Ícone do rock, Renato Russo foi gravado de Jorge & Mateus a Cássia Eller

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Tenho experimentado às vezes, ao vivo, a solidão urbana de ver a cidade esparramada e cheia de néon brilhante” Caio Fernando Abreu

Renato Manfredini Júnior, o popular Renato Russo, adotou o nome artístico em homenagem aos filósofos Bertrand Russell e Jean-Jacques Rousseau, o que já demonstrava o seu interesse pelas letras e pelos mistérios da alma humana. Ele nasceu no Rio de Janeiro, no dia 27 de março de 1960, e morreu no dia 11 de outubro de 1996, aos 36 anos, vítima da AIDS. Ainda na adolescência, mudou-se com a família para Brasília, onde despertou o interesse pelo rock e formou as primeiras bandas. No início da década de 1980, Renato funda a Legião Urbana, com Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, que muda o panorama da música brasileira e o estabelece como das principais estrelas do nosso rock.

“A Carta” (balada, 1966) – Raul Sampaio e Benil Santos
Seresteiro dos bons, Raul Sampaio nasceu em Cachoeiro do Itapemirim, no Espírito Santo, e compôs a famosa “Meu Cachoeiro”, regravada por Roberto Carlos, também natural da cidade litorânea que ainda deu ao Brasil o talento do indomável Sérgio Sampaio. De volta a Raul Sampaio, o cantor lançou, em 1962, o samba-canção “Briguei Com Meu Amor”, de Rutinaldo e Airton Amorim. No entanto, sua composição mais conhecida provavelmente é “A Carta”, parceria com Benil Santos – com quem também criou sucessos de Miltinho –, lançada por Erasmo Carlos, e que a regravou em um dueto com Renato Russo.

“Gente Humilde” (canção, 1970) – Garoto, Vinicius de Moraes e Chico Buarque
A gravação de “Gente Humilde” aconteceu informalmente, quase por acaso, como presente a um amigo querido de Garoto, o professor mineiro Valter Souto. Num acetato simples, eternizou-se o momento de inspiração que recaiu divino, com a espontaneidade que acalora os corações de artistas. A cena observada passaria incólume, não tivessem aquelas mãos o poder de restringir às cordas a leveza de um sentimento inalcançado. Afinal o poeta vê a árvore e se encanta por ela, e nos encanta com sua poesia. A mesma árvore que vemos todos os dias. Com o auxílio de Vinicius e Moraes e Chico Buarque, a canção abraçou, em 1970, os versos que Garoto não disse, mas sugeriu com a sua melodia. Renato Russo regravou essa pérola, em 1993, e também fez bonito.

“A Cruz e a Espada” (rock, 1985) – Paulo Ricardo e Luiz Schiavon
Paulo Ricardo nasceu no Rio de Janeiro, no dia 23 de setembro de 1962. Cantor, contrabaixista, compositor e ator, ele cursou Jornalismo na USP, e, em 1982, foi para Londres, onde começou a escrever a coluna “Via Aérea” para a revista Som-Três. Na faculdade, conheceu o tecladista Luiz Schiavon e, ao lado do guitarrista Fernando Deluqui e do baterista Paulo Pagni, eles formaram a banda RPM, abreviação para Revoluções Por Minuto, que se transformou em um fenômeno pop no Brasil. O primeiro disco da trupe, de 1985, vendeu mais de 600 mil cópias. Em 1988, o RPM chegou ao fim, tendo na bagagem uma coleção de sucessos como “Olhar 43”, “Louras Geladas”, “Rádio Pirata”, “Alvorada Voraz”, dentre outros. Em 1996, com a participação especial de Renato Russo, o antigo vocalista do RPM regravou o hit “A Cruz a e Espada”.

“Será” (rock, 1985) – Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá
Um dos hinos da geração roqueira dos anos 80, “Será” foi lançada pelo grupo Legião Urbana em 1985, no primeiro disco da trupe e, como tudo que dizia respeito ao líder e vocalista Renato Russo, acabou envolvida em uma aura messiânica. Os versos questionadores: “Será só imaginação?/ Será que nada vai acontecer?/ Será que é tudo isso em vão?/ Será que vamos conseguir vencer?”, ajudaram a definir o sentimento de toda uma juventude. Percebendo esse poder de identificação, a cantora Simone se aventurou a regravar a canção em 1991, no álbum “Raio de Luz”. Além dela, o grupo de pagode Raça Negra, e a dupla sertaneja Bruno & Marrone, também realizaram suas versões.

“Hoje a Noite Não Tem Luar” (balada, 1986) – versão de Carlos Colla
Carlos Colla nasceu em Niterói, no dia 5 de agosto de 1944, e ficou conhecido como um dos compositores preferidos do Rei Roberto Carlos. Em 1986, o grupo porto-riquenho Menudo era uma febre mundial e contava, entre seus integrantes, com o jovem Rick Martin. Um dos grandes sucessos do grupo foi “Hoje a Noite Não Tem Luar”, que recebeu uma versão de Carlos Colla e foi regravada pela Legião Urbana em 1992, para o Acústico MTV, com o grave poderoso de Renato Russo. E também foi regravada pela cantora Maria Gadú.

“Eduardo e Mônica” (balada, 1986) – Renato Russo
Clássico absoluto do rock nacional, responsável por catapultar a Legião Urbana ao topo das paradas de sucesso, “Eduardo e Mônica”, lançada em 1986, traz todos os elementos da marcada poética de Renato Russo, calcada em uma narrativa fílmica que centra as discussões em personagens e dispensa a necessidade de um refrão. A determinada altura da balada, após apresentar as contradições aparentes entre Eduardo e Mônica, Renato conta que eles “fizeram natação, fotografia, teatro e artesanato”. E a música virou até um filme.

“Tempo Perdido” (rock, 1986) – Renato Russo
A ascensão do rock durante os anos 1980 no Brasil teve, como um de seus ícones, Renato Russo, líder da Legião Urbana que, com ares messiânicos, guiava plateias de adolescentes que passaram a lotar os estádios para ouvir as suas profecias. Uma das mais emblemáticas, essa canção data do segundo disco da trupe, editado em 1986, intitulado “Dois”. “Tempo Perdido” alia a carga filosófica e existencial a considerações mais casuais que cativaram o grande público. Em 2020, a música ganhou uma versão com Pitty, Leo Jaime e Frejat.

“Quase Sem Querer” (balada, 1986) – Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Renato Rocha
De uma maneira ou de outra, a melancolia sempre permeou a obra de Renato Russo, como comprova a faixa “Soldados”, do álbum inaugural da Legião Urbana. No entanto, essa visão pessimista e desconsolada da vida se intensificou no decorrer da trajetória do músico, que só assumiu a homossexualidade em 1989 e, com dificuldades de lidar com uma solidão crescente, se afundou cada vez mais no vício em álcool e drogas, afastando companheiros leais e se envolvendo em brigas com os parceiros de Legião Urbana. Já em 1986, a trupe lançou “Quase Sem Querer”, um grande sucesso, que mereceu regravações de Jorge & Mateus, Zélia Duncan, Roberta Campos.

“Fátima” (rock, 1986) – Renato Russo e Flávio Lemos
Renato Russo já era conhecido na cena punk de Brasília desde os tempos do Aborto Elétrico, o primeiro grupo do qual fez parte. Foi nesse período que o futuro vocalista da Legião Urbana compôs, ao lado de Flávio Lemos, a música “Fátima”, um desbravado manifesto contra a intolerância religiosa e a vontade de tolher as liberdades humanas com repressões dogmáticas. Lemos faria parte do Capital Inicial, outra banda surgida na cidade planejada por Juscelino Kubitschek (1902-1976) e concebida pelo arquiteto Oscar Niemeyer (1907-2012). A aparição de Nossa Senhora de Fátima em Portugal diante de três crianças no ano de 1917 é citada na letra e justifica o título da canção roqueira.

“Que País É Este?” (rock, 1987) – Renato Russo
O ano de 1987 foi profícuo em canções com referência à política brasileira. Nenhuma delas elogiosa. Um dos que estendeu a bandeira com maior propriedade e relevância foi o compositor e vocalista da Legião Urbana, Renato Russo. O protesto tornou-se tão simbólico que é hoje praticamente um ditado popular: “Que País É Este?”. A música aborda, de forma direta, episódios de corrupção e violência na política brasileira, e ainda chama a responsabilidade a todos, antes de chegar ao início do processo que teria se dado logo na “apropriação” do país pelos portugueses, quando o autor clama aos que aqui estiveram primeiro. “Quando vendermos todas as almas/Dos nossos índios num leilão”. A música foi regravada por Capital Inicial e Paralamas do Sucesso.

“Química” (rock, 1987) – Renato Russo
“Um professor que quer aprender”, escreve Brecht na peça “A Vida de Galileu”, de 1943. Já o diretor-teatral Antônio Abujamra repetia que “não existe ensino, existe aprendizado”. Frequentemente desvalorizada, a profissão de professor é essencial em qualquer sociedade, pois forma todas as outras. No entanto, nem sempre ele é bem entendido ou valorizado. No LP da Legião Urbana de 1987, Renato Russo compôs um rock de rebeldia juvenil, “Química”, em que destilava sua revolta contra matérias do currículo escolar e colocava em cheque o modo de ensino ainda em vigência no Brasil. Pois o alvo preferencial era o vestibular.

“Mais Uma Vez” (balada, 1987) – Renato Russo e Flávio Venturini
Um encontro casual entre Renato Russo e Flávio Venturini nos estúdios da EMI-Odeon, em 1986, gerou uma das mais bonitas canções brasileiras sobre esperança. Os respectivos líderes da Legião Urbana e do grupo 14 Bis estavam ocupados com as gravações dos álbuns “Dois” e “Sete”, quando se encontraram nos corredores. Venturini improvisava uma melodia e Renato propôs escrever a letra, com a ideia de uma composição que falasse que o sol voltaria a brilhar após a tempestade. A espera valeu a pena. O resultado, três meses depois, foi a gravação em dueto da balada “Mais Uma Vez”, já em 1987.

“Pais e Filhos” (balada, 1989) – Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá
Quarto álbum de estúdio da Legião Urbana, “As Quatro Estações” foi gravado em um clima de turbulência. Após faltar a muitos ensaios e lutando contra a dependência química, o baixista Renato Rocha foi desligado do grupo. “Pais e Filhos”, uma das canções mais emblemáticas do repertório, começa com uma notícia que chocou Renato Russo: o suicídio de uma garota. “Ela se jogou da janela do quinto andar/ Nada é fácil de entender”. Mas a mensagem que se impõe é outra: “É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã…”.

“Meninos e Meninas” (rock, 1989) – Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá
Bissexual assumido, Cazuza tratava da homossexualidade de maneira totalmente escrachada e aberta, com declarações bombásticas na imprensa e um comportamento errático nas noitadas cariocas. Outro mártir do rock nacional a se assumir gay, Renato Russo cantava seu desejo pelo sexo masculino de forma confessional e lírica. A canção “Meninos e Meninas”, de 1989, foi uma das mais representativas em termos de sucesso nas rádios a atingir o público jovem da época, que abria cada vez mais a cabeça para o tema. E a música se tornou uma das mais conhecidas do repertório da Legião.

“Quando Eu Estiver Cantando” (balada, 1989) – Cazuza e João Rebouças
Nascido no Rio de Janeiro, Renato Russo morreu prematuramente, em 11 de outubro de 1996, aos 36 anos, vítima de complicações decorrentes da Aids. Quando compôs “Vento no Litoral” (com o auxílio de Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá), o músico já se sabia portador do vírus HIV, fato que ele nunca externou publicamente, ao contrário de Cazuza que, meses após morrer, em 1990, foi homenageado pelo líder da Legião Urbana em um show, quando ele interpretou, com sua voz poderosa e grave, “Quando Eu Estiver Cantando”, última canção do derradeiro disco do autor de “Exagerado”. Parceria com João Rebouças lançada no álbum “Burguesia”, de 1989, a música é uma das prediletas de Lucinha Araújo, mãe de Cazuza, e teria sido composta para Maria Bethânia, que regravou “Todo Amor Que Houver Nesta Vida”, com rara beleza.

“Vento no Litoral” (balada, 1991) – Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá
Não são apenas os versos “Dos nossos planos é que tenho mais saudade/ Quando olhávamos juntos na mesma direção/ Aonde está você agora/ Além de aqui dentro de mim?”, mas a melodia melancólica e a interpretação de Renato Russo que, combinadas, afundam o ouvinte numa depressão aterradora. “Vento no Litoral” pertence à fase final da carreira de Renato, que contabiliza cerca de quinze títulos, entre trabalhos com banda, solos e coletâneas. Lançada em 1991, ela integra o álbum “V” da Legião, assim batizado por ser o quinto registro de estúdio do grupo. Posteriormente, a música ganharia uma versão pungente de Cássia Eller, para quem Renato criou a bela “1º de Julho”.

“1º de Julho” (MPB, 1994) – Renato Russo
Em 1994, Renato Russo compôs, especialmente para Cássia Eller, a música “1º de Julho”, em homenagem ao filho da cantora que acabara de nascer, Francisco, conhecido e chamado por ela apenas de Chicão. Além de lançar uma luz poética e sensível sobre os mistérios da maternidade, Renato também acende sua lâmpada para a capacidade transformadora da mulher, os ciclos que a tornam não linear, interessante e liberta das convenções de um mundo fadado ao preconceito. Cássia Eller canta com toda a propriedade: “Sou fera, sou bicho, sou anjo e sou mulher/ Sou minha mãe, minha filha, minha irmã, minha menina/ Mas sou minha, só minha/ E não de quem quiser…”. Sucesso!

“Strani Amore” (canção italiana, 1994) – Angelo Valsiglio e Roberto Buti
É curioso notar que o cantor Jerry Adriani tenha influenciado artistas tão diferentes como Renato Russo e Raul Seixas. Embora ambos sejam associados ao rock, ele exerceu, sobre cada um, impressões díspares. O que vem a revelar uma característica marcante da trajetória de Jerry. É difícil defini-lo não pela amplitude de seu estilo, mas, justamente, porque este foi moldado a partir de um repertório que procurou abarcar várias vertentes. Associado à Jovem Guarda, Jerry é, sobretudo, um cantor romântico. Nesse sentido, tanto a canção italiana que seduziu o líder da Legião Urbana, quanto a rebeldia presente na gênese de Raul Seixas, convergem para a mesma direção: a passionalidade. É certo que Renato a compreendia de maneira sincera, emocionada, que foi como regravou “Strani Amore”, sucesso de Laura Pausini, em 1995. E a música havia sido lançada no ano anterior pela intérprete italiana.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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