*por Raphael Vidigal Aroeira
“viver agora o que seria se já não era” Marcelino Freire
Não é de uma história edificante que Marcelino Freire trata, ao contrário. O primeiro artifício poético empregado em “Socorrinho” é a condensação, como se tudo coubesse num único espasmo, ou, no caso, parágrafo. O conto integra a coletânea Angu de Sangue, publicada pela primeira vez no ano 2000, e que marca a estreia do escritor pernambucano nesse gênero literário.
No conto em questão, que se inicia com o discurso direto da protagonista, temos uma mistura propositadamente lírica entre impressões e eventos, acontecimentos e sensações, que intenciona carregar o leitor para o âmago da angústia descrita. Afinal, a despeito de sua linguagem lírica, o fato a que somos apresentados e conduzidos pertence ao campo do horrífico.
“Moço, não, sua mão, suando, grito no semáforo, em contramão, suada, pelos carros, sobre os carros, carros, moço, não”, são as primeiras palavras do conto, que nos introduzem a um cenário confuso, e, a princípio, abstrato. No entanto, logo de pronto não foge à percepção que existe a tentativa de uma resistência pelo uso reiterado da palavra “não” que acompanha essa espécie de interjeição referida por “moço”, e que, adiante, se revelará como o carrasco da vítima. Ao mesmo tempo, o suor dessa mão de carrasco por dentro, contra, sobre os carros embaça a paisagem, que se completa com a expressão do desespero definida pelo “grito no semáforo”, e que, com tal imagem, concede coloração à trama. O acontecimento pulsa diante de nossos olhos pela elaboração estética.
O nome da protagonista surge algumas linhas depois. Ela parece antever a mãe “e a cidade, nervosa, avançando o meio-dia, dia de calor, calor enorme, ninguém que avista, Socorrinho”. Essa repetição de palavras como “calor” e “dia”, ligadas a uma perspectiva solar e excessiva, se contrapõe à situação obscura vivida por Socorrinho, sozinha e invisível, abafada por “algumas buzinas, céu de gasolina, ozônio, cheiro de álcool”.
Evidentemente, a escolha do nome da protagonista não é casual. Temos alguém que pede socorro, em diminuto, tanto por sua própria condição quanto pela realidade hostil que a enclausura, cerca e captura. De maneira sensível, sem descambar para a pieguice ou a demagogia, o autor dá voz a Socorrinho para que ela descreva o horror que vivencia: “parecido sonho ruim, dor de dente, comprimido, pernilongo, extração de ouvido, o ônibus elétrico, esquinas em choques, paralelepípedos, viagens que não conhece”, numa nova junção do caos exterior com o conflito interno que denuncia a estratégia narrativa do artista.
A revelação daquilo que já prevemos, mas preferimos resistir, é feita a seguir: “hoje desaparecida menina de seis anos, ou sete, trajada de camiseta, sapatinhos ou chinelos, fita crespa no cabelo, azul forte ou infinito”. Esse narrador que toma a palavra também é vítima da história, dos acontecimentos e da confusão que o tempo imprime à memória, o que se explicita na indefinição das circunstâncias, e, sobretudo, dos traços da menina, cuja idade, vestes e até o destino trágico tornaram-se impalpáveis, inconcebíveis, como o “azul forte ou infinito” da fita crespa que lhe enfeitava o cabelo.
As palavras da menina – possivelmente suas derradeiras – ganham a boca do narrador, que repete e dá consistência ao que ela teria dito ao colocar a sua história no papel: “moço, não, aquele grito franzino, miúdo”. Há, então, as consequências objetivas, como “a polícia que alegra estupro, magia negra, sequestro”, em que, numa pincelada breve, o preconceito de ordem religiosa da corporação fica à mostra, a mãe que “acende velas, incensos, chorando a Deus justiça divina, justiça duvidosa”, sugere o narrador num perspicaz jogo com as palavras, retornando ao enredo poético: “viver agora o que seria se já não era”.
Os dias de agonia arrastam-se, pregam-se na rotina dessa família destroçada, impedindo que ela siga em frente, cuja fatal alternativa é clamar aos céus, com preces para “Maria do Socorro Alves da Costa, mulatinha, sumiu misteriosa”, como a reputam os artigos de jornais desprovidos de sensibilidade, interessados tão somente no que podem lucrar com a desgraça alheia, comprazendo-se em lamber as feridas de uma violência estandardizada.
As tentativas de recuperar Socorrinho são inócuas: “boneca, foto de batizado, festinha de bairro”, nada reverte o ocorrido, no “peito, o quarto morto”. O pai enlouquece, a mãe resiste à base de comprimidos. Socorrinho transforma-se num “amor quando vai embora, quando vira fé, chamado, súplica, saudade”. Circularmente, e recorrendo à condensação, o autor opõe, no verso final, a realidade ao sonho, o desejo ao acontecido, a impressão à sensação, tecendo o horror com as linhas do lirismo, e dividindo a responsabilidade pelo ato monstruoso com essa densa e agora inerte camada social que erige “aquele mundo estranho” no qual o que resta para Socorrinho é um “desmaio de anjo”.
Referência
FREIRE, Marcelino. Socorrinho. In: FREIRE, Marcelino. Angu de sangue. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. p. 47-49.