“A solidão mostra o original, a beleza ousada e surpreendente, a poesia. Mas a solidão também mostra o avesso, o desproporcionado, o absurdo e o ilícito.” Thomas Mann
A primeira vez que ouvi falar em Michel Melamed foi na Faculdade de Comunicação e Artes, durante o curso de jornalismo, em 2008. O professor Márcio Serelle, que mais tarde escreveria o prefácio do meu primeiro livro (“Amor de Morte Entre Duas Vidas”), falava entusiasmado sobre o trabalho “Regurgitofagia”, um marco da dramaturgia nacional que unia diversas linguagens, como poesia, teatro e artes plásticas, e propunha uma radical interação com a plateia, onde cada reação sonora emitida por esta era captada por microfones e transformada em descargas elétricas que atingiam em cheio o corpo de Melamed. Como as aulas do professor Serelle me impressionavam, a partir deste momento ambos passaram a me impressionar.
O encontro “pessoal” com Melamed se daria pouco tempo depois, quando o ator, escritor, poeta, diretor teatral e futuro apresentador de televisão apresentou uma palestra para lá de performática na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Minas Gerais. Da cadeira onde eu estava, a poucos metros de distância do convidado, as provocações de uma palestra que nada afirmava, mas, ao contrário, lançava questões uma atrás da outra, borrando e rompendo as barreiras entre representação e realidade, confirmaram definitivamente a admiração pela personalidade artística de Melamed. Ao ter a oportunidade de entrevista-lo, também busquei as memórias remotas do personagem. Antes de ser contratado pelo Canal Brasil, ele foi espectador da emissora.
“Desde o início já me chamava a atenção por ser um dos canais mais originais e criativos da TV brasileira, inclusive no tocante aos programas de entrevista, e que fazia um resgate dos filmes nacionais”, relembra ele, que cita o histórico “Pixote, a Lei do Mais Fraco” (1980), de Héctor Babenco, como um desses exemplos. Já na condição de espécie de celebridade alternativa, Melamed recebeu, em 2009, o convite do cineasta Nelson Hoineff para tocar o primeiro projeto na “casa do cinema brasileiro” (como diz o slogan) e que se chamava, justamente, “Celebridades do Brasil”, que ele ajudou a dirigir e roteirizar. A experiência propiciou o contato com Paulo Mendonça e André Saddy, dois dos oito idealizadores do canal, entre eles, Zelito Vianna e Luiz Carlos Barreto.
“Eles são executivos de televisão, mas são artistas, o que dá uma combinação perfeita porque conseguem compreender a proposta e te dão asas, compram a ideia de projetos que se querem originais nas suas linguagens, sem uma referência tão clara, são apostas. Para uma coisa dessas acontecer, você precisa de um artista do outro lado, mesmo que ele seja um executivo”, afirma Melamed, que diz ter se tornado amigo de Mendonça e Saddy, o que pode ser confirmado pelos programas posteriores que ele tocou na emissora. “É um canal que tem grandes restrições de recursos, mas que aposta em projetos que, mais do que ousados, são artísticos. É isso que me interessa. Eles trabalham ligados nas antenas dos poetas, e não apenas aquela previsão do consumidor”, define.
Vendo. Melamed é um daqueles casos que une a experiência acadêmica à atuação nos palcos, e se vale de um vasto arcabouço teórico em seu processo criativo. Autodidata, o carioca é a prova viva da intersecção entre as relações de erudição e popularidade. “A TV é curiosa, porque costuma incidir sobre ela essa questão do fosso entre arte e entretenimento, se é que ele existe. Me parece que entreter está mais próximo da ideia de produto, no sentido de tentar prever o que o público vai querer, como um iogurte. Mas a área que a gente trabalha é a artística, e ela está além disso, lidamos com outros códigos, onde o público ainda não sabe o que quer”, afiança. Em 2010, Melamed estreou no Canal Brasil o programa “Campeões de Audiência”.
No ano seguinte, ganhou uma bolsa da Fundação Nacional de Artes (Funarte) para ficar 6 meses em Nova York e resolveu apresentar uma ideia ainda mais ousada. “Cheguei no canal e contei a ideia do ‘Seewatchlook’. Eles me perguntaram: ‘e se você não conseguir montar a peça?’. Aí eu disse que seria gogoboy na Tailândia, mas conseguiria um jeito de dar continuidade, e eles toparam”, relembra. Capa da New York Times, a peça questionava os limites entre ficção e realidade, um dos paradigmas da obra sempre curiosa e irrequieta de Melamed, e se desdobrou em um documentário que trazia a epígrafe “O Que Você Vê Quando Olha o Que Enxerga?”. “Chego sempre com a ideia mais estapafúrdia e irrealizável possível”, observa Melamed.
Contrariando a ironia da própria frase, ele passou a comandar, em 2015, o “Bipolar Show”, que teve três temporadas. “Foi o último projeto que fiz na TV e, olhando em retrospecto, é curioso, porque de um lado eu ambiciono, como premissa criativa, sempre me colocar numa situação nova. Algum tempo atrás, eu percebi que só poderia fazer o que não sei fazer. Sempre tento criar coisas impossíveis de serem realizadas, pelo menos inicialmente. Meus projetos são tentativas de criar coisas que vão se criando, a partir do desejo de fazer o que não sei, e fugindo das histórias que têm uma relação de causalidade e continuidade, procurando um certo aprofundamento. O ‘Bipolar Show’ é o aprimoramento de tudo o que eu vinha fazendo”, declara.
Enxergando. Apesar de ter se tornado praticamente um veterano da emissora, Melamed não deixou para trás sua condição de espectador. Ele confessa que se sensibilizou com a estreia do programa de Gilberto Gil, “Palavras e Sons”, em setembro de 2018, quando o compositor baiano recebeu o conterrâneo Caetano Veloso, juntando no mesmo lugar dois dos principais artífices do movimento tropicalista na música brasileira. “Gil e Caetano são o que temos de melhor, gente sensível e inteligente que contribuiu muito para o país. Eles são os ‘canais brasis’ personificados. Ambos carregam uma visão de país e projeto de nação que têm sido questionados atualmente, em meio a uma eleição que trouxe ameaças terríveis, nazistas”, lamenta o entrevistado.
Dono de um temperamento naturalmente experimentalista, irreverente, vanguardista e progressista, Melamed, como de praxe, contraria as expectativas, ao menos no primeiro momento, e faz um apelo para que o nosso olhar se volte ao passado. “Agora é importante e fundamental, mais do que nunca, olhar para os nossos ídolos e perceber o caminho que eles percorreram, as histórias longevas que eles construíram, enfrentando situações difíceis para o país, e procurar aprender um pouco para não repetir erros. É hora de dizer não aos nazistas, e sim aos nossos artistas, para que uma nova história seja possível”, finaliza. Para quem anda com saudades do ator, em breve ele voltará às telas com o seriado “Onde Está Meu Coração?”, contracenando com a esposa Letícia Colin.
Raphael Vidigal
Fotos: Canal Brasil; e Carolina Vianna, respectivamente.