa, que deu nome ao disco homônimo de 1981. De cada um deles, João registraria ao menos uma canção emblemática: “Louco (Ela É Seu Mundo)”, “Bolinha de Papel” e “Gago Apaixonado”, respectivamente. E foi um sucesso!
“A Razão Dá-se a Quem Tem” (samba, 1932) – Noel Rosa e Ismael Silva
De uma dessas sacadas espertas de Noel Rosa, em que ele se valia de ditados populares que pipocavam na boca do povo, nasceu o título do samba “A Razão Dá-se a Quem Tem”, parceria com Ismael Silva lançada em 1932, em um dueto saboroso de vozes que se complementavam pela diferença: o vigor de Francisco Alves com a precisão de Mário Reis. Em 1972, Elza Soares e Roberto Ribeiro reencenaram esse dueto, no disco “Sangue, Suor e Raça”, que eles dividiram juntos. Outras regravações vieram de Aracy de Almeida, Arnaldo Antunes, Cláudio Jorge com Augusto Martins e de Pedro Miranda com Caetano Veloso. Em todas elas, manteve-se o frescor desse delicioso samba.
“A.E.I.O.U.” (marcha, 1932) – Noel Rosa e Lamartine Babo
Lamartine Babo é ainda hoje tido como o grande compositor de marchinhas do país, graças a hits como “Linda Morena”, “Grau Dez”, “Hino do Carnaval Brasileiro” e “Rasguei a Minha Fantasia”, entre vários outros. Em 2017, a composição “O Teu Cabelo Não Nega” deixou de ser cantada por blocos de rua que denunciavam o caráter racista da marchinha. Mas em 1932, no auge do prestígio, ele se juntou a ninguém menos que o Poeta da Vila, em uma parceria que só podia acabar em festa. “A.E.I.O.U.” é uma marcha satírica, bem ao estilo de Noel Rosa e Lamartine Babo, que aborda o ambiente escolar. Ela foi lançada pela dupla, em um dueto impagável, e regravada por Maurício Pereira.
“Seja Breve” (samba, 1932) – Noel Rosa
No dia 22 de julho de 1946, o cantor João Petra de Barros é atingido por uma caminhonete da Aeronáutica enquanto viaja no estribo de um bonde. As consequências tanto físicas quanto emocionais para o jovem cantor são desastrosas, que apesar de todo o esforço dos médicos tem uma perna amputada. Inconsolável recebe o carinho e apoio de amigos, como das irmãs Carmen e Aurora Miranda, sendo que registrou, com a segunda, várias músicas, mas não se anima. Após duas tentativas, João Petra de Barros consegue, na terceira, suicidar, no dia 11 de janeiro de 1948, aos 32 anos. No auge do sucesso, em 1932, ele lançou o divertido samba “Seja Breve”, de Noel.
“Coisas Nossas” (samba, 1932) – Noel Rosa
Ismael Silva foi um bamba de primeira qualidade, fundador da primeira Escola de Samba do Brasil, a Deixa Falar, que incentivaria o surgimento das posteriores. Parceiro de Noel Rosa em “A Razão Dá-se a Quem Tem”, e de Nilton Bastos na clássica “Se Você Jurar”, ele compôs, em 1973, o samba “Contrastes”, cuja letra apresenta um apanhado das contradições do Brasil. Noel também refletiu sobre as peculiaridades do país em um samba de 1932, “Coisas Nossas”, lançado pelo próprio autor e regravado, entre outros, por Cristina Buarque, Gal Costa, Martinho da Vila, Aracy de Almeida, Djavan, e etc.
“Para Me Livrar do Mal” (samba, 1932) – Noel Rosa e Ismael Silva
São 35 os registros contabilizados de “Para Me Livrar do Mal”, samba de Noel Rosa e Ismael Silva lançado em 1932, na voz de Francisco Alves. Aliás, em muitos sambas da dupla, Francisco Alves também aparece como compositor, o que revela um expediente comum na época: pagar para ter o nome incluso na parceria. Em troca, o cantor ou radialista consagrado, oferecia a oportunidade de tocar no rádio. “Para Me Livrar do Mal” ganhou, ao longo do tempo, as vozes de Dóris Monteiro, Miltinho, Marília Batista, Aracy de Almeida, Martinho da Vila, Cristina Buarque, Ivan Lins, Elza Soares, Ciro Monteiro, MPB-4, Os Originais do Samba, e outros, o que só comprova o seu sucesso permanente.
“Coração [Samba Anatômico]” (samba, 1932) – Noel Rosa
Pouca gente sabe que Noel Rosa foi estudante de medicina. Embora não tenha chegado a concluir o curso, a experiência lhe valeu para criar um samba, como era de costume. Em 1932, com sua característica veia satírica e “gozadora”, o poeta da Vila compôs “Coração”, com o subtítulo “Samba Anatômico”. Isto porque, ao contrário do usual na época, que tratava o órgão como uma metáfora do amor, Noel preferiu analisá-lo sob o ponto de vista biológico, ao menos aparentemente. Refazendo o trajeto do sangue venoso e arterial e esclarecendo a máxima sobre a localização do órgão, “ficas no centro do peito, eis a verdade”, Noel revela as contradições dos sentimentos, que passam também pela análise física, neste caso. A música foi lançada pelo próprio autor.
“Adeus” (samba, 1932) – Noel Rosa e Ismael Silva
No dia 8 de setembro de 1931, Nilton Bastos, amigo de muitas e boas de Ismael Silva e Noel Rosa, além de parceiro de ambos em sambas célebres, faleceu vítima de tuberculose, aos 32 anos. A doença também vitimaria Noel, em 1937, quando ele tinha apenas 26 anos. A tristeza pela partida precoce de Nilton levou Ismael e Noel a comporem o samba “Adeus”, lançado em 1932 pela dupla formada por Castro Barbosa e Jonjoca. Em 1975, Vinicius de Moraes e Toquinho registraram outra versão sensível da canção. “Adeus, adeus, adeus/ Palavra que faz chorar/ Adeus, adeus, adeus/ Não há quem possa suportar/ Adeus é tão triste/ Que não se resiste…”, cantam os saudosos.
“Até Amanhã” (samba, 1933) – Noel Rosa
João Petra de Barros, um carioca da capital, de timbre parecido ao do grandiloquente Francisco Alves, foi apelidado por César Ladeira como “a voz de 18 quilates”. Ícone do rádio de seu tempo, as décadas de 1930 e 1940, o hoje esquecido cantor completaria seu centenário em 2014. Pouco festejado João Petra foi sinônimo de farra e sucesso na época em que atuou. Parceiro de boemia de Noel Rosa teve o privilégio de gravar Mário Lago, Ary Barroso, Ismael Silva, Orestes Barbosa, Custódio Mesquita, Peterpan, um iniciante Vinicius de Moraes, na música “Dor de uma saudade”, e claro, o amigo da Vila. Uma dessas composições, “Até amanhã”, foi entregue por Noel para João Petra como uma pirraça a Francisco Alves, cansado que estava o poeta da Vila de ver suas músicas sempre associadas ao mesmo nome.
“Fita Amarela” (samba, 1933) – Noel Rosa
Noel Rosa viveu sob a sombra da tuberculose por algum tempo e chegou, inclusive, a mudar-se para Belo Horizonte em busca de ares mais limpos. Mas a boemia o chamou e foi mais forte do que o temor da doença, naquela época praticamente uma sentença de morte. Todavia, Noel costumava manter o espírito galhofeiro diante de tudo, inclusive da própria morte. Aproveitando uma batucada de Mano Edgar que também inspirou o samba “Quando Você Morrer”, de Donga e Alto Taranto, gravado por Carmen Miranda, Noel compôs “Fita Amarela”. A música foi lançada com sucesso por Mário Reis e Francisco Alves, e, mais tarde, regravada por Aracy de Almeida.
“Cor de Cinza” (samba, 1933) – Noel Rosa
Provocado a escolher os 10 melhores sambas de todos os tempos, Aldir Blanc não teve dúvidas. Adotou um critério pessoal e elegeu “Conversa de Botequim”, “Feitiço da Vila”, “Três Apitos”, “Último Desejo”, “O X do Problema”, “Onde Está a Honestidade?”, “Dama do Cabaré”, “Cor de Cinza”, dentre outros, todos de Noel Rosa. Por ironia do destino, com quem brincou em versos e trovas, Aldir morreu aos 73 anos, na mesma data que o Poeta da Vila, com mais de oito décadas de diferença. Diabético, o compositor, cantor e cronista carioca foi internado em uma UTI (Unidade de Terapia Intensiva), após ter contraído o novo coronavírus, responsável por uma pandemia global. Aldir não tinha plano de saúde e conseguiu ser transferido para um hospital particular graças a uma vaquinha realizada com a ajuda de amigos, familiares e fãs.
“Quando o Samba Acabou” (samba, 1933) – Noel Rosa
Um duelo pelo coração da amada termina em maus-lençóis para um dos concorrentes. Décadas depois, Tim Maia reciclaria o espírito de “Quando o Samba Acabou”, ao compor “Azul da Cor do Mar”, que dizia: “E na vida a gente tem que entender/ Que um nasce pra sofrer/ Enquanto o outro ri”. O original de Noel Rosa, de 1933, vaticinava: “E como em toda façanha/ Sempre um perde e o outro ganha/ Um dos dois parou de versejar”. Mas é ainda mais dramático, pois, na manhã seguinte, o derrotado é encontrado com um punhal no coração. A música foi lançada por Mário Reis em 1933, com o seu estilo inconfundível.
“Não Tem Tradução” (samba, 1933) – Noel Rosa e Ismael Silva
Claro que Noel Rosa não poderia ficar de fora desse fuzuê. Com o bamba Ismael Silva, ele compôs, em 1933, o samba “Não Tem Tradução”, que acusava o cinema falado de ser o grande culpado pela mania de expressões estrangeiras no país. “Amor lá no morro é amor pra chuchu/ As rimas do samba não são ‘I love you’/ E esse negócio de alô/ Alô boy, alô Johnny/ Só pode ser conversa de telefone”, dizia a canção. Sucesso que atravessou décadas, a música foi lançada pelo Rei da Voz, Francisco Alves, e depois ganhou regravações marcantes de João Nogueira, Aracy de Almeida, Caetano Veloso, Teresa Cristina e até da diva e atriz Bibi Ferreira. Só uma prova de eternidade.
“Três Apitos” (samba-canção, 1933) – Noel Rosa
“Quando o apito da fábrica de tecidos/ Vem ferir os meus ouvidos/ Eu me lembro de você”. O samba-canção escrito por Noel Rosa e colocado em rotação na voz de Aracy de Almeida em 1933 não faz parte do repertório de “Caetano Moreno Zeca Tom Veloso”, em que o patriarca se apresenta ao lado dos três filhos. Mas sua introdução aparece aqui porque, de alguma maneira, a música “Três Apitos” permanece em Caetano desde que seu pai, Zeca – apelido que rendeu ao filho do meio do bardo tropicalista o nome de batismo – o instigou a prestar atenção especial, ainda menino. “Nunca saiu da minha cabeça”, admite o autor de “Alegria, Alegria”, ao eleger os versos mais marcantes de sua existência. E “Três Apitos” é um clássico da canção popular.
“Feitio de Oração” (samba, 1933) – Noel Rosa e Vadico
Noel Rosa construiu com Aracy de Almeida uma amizade tão sólida que esta foi responsável-direta por manter acesa a chama da obra do amigo após a sua partida. Pendure-se na conta de Aracy a culpa por popularizar os sambas “Palpite Infeliz”, “Conversa de Botequim”, “Feitiço da Vila”, “Pra Quê Mentir?”, “Feitio de Oração”, “Três Apitos”, “O Orvalho Vem Caindo”, “Fita Amarela”, “Triste Cuíca”, “Com Que Roupa?”, “Filosofia”, e mais “algumas coisinhas”, como ela dizia. Não é pouca coisa. Aracy de Almeida pode se gabar desta vida.
“Meu Barracão” (samba, 1933) – Noel Rosa
Bamba da Vila Isabel, reduto de outro sambista histórico da música brasileira, o pioneiro Noel Rosa, o pacato e sensível Martinho da Vila levou seu estilo de vida para as próprias composições, praticamente indissociáveis de seu autor. Em 1974, ele já era um sambista considerado quando colocou na praça o LP “Canta, Canta, Minha Gente”. O mesmo se pode dizer de Noel, que reflete sobre a própria vida e suas circunstâncias, incluindo o lar, como, por exemplo, no samba “Meu Barracão”, de 1933, que mereceu bela regravação de Caetano.
“Filosofia” (samba, 1933) – Noel Rosa e André Filho
Um dos sambas mais conhecidos de Noel Rosa foi lançado em 1933, por Mário Reis. “Filosofia” é uma parceria com André Filho, e revelou-se tão atemporal que mereceu regravações de Martinho da Vila, Chico Buarque, Adoniran Barbosa, Teresa Cristina, Marcos Sacramento, dentre inúmeros outros que compartilhavam dos ideais de Noel. “O mundo me condena/ E ninguém tem pena/ Falando sempre mal do meu nome/ Deixando de saber se eu vou morrer de sede/ Ou se vou morrer de fome”. A perspicácia de Noel capta, de uma só tacada, as contradições existencialistas e sociais desse país chamado Brasil.
“Rapaz Folgado” (samba, 1933) – Noel Rosa
Embora tenha ficado com a vilania na disputa, por posteriores respostas menos inspiradas, Wilson Batista foi primeiramente provocado por Noel Rosa, que questionou a pose de malandro do garoto de Campos instalado no Rio de Janeiro com “Rapaz Folgado”, belo samba. “Lenço no Pescoço”, composto em 1933, exibe o modo de vida que Wilson acalentava para si. Além disso, denuncia a dificuldade do trabalhador honesto para se sustentar. Dois anos depois, Wilson e Noel Rosa compuseram o samba “Deixa de ser convencida”, que permaneceu inédita até a gravação de Cristina Buarque, feita no ano 2000.
“Onde Está a Honestidade?” (samba, 1933) – Noel Rosa
Logo na primeira metade da década de 1930, a música brasileira versava sobre política. E o título da canção era justamente “Onde Está a Honestidade?”, um samba de Noel Rosa lançado pelo próprio. Séculos depois, e a música continua atual, o que prova não apenas o poder de captura e síntese de Noel Rosa, como a percepção de que a crônica dos costumes nacionais não se alterou de maneira dramática dali pra cá. Ou talvez seja esse o drama. A letra não poderia ser mais precisa: “Você tem palacete reluzente/ Tem joias e criados à vontade/ Sem ter nenhuma herança nem parente/ Só anda de automóvel na cidade/ E o povo já pergunta com maldade:/ ‘Onde está a honestidade?…’”, questiona este narrador.
“Seu Jacinto” (marcha, 1933) – Noel Rosa
Cronista habilidoso, Noel Rosa compôs, em 1933, uma marcha que tinha como alvo o sujeito de quem ele, marotamente, tirava sarro: “Seu Jacinto”. A música foi lançada pelo autor em parceria com seu amigo Ismael Silva. Em determinada parte da letra, Noel diz: “O Seu Jacinto é cheio de chiquê/ Eu não sei dizer por que/ Dorme de cartola e fraque”. Pela fidalguia de seus torcedores, associados à elite carioca, o Fluminense adotou como mascote a figura do cartola, desenhado pela primeira vez pelo cartunista argentino Lorenzo Mollas em 1943. “Seu Jacinto” foi regravada pela mineira Maria Alcina.
“Positivismo” (samba, 1933) – Noel Rosa e Orestes Barbosa
A frase te pega pela garganta. “País negro e racista” cabe melhor à bandeira verde-amarela do que o “ordem e progresso” que a estampa hoje, abolindo o princípio do lema formulado por Auguste Comte que Noel Rosa poetizou: “O amor vem por princípio/ A ordem por base/ O progresso é que deve vir por fim…”. A primeira frase é de “2 de Junho”, música de Adriana Calcanhotto gravada por Maria Bethânia. Já a segunda pertence a “Positivismo”, o samba espirituoso de Noel Rosa e Orestes Barbosa, lançado em 1933 com acompanhamento da orquestra de Pixinguinha, e regravado por Jards Macalé.
“Você Só… Mente!” (foxtrote, 1933) – Noel Rosa e Hélio Rosa
“Acho que ajudamos a tirar o peso da grande música popular brasileira, cheia de geniais compositores que a elevaram a uma altura respeitável. Arejamos um pouco o panorama. Mas é bom lembrar que a música brasileira, desde Noel Rosa, Sinhô e companhia, sempre teve muito humor. Não temos a pretensão de ditar nenhuma norma ou caminho”, avalia Wandi Doratiotto, um dos integrantes do grupo Premeditando o Breque, da Vanguarda Paulista. “Você Só… Mente!” lançado em 1933, por Aurora Miranda, reflete a tese do intérprete.
“Prato Fundo” (marcha, 1933) – Noel Rosa e Braguinha
O pitoresco da situação é o que confere traços circenses à parceria entre Noel Rosa e Braguinha, dois dos nossos maiores compositores, na marcha “Prato Fundo”, lançada em 1933 na voz de Almirante, colega da dupla no Bando de Tangarás. Na música, que ficou pouco conhecida, os compositores falam sobre os hábitos alimentares de uma família, onde todos comem tanto que não há o que lhes sacie o apetite. É nessa hora que entra o circo: “A minha mana/ Para esperar o almoço/ Come casca de banana/ Depois engole o caroço/ E o meu titio/ Faz vergonha a todo instante/ Foi ao circo com fastio/ E engoliu o elefante”.
“O Orvalho Vem Caindo” (samba, 1934) – Noel Rosa e Kid Pepe
“A minha geração conheceu a Aracy de Almeida como a jurada mal-humorada e rabugenta do programa do Silvio Santos, que dava zero para todo mundo. Era uma personagem que ela encarnava, mas a minha mãe sempre me dizia que ela tinha sido uma grande cantora”, diz Marcos Sacramento. Em formato de medleys, como suítes arquitetadas por Hermínio Bello de Carvalho, ele deu voz a hits do repertório da homenageada, responsável por resgatar do ostracismo a obra de Noel Rosa na década de 1950. Entre eles, estão “Triste Cuíca”, “Filosofia”, “Onde Está a Honestidade?”, “O Orvalho Vem Caindo”, etc.
“Triste Cuíca” (samba, 1934) – Hervé Cordovil e Noel Rosa
O mineiro Hervé Cordovil (03/02/1914 – 16/07/1979) transitou pelos mais variados gêneros com a mesma eficácia, para dizer pouco. Isso porque o pianista, regente e compositor desencorajado por Eduardo Souto, diretor da Casa Edison, no início de carreira, escreveu parcerias com Noel Rosa, Lamartine Babo e Luiz Gonzaga, para citar alguns. A tristeza aguda da cuíca que geme feito um boi é a tônica do samba de 1934, composto por Hervé Cordovil e pelo genial Noel Rosa. O clima tenebroso se acentua quando se revela os contornos de uma relação onde o ciúme encobre o amor. Laurindo e Zizica são os personagens de um romance com final triste. Eis “A Triste Cuíca”.
“Retiro da Saudade” (marcha-rancho, 1934) – Noel Rosa e Nássara
Antônio Nássara, ou simplesmente Nássara, nasceu na cidade do Rio de Janeiro no dia 11 de novembro de 1910 e faleceu no dia 11 de dezembro de 1996. Compositor e caricaturista, Nássara foi vizinho de Noel Rosa, e compôs com ele a marcha “Retiro da Saudade”, gravada por Francisco Alves e Carmen Miranda em 1934. Nássara completaria em 2010, 100 anos de vida, e foi o autor de sucessos como “Alá lá ô”, com Haroldo Lobo, “Mundo de Zinco” e “Balzaquiana” com Wilson Batista, “Formosa”, com J. Rui, “Periquitinho verde”, com Sá Róris, entre outros. Autor do primeiro jingle do rádio brasileiro, Nássara tinha como uma de suas marcas registradas parodiar e utilizar versos de outras músicas em suas composições.
“Pela Décima Vez” (samba, 1935) – Noel Rosa
Todas as noites, o pequeno segundo andar da boate Vogue se enchia de uma atmosfera sonora que condensava dores e amores do samba-canção, estilo predominante naquele período. O repertório que Aracy cantava nessas apresentações tinha um único astro e gerou dois álbuns em formato de 78 rotações, com as clássicas “Conversa de Botequim”, “Feitiço da Vila”, “Palpite Infeliz”, “Último Desejo” e “Com Que Roupa?”, entre outras de autoria e em homenagem ao amigo Noel Rosa (1910-1937), falecido 13 anos antes e, desde então, esquecido. “Foi a primeira vez que se fez um tributo com critério no Brasil”, afirma o jornalista e crítico musical Hugo Sukman. “Esse trabalho estabeleceu a obra do Noel e o transformou no maior compositor brasileiro”, completa. Um bom exemplo é o samba “Pela Décima Vez”, lançado em 1947.
“João Ninguém” (samba-canção, 1935) – Noel Rosa
Duas personalidades do Carnaval carioca, ligadas à Estação Primeira de Mangueira, são homenageadas no samba “Dona Zica e Dona Neuma”, composto pela tríade formada por Nei Lopes, Carlinhos 7 Cordas e Zé Luiz. Fundadora do Bloco dos Arengueiros, que deu origem à Mangueira, e considerada Primeira-Dama da escola, Dona Neuma recebia em casa Noel Rosa, Villa-Lobos, Tom Jobim, Chico Buarque. Composto por Noel Rosa em 1935, o samba-canção “João Ninguém” foi regravado pelo maestro Tom Jobim.
“Boa Viagem” (samba, 1935) – Noel Rosa e Ismael Silva
Composto por Noel Rosa e Ismael Silva, o samba “Boa Viagem” ganhou a voz de Aurora Miranda em 1935, e se transformou em um sucesso imediato. Muitos anos depois, já em 2019, o samba foi resgatado pelo ativista do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), Guilherme Boulos, filiado ao PSOL. Em uma postagem nas redes sociais, Boulos recuperou a letra para ironizar o então Ministro da Economia, Paulo Guedes, que ameaçava deixar o Brasil. “Se não mandei você embora/ Enfim, foi porque/ Me faltou a coragem/ Mas se você vai dar o fora/ Então, passe bem/ Boa viagem!”, desabafa a abertura do samba, que ganhou regravações de Ivan Lins e do próprio Ismael Silva, esta em 1973.
“Conversa de Botequim” (samba, 1935) – Noel Rosa e Vadico
Noel Rosa levou a esposa Lindaura para o cinema, mas, no caminho, resolveu parar em uma leiteria para comer arroz-doce. Logo, Noel avistou um amigo e foi até ele papear. Lindaura ficou esperando, sem dinheiro para pagar a conta ou pegar o bonde, e o marido só apareceu quando ela já estava em casa, de madrugada, com a ajuda do garçom que conhecia Noel e pendurou o pedido da vez. Essas confusões eram frequentes na vida de Noel, um boêmio incorrigível. “Conversa de Botequim”, samba de 1935 em parceria com Vadico, é uma crônica bem nesse estilo: “Seu garçom faça o favor de me trazer depressa/ Uma boa média que não seja requentada…”. E foi lançada por Noel.
“Feitiço da Vila” (samba, 1935) – Noel Rosa e Vadico
O samba, como samba, se fez em terreiro, vindo da África, batizado a partir de palavra que designava tradicional dança de Angola, que logo migrou primeiro para a Bahia e depois chegou, também através dos escravos e seus descendentes, ao Rio de Janeiro, onde se transformou em ritmo, estilo e até modo de vida, responsável por caracterizar seus músicos e cantores pejorativamente de “malandros”. É Martinho da Vila que atesta a importância de Noel Rosa nesse procedimento, “branco sem preconceitos que subiu o morro e trouxe o samba ao centro de todas as classes sociais”. Em 1935, Noel compôs o samba “Feitiço da Vila”, que era provocação racista a Wilson Batista.
“Cansei de Implorar” (samba, 1935) – Noel Rosa e Arnold Glückmann
Noel Rosa contribuiu com outra canção que só ganhou ares circenses graças à interpretação de Grande Otelo, para muitos, o maior comediante do Brasil. Nascido em Uberlândia, o humorista mineiro tirou um sonho do papel em 1985, quando protagonizou, com Marília Pêra e o grupo Coisas Nossas, a opereta “A Noiva do Condutor”, escrita por Noel e musicada pelo maestro e arranjador húngaro Arnold Glückmann, em 1935. Noel morreu em 1937, aos 26 anos, vítima de tuberculose, e não pôde ver o projeto realizado. O empreendimento só logrou sucesso graças à participação decisiva do jornalista João Máximo. Inicialmente, o papel interpretado por Marília Pêra havia sido destinado para Isaurinha Garcia. “Cansei de Implorar” está presente no roteiro, e traz um Grande Otelo hilariante.
“Você Vai Se Quiser” (samba, 1936) – Noel Rosa
Criado pelo educador Paulo Freire (1921-1997) na década de 70, o termo “empoderamento” voltou à baila nos anos 2000. De acordo com uma pesquisa do Google, o primeiro pico de buscas pela palavra aconteceu em junho de 2013, durante protestos que marcaram o Brasil. Em 2016, “empoderamento” ficou em primeiro lugar na lista das palavras mais procuradas. Na música brasileira, o empoderamento feminino não é novidade. Antes da expressão alcançar a fama atual, Rita Lee, Angela Ro Ro, Dona Ivone Lara e outras esbanjavam atitude e coragem. Bem antes dessa revolução de costumes, Noel Rosa compôs “Você Vai Se Quiser”, samba que não disfarçava seu machismo.
“O ‘X’ do Problema” (samba, 1936) – Noel Rosa
Engana-se quem pensa que a participação de Aracy de Almeida como jurada do programa de calouros do apresentador Chacrinha, e depois Silvio Santos, tenha distorcido a imagem da cantora. Basta ouvir as gravações de entrevista da intérprete contando de sua relação com Noel Rosa, o começo da carreira, e a forma despojada no uso da voz na canção para perceber que Aracy sempre teve uma personalidade ímpar, da qual não se podia descolar, a princípio, personagem e vida. Se muitos dos seus maneirismos pareciam caricaturais e provocavam o riso é porque ela nunca fez questão de enquadrar-se em “bons modos”, “princípios”, e é justo nisso que se diferenciou, na década de 1930, entre tantas cantoras do Brasil. Em 1936, lançou “O ‘X’ do Problema”, de Noel.
“De Babado” (samba, 1936) – Noel Rosa e João Mina
A admiração de João Nogueira por Noel ficou marcada para a posteridade ao musicar “Ao Meu Amigo Edgar”, carta do filho pródigo de Vila Isabel para seu médico, elevando-o a parceiro de um de seus ídolos. A admiração vinha de longe, afinal o pai de João tocara com o autor de “Conversa de Botequim”, da deliciosa “De Babado” (em dueto com Alcione), e de “Feitio de Oração”, todas revisitadas por João, a última com o amigo Luiz Melodia. Para o patriarca, ele compôs “Espelho” (com Paulo César Pinheiro), título do álbum de 1977, e uma das mais comoventes canções a respeito da relação entre pai e filho, tanto em função da letra quanto da melodia densa, levemente melancólica. Uma beleza.
“O Que É Que Você Fazia?” (marcha, 1936) – Noel Rosa e Hervé Cordovil
Em 1981, o grupo Rumo conseguiu a proeza de lançar dois discos de uma tacada só, logo em sua estreia no mercado fonográfico. Além de um trabalho de inéditas, a trupe apresentou a sua leitura particular de canções pouco conhecidas de cânones da música brasileira, como Noel Rosa, Lamartine Babo e Sinhô, entre elas, pérolas como “Você Só… Mente”, “Não Quero Saber Mais Dela” e “Pierrô Apaixonado”, todas embebidas em um humor que se equilibrava entre a ironia e a ingenuidade. O grupo também regravou a marcha “O Que É Que Você Fazia”, de Noel e Hervé Cordovil, lançada por ela: Carmen Miranda.
“A Dama do Cabaré” (samba, 1936) – Noel Rosa
O samba de Noel Rosa contém informações que possibilitam ao ouvinte associar a tal dama a uma prostituta. No entanto, relatos históricos afirmam que não era bem isso. Juracy Correia de Morais, conhecida como Ceci, viveu com Noel Rosa um tórrido romance, e desempenhava, na verdade, apenas a função de dançarina no cabaré, algo bastante comum na época. Pelo menos aparentemente. A forte repressão moral do período não nos desvia o olhar da hipocrisia como pano de fundo social. O certo é que esse samba lançado por Orlando Silva, e regravado por Marília Batista, Carmen Costa, Marcos Sacramento e diversos outros, revela os contornos de uma história de amor que não se importava com estereótipos. Pois permanece um sucesso até hoje.
“Cidade Mulher” (marcha, 1936) – Noel Rosa
Antes de aportar no Méier, o espetáculo “Sassaricando” percorreu plagas internacionais, e chacoalhou confete e serpentina ante os colonizadores brasileiros. “Os portugueses são responsáveis por boa parte da nossa formação cultural, e isso inclui o carnaval e principalmente as marchinhas, egressas da polca e da marcha europeia”, afirma Eduardo Dussek. A receptividade em Portugal parece ter sido a melhor possível, como se insinua no caso que Dussek conta: “Cantei ‘Cidade Mulher’ do Noel Rosa, com forte sotaque aportuguesado, e no final troquei a palavra ‘Corcovado’, por ‘Chiado’, bairro cultural de Lisboa. O público veio abaixo!”. A marcha foi lançada em 36.
“Tarzan, o Filho do Alfaiate” (samba, 1936) – Noel Rosa e Vadico
Composta para o filme “Cidade Mulher”, de Humberto Mauro, “Tarzan, o Filho do Alfaiate”, é um samba de Noel Rosa e Vadico, de 1936, cujo título parodia a saga de “O Filho das Selvas”. A canção fazia troça com o hábito que se tornou comum entre os homens da época de se utilizarem se enchimentos no paletó a fim de parecerem mais musculosos. Lançada por Almirante, a música recebeu regravações de Zeca Pagodinho, Djavan, Cristina Buarque e Henrique Cazes. Além de citar lutas e futebol, a música faz uma referência direta ao tablado, onde a ginasta Rebeca Andrade protagonizou um desempenho histórico em 2021, ao som do funk “Baile de Favela”, que a credenciou entre as favoritas a uma medalha nas categorias individual, solo e salto da ginástica artística.
“Pierrô Apaixonado” (marcha, 1936) – Heitor dos Prazeres e Noel Rosa
O maior êxito da carreira de Heitor dos Prazeres veio em 1936, quando, ao lado de Noel Rosa, compôs a marcha “Pierrô Apaixonado”, sucesso carnavalesco que atravessou gerações. Lançada pela dupla formada por Joel & Gaúcho, com acompanhamento da orquestra Diabos do Céu e arranjo de Pixinguinha, a música foi incluída no filme “Alô, Alô, Carnaval”, com Carmen Miranda e Oscarito no elenco. Maria Bethânia, Ivan Lins, Teresa Cristina e Gabi Milino também regravaram esse clássico. Quando Noel escreveu a letra, menos de um ano antes de falecer vítima de tuberculose, aos 26 anos, a doença não o impediu de manter o humor, que se pode notar nos divertidos versos, que mesclam sentimentalismo com gaiatice: “Um grande amor tem sempre um triste fim/ Com o Pierrô aconteceu assim/ Levando este grande chute/ Foi tomar vermute/ Com amendoim…”. Ao fim, uma Colombina altiva e ébria manda os pretendentes às favas e sugere que eles tomem sorvete juntos.
“Palpite Infeliz” (samba, 1936) – Noel Rosa
Desde que o samba é samba e a música brasileira se entende por si, desavenças entre seus integrantes renderam hits e até incidentes mais graves, com direito a ações na Justiça e agressões físicas. A rivalidade entre Noel Rosa e Wilson Batista está na capa de um LP da Odeon intitulado “Polêmica”, com uma caricatura de Nássara. “Rapaz Folgado”, de Noel, foi respondida com “Lenço no Pescoço”, de Wilson. “Palpite Infeliz” foi retrucada com “Mocinho da Vila”. “Feitiço da Vila” e “Terra de Cego” deram fim ao embate. Todos clássicos.
“Provei” (samba, 1937) – Noel Rosa e Vadico
Antes de morrer em junho de 1962 nos braços do compositor Wilson das Neves dentro dos estúdios da gravadora Columbia, em razão do terceiro infarto que sofria, Vadico acompanhou Carmen Miranda durante o auge da cantora nos Estados Unidos, tornou-se diretor musical de filmes da Disney, compôs músicas de temática afro-brasileira para a bailarina norte-americana Katherine Dunham, empreendeu parcerias com Braguinha, Lamartine Babo e Heitor dos Prazeres e foi o pianista de Roberto Carlos na estreia do futuro Rei na boate carioca Plaza. Só para completar, viveu uma paixão frustrada com a “Mulher-Gato” (na verdade, sua intérprete na década de 60, a bailarina, atriz e cantora Eartha Kitt). E, claro, compôs clássicos com Noel Rosa como o samba “Provei”.
“Século do Progresso” (samba, 1937) – Noel Rosa
Aracy de Almeida tornou-se conhecida de toda uma geração como a jurada mal-humorada de programas de calouros comandados por Silvio Santos e Chacrinha. A pecha, no entanto, não faz justiça à sua história. “Araca”, apelido que ganhou do cronista e compositor Antônio Maria, era a cantora predileta de Noel Rosa, e uma das mais requisitadas na Era de Ouro do Rádio. Foi ela quem lançou, em 1937, “Século do Progresso”, samba de Noel que versa sobre a violência urbana do Rio de Janeiro, como uma espécie de crônica. A música recebeu regravações de Elizeth Cardoso, Ivan Lins, Cristina Buarque, e outros.
“Pastorinhas” (marcha, 1938) – Noel Rosa e Braguinha
“Linda Pequena”, a primeira versão da histórica “As Pastorinhas”, mais exitosa parceria de Noel e Braguinha, o João de Barro, foi lançada, e com sucesso, por João Petra de Barros, sendo bisada no rádio por cerca de dois anos até a definitiva versão, lançada por Silvio Caldas um ano após a morte de Noel Rosa. Fato este que prenunciou a derrocada da carreira e vida de João Petra. Que em pouco tempo perdeu, para a mesma doença, a tuberculose, dois amigos do samba, Noel e Nílton Bastos. Mas a marcha de Noel e Braguinha venceu o tempo, superando cem regravações, por Cauby Peixoto, Alceu Valença, e etc.
“Último Desejo” (samba-canção, 1938) – Noel Rosa
Embora não tenha sido composta para animar os festejos de junho, a música “Último Desejo” figura entre os clássicos da canção brasileira e teve inspiração, ao menos inicial, na festa. Lançada um ano após a morte de seu compositor, Noel Rosa, em 1938, por sua amiga Aracy de Almeida, ela é uma despedida amorosa no formato de carta. Os primeiros versos justificam a ligação: “Nosso amor que eu não esqueço/e que teve seu começo/numa festa de São João”. A música passou para o repertório clássico do samba-canção graças à sua força.
“Pra Quê Mentir?” (samba, 1939) – Noel Rosa e Vadico
Caetano Veloso se traveste de mulher para responder ao samba lamentoso de Noel Rosa. É a mulher que se defende das acusações do homem e apela à ele que respeite sua condição, sua dor e sua delícia. Apela a ele para que a deixe em paz, não mais a olhe, não a procure, não fale com ela, cale a boca e siga o seu caminho, pois ela fará o mesmo. É a mulher que pede ao homem que ele deixe a verdade fria das palavras e encare a mentira quente e contundente da vida. A mentira que norteou todo o amor entre os dois e que agora os separa de vez. É a mulher que apela ao homem para que ele a entenda. Entenda seus motivos mais loucos e não a julgue. Pra quê mentir? Se tu ainda não tens esse dom de saber iludir…
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.