José Ramos Tinhorão foi o crítico musical mais temido do Brasil

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Desde sempre (…) o romance teve como verdadeiro objeto o conflito entre os homens vivos e as relações petrificadas.” Theodor W. Adorno

Bossa Nova é o “ritmo da goteira”. “Quem primeiro fez rap foram os padres, que leram o texto evangélico em forma rítmica, os cantochões”. Clara Nunes “era uma oportunista completa”. Ney Matogrosso “chorava que nem uma rameira”. Tom Jobim foi “um coitado, plagiador”. E Milton Nascimento, “outro blefe”. Essas opiniões foram espalhadas nos jornais mais conceituados do país ao longo de décadas por José Ramos Tinhorão, que morreu nesta terça (3), aos 93 anos.

O estilo agressivo, sem papas na língua, dado a arroubos definitivos e peremptórios, rendeu a Tinhorão o epíteto de crítico musical mais temido do Brasil, amado e odiado na mesma medida pelo seu expressivo séquito de admiradores e adversários. Sérgio Cabral pai o chamou de “agente infiltrado da CIA”, Caetano Veloso definiu seus artigos de “histéricos”, e Chico Buarque o ameaçou de pancada. Tom Jobim o ironizava: “Tinhorão acha que não sou autêntico. Eu também acho que não sou. Autêntico é o jequitibá”.

Pesquisador musical e historiador que se valia de uma ampla bagagem informativa e uma tendência para a polêmica, transmitida em linguagem direta e provocativa, Tinhorão publicou mais de 25 livros, entre eles os aclamados “Música Popular: Um Tema em Debate”, “Crítica Cheia de Graça” e “O Samba Agora Vai…: A Farsa da Música Popular no Exterior”. Cantado em verso de Aldir Blanc por Elis Regina, se tornou um capítulo incontornável para quem estuda a música popular brasileira.

“Continuo um gozador, pelo seguinte: sou dialético e tenho uma formação marxista, de materialismo histórico. Entendo a história como o momento de um processo, a ideia da coisa que vai avançando no tempo e nunca se repete de forma igual. Na nossa vida pessoal também é assim, você vai de criança a jovem, passa por adulto, e fica velho, cumpre o curso que é normal. A maior parte dos velhos fica idiota, com aquela coisa de ‘no meu tempo’. Daqui a 60 anos, o menino de hoje vai dizer a mesma coisa”, resumiu Tinhorão, em 2018.

“Querelas do Brasil” (samba, 1978) – Aldir Blanc e Maurício Tapajós
O fato de achincalhar Tom Jobim, João Gilberto, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Cartola, Clara Nunes, Elza Soares, Belchior, Chico Buarque, Gilberto Gil e Caetano Veloso valeu a José Ramos Tinhorão uma “homenagem”. Em 1978, ele foi cantado por Elis Regina na música “Querelas do Brasil”, de Maurício Tapajós e Aldir Blanc, num verso onde era colocado ao lado de duas espécies de cobras: urutu e sucuri. A letra foi uma resposta de Aldir Blanc a um artigo de Tinhorão, intitulado “O Melhor de João Bosco é Aldir Blanc”, em que defenestrava o violonista de Ponte Nova. Blanc tomou as dores e saiu em defesa de seu parceiro. “Querelas do Brasil” é uma queixa diante da americanização cultural do país e subverte a premissa de “Aquarela do Brasil”.

“Barco Negro [Mãe Preta]” (fado, 1943) – Caco Velho, Piratini e David Mourão
Em 1959, o compositor Caco Velho passava temporada em Paris quando se assustou com uma notícia trazida pela filha Elisa. Um cantor britânico cantava a sua música “Mãe Preta” na televisão sem atribuir-lhe autoria. Caco Velho foi aos jornais cariocas e denunciou a nova apropriação europeia de sua cantiga, que acontecia pela terceira vez. Lançada originalmente, em 1943, como um batuque pelo Conjunto Tocantins, “Mãe Preta”, parceria com Piratini, ganhou o mundo em forma de fado. A fadista portuguesa Maria da Conceição foi a primeira a gravá-la. Depois, a diva Amália Rodrigues, mas, como os versos foram censurados pela ditadura de Salazar, ganhou nova letra do português David Mourão e o nome de “Barco Negro”. Em 1975, Ney Matogrosso a regravou em seu LP de estreia na carreira-solo, “Água do Céu-Pássaro”. José Ramos Tinhorão escreveu que, ao cantar, Ney “chorava como uma rameira”.

“Depois da Vida” (samba, 1971) – Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Paulo Gesta
Com uma religiosidade fervorosa, o bamba Nelson Cavaquinho tinha na relação com a morte uma das suas principais inspirações. Alguns clássicos saíram dessa obsessão, como “Rugas”, “Luz Negra”, “Folhas Secas” e “Juízo Final”. A mais pitoresca, no entanto, certamente é “Depois da Vida”. Parceria com Guilherme de Brito e Paulo Gesta (parceiro de Ataulfo Alves em “Na Cadência do Samba”), “Depois da Vida” foi lançada por Paulinho da Viola em 1971. Para se aclimatar ao ambiente fúnebre da canção, Paulinho criou um arranjo sombrio, como se um vento uivante lentamente se aproximasse de nossos ouvidos com sua nostalgia. Tinhorão escreveu que, “o arranjo, cretino, parece barulho de móvel arrastando”, e esculhambou essa versão de Paulinho.

“Samba de Uma Nota Só” (samba, 1960) – Tom Jobim e Newton Mendonça
José Ramos Tinhorão nunca foi com a cara da Bossa Nova, que definia como “jazz pasteurizado”. Dizia que Tom Jobim era um sujeito simpático, mas com um grande equívoco na vida: “Achava que fazia música brasileira”, o resumia a arranjador e músico erudito frustrado que, por conta disso, resolveu fazer samba. “Samba de Uma Nota Só”, um dos estandartes da Bossa Nova, parceria de Tom Jobim e Newton Mendonça gravada por João Gilberto em 1960 e regravada por Sylvinha Telles com o acompanhamento de Rosinha de Valença ao violão, era um dos alvos prediletos de Tinhorão. Segundo ele, a música copiava “Mr. Monotony”, de Irving Berlin, gravada por Judy Garland.

“Desafinado” (samba bossa, 1959) – Tom Jobim e Newton Mendonça
Claro que “Desafinado” não passaria incólume por Tinhorão. Ele usava uma troça de Moreira da Silva, grande cantor do samba de breque, para afirmar que a grande invenção de João Gilberto tinha sido alterar o ritmo do samba, que era muito marcado, para algo totalmente inconstante, o “ritmo de goteira”. “Desafinado” é o grande exemplar de João Gilberto nesse sentido. Música de Tom Jobim e Newton Mendonça, ela foi gravada pelo Papa da Bossa Nova como um samba bossa, em 1959. Tinhorão ia além, ao sustentar que “Desafinado” plagiava “Violão Amigo”, um samba de Bide e Marçal lançado por Gilberto Alves em 1942.

“As Rosas Não Falam” (samba, 1976) – Cartola
Numa tarde de 1975, o compositor Nuno Veloso, que levava Cartola e dona Zica até a casa de Baden Powell, resolveu comprar flores para o casal. Ao se encantar com o desabrochar da roseira no dia seguinte, Zica questionou o marido: “Como é possível, Cartola, tantas rosas assim?”, ao que ele respondeu sem muito entusiasmo: “Não sei, as rosas não falam”. E começava a florescer naquele dia mais uma música que traria voz eterna a seu compositor. Gravada por ele e por Beth Carvalho em 1976, “As Rosas Não Falam” demonstrava toda a esperança lírica de Cartola, que a escrevera em seus 67 anos. Tinhorão garantia que a melodia da música havia sido roubada da instrumental “La Rosita”, de Coleman Hawkins e Ben Wester.

“Edmundo – versão de In The Mood” (samba, 1954) – Aloysio de Oliveira
Aloysio de Oliveira aproveitou-se de uma interpretação vocal para transformar o sucesso americano de Glen Miller, composto por Joe Garland e Andy Razaf, In The Mood, no sucesso brasileiro de proporção internacional, “Edmundo”, em que se vale das trapalhadas de seu protagonista. Lançada por seu “Bando da Lua” em companhia de Carmen Miranda em 1954, a música recebeu regravação de Elza Soares e entrou para a galeria de estouros de seu repertório. Sem perder o requebrado e o bom humor, Elza mantém a forma ao interpretar diversas mancadas e peripécias no universo musical em que ressoa a vida. Segundo Tinhorão, Elza “é uma caricatura, não é cantora americana nem brasileira, é um equívoco completo”.

“Fio Maravilha” (samba-rock, 1972) – Jorge Ben Jor
“Fio Maravilha” ganhou o Festival da Canção da TV Globo em 1972. A música composta por Jorge Ben foi interpretada pela folclórica Maria Alcina. Outro personagem folclórico, o atacante João Batista de Sales, do Flamengo, time de coração do músico, era que dava nome ao sucesso. Ao contrário do que se esperava Fio não gostou da homenagem, e processou Jorge Ben, que teve que passar a cantar “Filho” no lugar do verdadeiro apelido. Anos depois, em 2007, Fio voltou atrás e concedeu para Jorge Ben o direito de cantar a música tal qual havia sido composta. Tinhorão escreveu que Jorge Ben “é pura música de consumo, requentada. É aquilo, ‘chacatum’, descobriu uma fórmula de não querer aprender a tocar direito um instrumento”.

“As Caravanas” (MPB, 2017) – Chico Buarque
“As Caravanas” é uma autêntica música de crítica social que dá nome ao disco mais recente de Chico Buarque, lançado em 2017. A música contou com uma batida de funk de Rafael Mike, egresso do Dream Team do Passinho. “Filha do medo, a raiva é mãe da covardia/ Ou doido sou eu que escuto vozes/ Não há gente tão insana/ Nem caravana do Arará/ Não há, não há”, canta Chico Buarque. Segundo José Ramos Tinhorão, “é o outono da criação de Chico, são as últimas flores. Acabou. A rigor, o que a gente ouve de música brasileira foi cultivado por essa geração, e como eles estão vivos, você acaba ouvindo. O que acontece é que, se você gostava do Chico há 30 anos, vai querer ouvir o novo disco porque é dele e pelo que já conhece dos 30 anos passados”.

“Vai Malandra” (funk, 2017) – Anitta, MC Zaac e Maejor
Não há como falar de funk e não lembrar de Anitta, ainda que ela tenha estendido o seu leque musical para diversas áreas. O crítico musical Pedro Alexandre Sanches, por exemplo, questiona se “Anitta é defensora da periferia, reaça ou isentona preocupada em agradar todo mundo o tempo inteiro?”. “Esperta e inteligente, pega o som que vem do underground e transforma em mainstream, tudo isso associado a uma imagem forte para cada videoclipe”, opina o DJ Zé Pedro. Entre os clipes mais bombados da artista estão “Vai Malandra” e “Bang”, com mais de 400 milhões de cliques. Já José Ramos Tinhorão a ignora. “A gente ouve acidentalmente, se ligo o rádio só pode ser isso, estamos sem opção. Mas não me arrisco muito. Não me dedico com isso nem quero saber quem é”.

Publicado originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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