*por Raphael Vidigal Aroeira
“Deves trazer o caos dentro de ti para fazer nascer uma estrela bailarina.” Nietzsche
A morte de Miriam Batucada resume um dos capítulos mais deprimentes da vida de qualquer pessoa. O fim da existência costuma ser sempre melancólico, mas, no caso da artista, durante vinte dias ninguém percebeu que ela havia morrido. Retrato mais profundo da solidão não há.
Esse capítulo final contrasta com a imagem descontraída que Miriam cultivou, e, de quebra, torna premonitório o samba “Batucando na Mão”, de Renato Teixeira, que ela lançou em um compacto, no ano de 1968: “O doutor até já disse/ Que a minha doença é ‘sambice’/ Que mata do coração/ Mas nada disso interessa/ Pois que morte vai ser essa/ Se eu vou fazer batucada/ Na tampa do meu caixão…”, determina.
Miriam tinha 47 anos quando sofreu um infarto fulminante, no dia 2 de julho de 1994, e morreu sozinha no apartamento onde morava, em Pinheiros, São Paulo. A irmã, que residia em Maringá, só foi encontra-la duas semanas mais tarde. Os amigos que lhe restaram na época contam que ela estava deprimida, e fazia um regime para emagrecer.
Há menos de três anos, Miriam havia lançado o seu segundo disco, “Alma da Festa”, de 1991, por uma pequena gravadora, após muito penar. Ela chegou a apresentar o trabalho no programa “Jô Soares Onze e Meia”, no SBT, sem esconder a empolgação pelo momento. Riu e contou piadas para o apresentador, colocou a plateia para cantar e tudo.
Estreia. Mas o caminho até ali tinha sido árduo. Miriam surgiu para os holofotes em 1967, em programas de auditório, e logo percebeu que sua maneira de interpretar seria restringida. “Descobri que não sou uma cantora brasileira, mas paulista”, declarou, já dando uma mostra de sua verve.
O que chamou a atenção nesse primeiro momento foram as batucadas que ela emitia com a palma das mãos, e que renderam o apelido pregado por Cidinha Campos, outra apresentadora de TV: Miriam Batucada. Ela se tornou uma espécie de atração exótica, que tocava vários instrumentos e ainda improvisava no palco. O talento fora descoberto na adolescência, com a ajuda de uma menina mal falada no bairro da Mooca, conservadora comunidade dos imigrantes italianos.
A tal garota tinha fama de namoradeira, deixava-se dançar com “o rostinho colado”, nas palavras de Miriam Batucada, e ensinou o impulso inicial que ela transformou numa maneira própria de ritmar o corpo, através das mãos, conduzindo também o seu canto.
Dominando esse incomum batuque com as mãos e tornando-o cada vez mais veloz, numa prova de habilidade e virtuosismo, Miriam virou figurinha carimbada nos programas de Ronnie Von e congêneres na TV Record. Paralelamente, subia ao palco em boates da noite paulistana. Foi lá que o performático Edy Star, um baiano de Juazeiro, a descobriu, e indicou para o disco que o comparsa Raul Seixas queria produzir.
Atrevimento. Produtor nada ortodoxo da CBS, o futuro “Maluco Beleza” da música brasileira aproveitou uma viagem conjunta de seus chefes para arriscar um pouco e escapar aos moldes que a indústria propunha. Ele já havia escolhido Edy e o capixaba Sérgio Sampaio, amigo de boemia, para acompanha-lo. Faltava a cantora.
Após algumas recusas, se cativaram com o jeito despojado e jocoso de Miriam Batucada, eleita para aparecer na capa de “Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das 10” vestida de super-mulher, ao lado de um Raul hippie, um Sérgio com a amarelinha da Seleção e Edy posando de miss alguma coisa. Cada um debochava à sua maneira. Miriam com a sua preferência sexual pelas mulheres, a que ela nunca assumiu para a imprensa.
Mas quem convivia com a artista tinha consciência, e isso já era bastante público. O disco de 1971 provocou mais barulho dentro da gravadora do que nas rádios. Os executivos, possessos com o atrevimento da empreitada, mandaram retirar o álbum de catálogo e demitiram Raul por justíssima causa.
Miriam cantava duas faixas: “Chorinho Inconsequente”, de Edy e Sampaio, e “Soul Tabarôa”, de Antônio Carlos & Jocafi. A proposta do álbum era esgarçar os limites da música brasileira e promover misturas inusitadas. O resultado foi uma obra cheia de vitalidade e psicodelismo. No ano seguinte, Raul produziu um compacto de Miriam com a música “Diabo no Corpo”, samba carnavalesco.
Protagonista. Apesar da tímida repercussão popular, a Chantecler decidiu apostar em Miriam, que lançou, em 1974, o seu primeiro LP, na sequência de uma série de lançamentos avulsos que contemplavam sambas, xotes e toadas. Essa personalidade revisionista dá as cartas em “Amanhã Ninguém Sabe”, título retirado de música carnavalesca de Chico Buarque, alocada no disco ao lado de “Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua”, de Sérgio Sampaio.
Ao contrário do autor, Miriam confere uma interpretação solene e melancólica a essa marcha-rancho. Outros destaques são o choro “O Que Vier Eu Traço”, que Baby do Brasil regravaria, as toadas “Chuá Chuá” e “Felicidade”, de Lupicínio Rodrigues, e sambas de breque impagáveis, e em que Miriam deitava e rolava.
“Apanhei Um Resfriado” e “Acertei no Milhar”, de Moreira da Silva, entram nesse pacote. “Conversa de Samba” exalta o gênero mais tradicional do país, em música lançada por Elza Soares. E, para arrematar, Miriam surpreende com a parceria de Roberto e Erasmo Carlos, que ela toma para si: “O Show Já Terminou”, uma preciosidade.
“O show já terminou/ Vamos voltar à realidade/ Não precisamos mais/ Usar aquela maquiagem/ Que escondeu de nós/ Uma verdade que insistimos em não ver…”. Era como se Miriam admitisse que sua vida era muito mais dura do que a personagem que ela encarnava no palco. De sua lavra, constava “Você É Seu Melhor Amigo”, uma peça de autoajuda. E, na capa, Miriam surgia em um cenário surrealista, amparada por suas duas mãos.
Abandono. As composições autorais só ganhariam espaço na década de 1990, com a irreverente “Samba Nipônico” e a mordaz “Carro de Polícia”, em que ela aproveita a deixa para tirar um sarro de Roberto Carlos, e traça um retrato debochado da desigualdade brasileira: “Ó nóis tudo junto no carro da polícia/ (…) Eu com a viola e um gringo sequestrador/ Um traficante, um político importante/ Um paralítico ambulante, dois amante e um cobertor/ Um libanês só de turbante, um português/ Uma mulata, um índio de terno e gravata e gravador/ Um realejo com um gato/ No lugar de um periquito, um pai de santo/ Um fio de rico, um camelô”. Em “A Desquitada”, Miriam faz graça da maneira dramatizada de interpretar das duplas caipiras. “Alma da Festa” a resume toda.
Entre 1974 e 1991, Miriam ficou sem gravar, com exceção de um compacto esparso. Como ela se virou, ninguém sabe. O ostracismo imposto à artista expunha a crueldade de uma indústria que relegava ao fracasso seus tipos mais excêntricos e vulneráveis. Aos poucos, o nome de Miriam Batucada foi apagado da história. Até ela ser encontrada solitária, na cama de seu modesto apartamento paulista, com um atraso muito maior do que o de duas semanas…
Publicado originalmente no portal da Rádio Itatiaia.