Música de Paulinho Pedra Azul não foi feita para noiva morta ou bem-te-vi

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Nem o próprio Rei Salomão seria capaz de descobrir onde começa a verdade e acaba a mentira.” Gógol

Imagine a cena: o sangue escorre da boca da noiva, que acaba de morrer em um acidente de carro. Essa é a última imagem que o compositor tem de sua amada, e, para não lembra-la desta forma e preservar outra lembrança, ele compõe uma linda música, que diz: “tua boca pingava mel”. Mais à frente, se questiona, consternado: “Onde estás?/ Voei por este céu azul/ Andei estradas do além/ Onde estará meu bem?”.

Paulinho Pedra Azul mal tinha acabado de trocar a camisa suada quando um homem aos prantos, desesperado, empurrando os demais, entrou no camarim em Pouso Alegre, no Sul de Minas, emocionado com o espetáculo que acabara de presenciar. Paulinho pensou: “Pô, esse cara deve ter adorado o show”, ao receber o abraço apertado.

“Eu passei pelo mesmo problema que você. Eu também tive uma noiva que morreu”, declarou o sujeito. Paulinho deu um tempo, o consolou e acariciou antes de esclarecer: “Olha, se minha música fez você se lembrar de sua noiva que morreu… Tudo bem e tal. Mas eu não tive noiva e nessa música ninguém morreu”. O homem tornou a abraçar Paulinho, sem recuar: “Eu sei que você não gosta de tocar no assunto”.

“Aí eu falei: ‘Não tem jeito!’”, desistiu Paulinho.

Bem-te-vi. Ainda hoje correm boatos sobre a inspiração de “Jardim da Fantasia”, que deu título ao primeiro disco de Paulinho Pedra Azul, em 1982. E esse não é o único. Outro erro comum é confundir um verso fundamental com um passarinho. “Bem te vi, bem te vi/ Andar por um jardim em flor/ Chamando os bichos de amor/ Tua boca pingava mel”.

Paulinho explica que a expressão “bem te vi” significa “o mesmo que te olhei, te vi andar em um jardim em flor”, sem nenhuma relação com a ave de canto canoro conhecida entre os índios como pituã. Contradições da música que, na união entre verso e melodia, permite interpretações ambíguas.

Confusão. Para não desiludir as crianças de uma escola no interior de Minas, Paulinho foi impedido de revelar a sua real intenção ao criar a letra. Convidado por uma professora, ele chegou a um pátio enorme, e, quando a porta se abriu, centenas de crianças exibiam pequenos bem-te-vis feitos de papel, que elas faziam “voar” enquanto cantavam “Jardim da Fantasia”.

“Olha, está tudo lindo, maravilhoso, mas o bem te vi aí da música não é do passarinho, não. É o mesmo que eu te olhei, bem que eu vi você andar por um jardim em flor”, explicou Paulinho reservadamente à professora, que se apavorou. “Pelo amor de Deus! Jamais revele isso para essas crianças! Há três meses que elas estão recortando os bem-te-vis só pra cantar pra você!”.

Inspiração. Na verdade, “Jardim da Fantasia” foi uma das primeiras músicas que Paulinho Pedra Azul compôs, quando ele tinha por volta de 17 anos. A separação da primeira namoradinha foi o que motivou a canção, sem nenhuma relação com a trágica história de uma noiva morta. “Falavam que ‘jardim em flor’ era o cemitério, e a música foi feita apenas para uma separação, para dois adolescentes que tiveram dois anos de namoro e se separaram”, esclarece.

O motivo da separação? Paulinho teve que deixar a cidade natal para cursar o colegial em Vitória, no Espírito Santo. No trajeto de Pedra Azul para Governador Valadares, e depois embarcando de trem para Vitória, nasceu “Jardim da Fantasia”, um dos clássicos da canção brasileira, que colocou Paulinho como o segundo cantor mais lembrado de Minas em uma pesquisa feita pela AMAR (Associação de Músicos, Arranjadores e Regentes), atrás apenas de Milton Nascimento.

Publicado originalmente no portal da Rádio Itatiaia em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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