Jaime Alem e Nair Cândia relançam disco raro com a voz de Gonzaguinha

*por Raphael Vidigal

“Não se esgota na lista de torturados, assassinados e desaparecidos e denúncia dos crimes de uma ditadura. A máquina domestica para o egoísmo e a mentira. (…) Há pouco, em Montevidéu, um menino pediu à mãe que o levasse de volta ao hospital, porque queria desnascer. Sem uma gota de sangue, sem nem ao menos uma lágrima, se executa a cotidiana matança do melhor que cada um tem dentro de si.” Eduardo Galeano

“Imagina um país que tem um presidente que faz apologia à tortura?”. Não é preciso imaginar. Diante da realidade, Jaime Alem é incapaz de esconder o espanto. “Não sou eu que falo, mas muita gente diz que está muito atual, pelo que estamos vivendo no Brasil”, completa. O maestro, arranjador e instrumentista, um dos mais requisitados da música brasileira, se refere a “Amanheceremos”, disco lançado por ele e Nair Cândia – companheira de música e vida – em 1979, de maneira independente. Jaime retorna a essa utopia na esperança de que ela nos impulsione a sonhar com dias melhores.

O álbum será leiloado por meio de uma nova plataforma conhecida como NFT, a partir desta quarta (9), com direito a exemplar do vinil original autografado pelo casal e presença na apresentação virtual de lançamento, e chega a todas as plataformas digitais a partir do dia 16 de março. O leilão do NFT contempla duas músicas inéditas e o LP é o prêmio pra quem participar do leilão. A música-título inspirou o encarte do LP, que mostra a palavra “Amanheceremos” tingida em uma faixa no alto, coadjuvada pelo sol ao fundo, com Jaime e Nair postos em frente a um banquete. A capa foi idealizada por Mauro Monteiro, à época cenógrafo da TV Globo, e pelo fotógrafo Wilton Montenegro, famoso pelos cliques de Clara Nunes.

Encontros. Depois de ouvirem as músicas, eles perceberam que aquela mesa farta, cheia de alimentos, traduzia os versos de “Amanheceremos”, que recebeu palpites de Gonzaguinha, o convidado da faixa. “Tinha umas palavras lá que ele falou: ‘Ah, tira essa, vamos mudar para… ’, não me lembro exatamente agora, sei que acabamos mexendo na letra, já faz tanto tempo…”, recorda Jaime. O trecho inspirador da capa dizia: “cada mesa forrada/todo vinho, todo pão/uma festa esperada…”. “Ou seja, que todos tenham acesso à alimentação e, por consequência, à saúde e educação”, sustenta Jaime Alem.

A amizade com Gonzaguinha começara cerca de dois ou três anos antes. “Fomos a um show dele, ficamos fãs, conversamos, e, depois, nos reencontramos naqueles shows coletivos que aconteciam, na luta pelos direitos autorais, com a participação de vários artistas, e a gente participou de alguns”. O espírito de luta e a afinidade política fomentaram essa aproximação, assim como Jota Moraes, maestro e arranjador que começou a trabalhar com Gonzaguinha. Oriundo de São Paulo, assim como Jaime e Nair, e compadre do casal, ele também rumou para o Rio de Janeiro e reencontrou a trupe musical.

Luta. “O Jota se tornou uma figura importante na carreira do Gonzaguinha, era tipo um parceiro dele e a participação no disco foi bem natural, em decorrência da nossa amizade e da nossa postura política”, explica Jaime. A amizade se aprofundou e se estendeu, com Jaime tocando guitarra em espetáculos de Gonzaguinha, o que gerou até certa confusão de agendas com Maria Bethânia, a artista que o entrevistado mais acompanhou ao longo de sua carreira. “Éramos muito amigos e nós sentimos muita falta dele, muita mesmo”, admite Jaime. Mas, ao olhar para o passado, o músico mantém a atenção no presente.

Como parte da campanha pela libertação de Flávia Schilling, militante brasileira do Movimento de Libertação Nacional presa e torturada no Uruguai, a canção “Didática” foi composta em parceria com Walter Antônio Krausche, autor dos versos chocantes, fortíssimos, como o próprio Jaime define: “a quem desafinou meu útero/ a quem me enclausurou meus passos/ quem exterminou meus ais/ (…) foi quem te pôs esse sorriso elástico/ este dar de ombros/ foi quem te fez esquecer meu fogo/ esquecer meus homens/ esquecer meu sangue/ esquecer/ feito um martelo depredando o crânio”. A melodia surge igualmente lancinante.

Esperança. Jaime define a canção como “uma denúncia”. Em 1980, depois de oito anos presa, quando a ditadura uruguaia arrefeceu, Flávia foi uma das últimas anistiadas a voltar ao Brasil. Segundo o compositor, “Amanheceremos” resgata valores como “amor, solidariedade, empatia”. “A gente sabe que são temas hoje colocados em pauta, tanto pelas pessoas que vivem do ódio, quanto por aquelas que lutam pelo amor. O disco, no seu conjunto, tem uma mensagem muito importante para os dias de hoje”, acredita. Outra canção que se destaca no repertório, especialmente para os mineiros, é a “Cinzel de Ouro”.

Ali, com referências diretas às cidades históricas de Diamantina, Ouro Preto e São João Del-Rei, ele reúne pontas-soltas pelo tempo. “Minha relação com Minas é de muito amor e proximidade, porque minha família toda é mineira, meus irmãos, meus pais”, conta. Jaime morou em Ouro Fino até os sete anos, donde extraiu toda a cultura familiar. Já “Cinzel de Ouro” nasceu durante uma viagem de Kombi com Nair e outros músicos para divulgar o trabalho. Ao passar por São João Del-Rei, “o encantamento com aquelas obras-primas foi tão grande que fiquei imaginando o escultor trabalhando com o cinzel e fiz uma relação com o período da exploração do minério em Minas”, elucida o músico.

Influências. Minas também foi a responsável por outro “choque” de Jaime, quando ele ouviu Milton Nascimento e Fernando Brant, que se juntaram no rol de influências a Geraldo Vandré, Tom Jobim, Gilberto Gil, Caetano Veloso. Muito garoto, ele descobriu Vinicius de Moraes e Edu Lobo. “Todos da música popular brasileira dessa geração me influenciaram de certa forma”, observa. Na poesia, além de Vinicius, se deleitava com Cecília Meireles, o mineiro Carlos Drummond de Andrade e Pablo Neruda. “Mas, com certeza, considero um dos maiores letristas da música brasileira o Paulo César Pinheiro”, enaltece. “Para um ouvinte contumaz de rádio como eu era, todos me influenciaram”, arremata.

Fotos: Arquivo/Divulgação; e Jurema de Cândia/Divulgação, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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