Marcos Valle compôs música contra o racismo e inspirou até Gilberto Gil

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Olha, é como o verão
Quente o coração
Salta de repente
Para ver a menina que vem” Marcos Valle & Paulo Sérgio Valle

Marcos Valle nasceu no Rio de Janeiro, no dia 14 de setembro de 1943. Irmão do também letrista e compositor Paulo Sérgio Valle, ele começou a estudar piano aos seis anos de idade. O primeiro sucesso em parceria dos irmãos foi a música “Sonho de Maria”, gravada pelo Tamba Trio, em 1963. Na época, Marcos Valle participava de um trio ao lado de Edu Lobo e Dori Caymmi. Em 1964, ele estourou em todas as rádios com “Samba de Verão”, outra parceria com o irmão Paulo Sérgio, que atingiu o segundo lugar nas paradas de sucesso dos Estados Unidos. Representante da segunda geração da bossa nova, Marcos Valle também fez sucesso na época dos festivais, com músicas como “Viola Enluarada”, “Estrelar”, “Black Is Beautiful”, “Bicicleta”, entre outras.

“Gente” (bossa nova, 1964) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Cantora que já nasceu bossa nova quando, em 1964 estreou no LP com “Claudete É Dona da Bossa”, Claudette Soares soube assimilar como poucos as inovações da turma de Tito Madi, Dick Farney, Lúcio Alves, Nara Leão, João Gilberto, Tom Jobim e Marcos Valle. Aliás, “Gente”, de Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, abre o seu LP de estreia. Um ano antes, os irmãos Valle haviam tido suas primeiras músicas gravadas, quando o conjunto Os Cariocas lançou simultaneamente, em 1963, as músicas “Vamos Amar” e “Amor de Nada”, que mereceu regravação entusiasmada de Leny Andrade. “Gente” também recebeu a voz do “Professor” Cauby Peixoto, mas se consagrou com Claudette. “Gente que entende/ Que não deve dar/ Porque nunca na vida sofreu por não ter…”.

“Samba de Verão” (samba-bossa, 1965) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Inspirado no estilo que consagrou duplas formadas por Vinicius e Tom e Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, “Samba de Verão” foi apresentada primeiramente justamente para Menescal, que não teve dúvidas e cravou: “Vai ser um estouro!”. Ele não estava errado. Em 1965, a música de Marcos Valle foi lançada, ainda sem letra, pelo grupo Os Catedráticos, de Eumir Deodato. No mesmo ano, recebeu letra de Paulo Sérgio Valle e a voz de Marcos Valle, que a registrou no LP “O Compositor e o Cantor”, o segundo da sua trajetória. Dois anos depois, este samba-bossa chegou ao sucesso em território norte-americano, graças à gravação de Walter Wanderley e seu trio. “Você viu só que amor/ Nunca vi coisa assim/ E passou nem parou/ Mas olhou só pra mim”.

“Preciso Aprender a Ser Só” (canção, 1965) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Irmão de Marcos Valle, um dos mais proeminentes músicos da chamada segunda fase da bossa nova, o letrista e compositor Paulo Sérgio Valle soube preencher com discursos simples e filosóficos as melodias de “Samba de Verão”, “Viola Enluarada” e “Preciso Aprender a Ser Só”, que inspirou Gilberto Gil a compor a existencialista “Preciso Aprender a Só Ser”. A dupla em família ainda rendeu a politizada “Black Is Beautiful”, interpretada de maneira arrebatadora por Elis Regina, e que se transformou em espécie de hino contra o racismo no Brasil. Tony Tornado, ao assistir à apresentação de Elis, subiu ao palco com os punhos cerrados, repetindo o forte gesto dos “Panteras Negras”, movimento antirracista norte-americano, e acabou preso pela ditadura militar.

“Viola Enluarada” (canção-toada, 1968) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Na casa de Tom Jobim, um recém-chegado de uma longa temporada nos Estados Unidos, Marcos Valle, conheceu Milton Nascimento, compositor para quem Eumir Deodato havia lhe chamado atenção. Eumir escrevera os arranjos para as músicas de Milton inscritas no II Festival Internacional da Canção. A identificação entre Marcos e Milton foi imediata, e eles logo entoaram juntos “Viola Enluarada”, música de Marcos com letra do irmão Paulo Sérgio Valle. Também em dupla, os dois a registraram para um compacto da Odeon, que depois virou parte do álbum de 1968 de Marcos, batizado, justamente, como “Viola Enluarada”. Antes, a música já havia sido cantada em shows pelo Quarteto em Cy e pela cantora Eliana Pittman. E a música foi grande sucesso.

“Bloco do Eu Sozinho” (marcha, 1968) – Marcos Valle e Ruy Guerra
No Festival de Música Popular Brasileira de 1968, Marcos Valle e Ruy Guerra concorreram com “Bloco do Eu Sozinho”. Embora não tenha faturado o prêmio, a marcha angariou regravações de Joyce e do Quarteto em Cy naquele mesmo ano. Chico Buarque também deu voz a essa canção décadas depois. Como já anuncia a letra, a música traz a convivência entre a melancolia da solidão e uma leve esperança carnavalesca. “No bloco do eu sozinho/ Sou faz tudo e não sou nada/ Sou o samba e a folia/ De fantasia cansada/ (…) Sou o enredo da parada/ Sou cachaça e sou tristeza/ Pulando junto e sozinho/ Faço da rua uma mesa”. Já em 2001, a expressão que dá título à música serviu para batizar o segundo disco do grupo carioca Los Hermanos, que alcançou muito sucesso.

“Mustang Cor de Sangue” (pop, 1969) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Provocativo, autoconfiante e chegado a uma ostentação – sua queda por carros de luxo e roupas de marca era conhecida –, Wilson Simonal sabia colocar essas características em sua música. Dono de uma voz charmosa, sensual e um domínio do ritmo intuitivo, ele chegou a rivalizar com Roberto Carlos no auge da Jovem Guarda. Acusado de colaborar com a ditadura militar, Simonal amargou um longo ostracismo após essa revelação. A simpatia pelo regime, embora não expressa publicamente, era notória, desde que, na juventude, cumprira o serviço militar obrigatório. Antes disso, Simonal deu voz a um grande sucesso dos irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle. “Mustang Cor de Sangue”, lançada em 1969 e regravada por Marlene e o próprio Marcos.

“Com Mais de 30” (pop, 1970) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Um encontro decisivo na trajetória da cantora Claudya se deu com os irmãos Paulo Sérgio e Marcos Valle, autores daquele que talvez seja o maior sucesso de sua carreira, a música “Com Mais de 30”. “Os irmãos Valle têm uma participação fundamental na minha carreira, porque me deram uma música inédita pra gravar, que fez um grande sucesso e é lembrada até hoje pelo pessoal da mais nova geração, sendo muito moderna e conseguindo atravessar o tempo”, avalia Claudya. “Com Mais de 30” foi lançada em 1970, e recebeu regravações da própria Claudya no ano seguinte, e ainda de nomes como Dóris Monteiro, Miltinho, Jorginho Telles, Verônica Ferriani e também do autor Marcos Valle. A música segue como um hino atrelado à rebeldia juvenil.

“O Cafona” (pop, 1971) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Feita sob encomenda para a trilha de abertura da novela “O Cafona”, da Rede Globo, a música homônima dos irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle incluiu mais uma integrante da família ao ser lançada, em 1971. A irmã Ângela Valle também participa da gravação. Um ano antes, em 1970, Marcos e Ângela haviam registrado um dueto na provocativa música “Eu e Ela”, em que insinuavam uma relação sexual. Com Marília Pêra, Francisco Cuoco, Tônia Carrero, Paulo Gracindo e Renata Sorrah no elenco, a novela “O Cafona” auxiliou no sucesso da música. Na capa do disco “Garra”, Marcos Valle surgia em um corpo de ave de rapina, sobre as cores da bandeira do Brasil. “O Cafona” também foi gravada por Caçulinha, MPB-4, Jorginho Telles, e outros.

“Black Is Beautiful” (música soul, 1971) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Em plena ditadura militar no Brasil, no ano de 1971, os irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle lançaram um hino à beleza e força dos negros. Para tanto, fizeram uso de um dentre os inúmeros ritmos identificados com a causa, a “soul music”. Neste mesmo ano, Elis Regina, como era de costume ao interpretar qualquer canção, acrescentou ainda mais charme e vigor à música. “Black Is Beautiful” reage com indignação e coragem a todo o histórico de discriminação contra os negros, aos estereótipos e condições petrificadas pela escravidão, e ainda arremata com versos de erotismo e sensualidade pungentes: “Eu quero um homem de cor/ Um Deus negro/ Do Congo ou daqui/ Que se integre no meu sangue europeu…”. A canção ganhou uma regravação de Sandra de Sá.

“Não Tem Nada Não” (rumba, 1973) – Marcos Valle, João Donato e Eumir Deodato
Em 2018, o produtor Rafael Ramos reeditava, para a coleção “Clássicos em Vinil”, o LP “Previsão do Tempo”, de 1973, cultuado pelos fãs de Marcos Valle. “O ‘Previsão do Tempo’ tinha duas características marcantes. Musicalmente, ele foi calçado nos grooves do meu piano e do Fender-Rhodes (teclado que virou mania nos anos 70); por outro lado, trazia uma conotação política muito forte, em função da ditadura e da censura que a gente vivia. As letras carregavam essa implicação política e social”, observa Marcos Valle. O repertório trazia músicas como “Nem Paletó, Nem Gravata”, “Os Ossos do Barão” e “Samba Fatal”, parcerias com Paulo Sérgio Valle. Outro destaque era “Não Tem Nada Não”, rumba que reunia Valle, João Donato e Eumir Deodato.

“Vestígios” (MPB, 1985) – Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle
Dez álbuns da discografia de Nara Leão foram disponibilizados nas plataformas digitais pela Universal Music. Intérprete associada à Bossa Nova por sua voz de extensão pequena e seu estilo intimista de cantar, o período captado pela compilação demonstra as habilidades de Nara, capaz de transitar com desenvoltura tanto pelo repertório romântico de Roberto Carlos quanto pelas inovações estilísticas da Tropicália, além de ser a primeira a dar voz ao samba do morro carioca. Feito em parceria com Roberto Menescal, “Um Cantinho, Um Violão”, de 1985, abre espaço para a dor de cotovelo de Antônio Maria, o samba sincopado de Geraldo Pereira e a originalidade dos irmãos Marcos Valle e Paulo Sérgio Valle, que comparecem com a romântica, e singela, “Vestígios”.

“Cinzento” (pop, 2020) – Marcos Valle e Emicida
O plástico que envolve Marcos Valle na capa de “Cinzento” é rasgado na contracapa, que, como numa espécie de segundo ato, demonstra a reação do músico a “tudo aquilo que prende”. “Não gosto de nada que me segure, estou sempre me soltando”, constata Valle. “Cinzento” pinta a cor do espírito de uma época. Composta com Emicida, a música contou com a interferência do produtor Marcus Preto, que apresentou os futuros parceiros. “Adoro o Emicida, acho ele um craque. Uma vez que nos colocaram em contato, nós já saímos compondo”, festeja Valle. “Além de manter a divisão rítmica, Emicida botou uma poesia maravilhosa. ‘Cinzento’ tem esse balanço e, ao mesmo tempo, uma cadência mais lenta”, afirma o compositor carioca, que a lançou em 2020.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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