Ferreira Gullar compôs músicas gravadas de Maria Bethânia a Fagner

*por Raphael Vidigal Aroeira

“a poesia nasce de repente e não faz barulho. Pode acontecer no meio da rua e ninguém vai perceber.” Ferreira Gullar

José Ribamar Ferreira adotou o pseudônimo Ferreira Gullar logo que lançou o primeiro livro, em 1949. Logo em seguida, ficou conhecido em todo o Brasil com “A Luta Corporal”, onde propunha “explodir com a linguagem”. Nascido em São Luís do Maranhão, no dia 10 de setembro de 1930, ele morreu no Rio de Janeiro, no dia 4 de dezembro de 2016, aos 86 anos. Poeta, escritor, crítico de arte e tradutor, Ferreira Gullar também se envolveu com a música.

Em 1967, compôs, com Caetano Veloso, o bolero “Onde Andarás”, a pedido de Maria Bethânia. Sua próxima incursão no gênero seria em 1976, quando colocou letra na melodia “O Trenzinho do Caipira”, de Heitor Villa-Lobos. Mas o maior sucesso popular veio em 1991, quando ele criou a versão “Borbulhas de Amor” a partir do bolero de Juan Luis Guerra, a pedido de Fagner, que a lançou com enorme sucesso. “Borbulhas de Amor” ainda rendeu uma série de regravações.

“Onde Andarás” (bolero, 1968) – Caetano Veloso e Ferreira Gullar
Maria Bethânia queria uma música de fossa, e pediu a Ferreira Gullar que escrevesse a letra. A melodia ficou a cargo de Caetano Veloso, que não se conteve com isso. Acabou lançando a música em 1968, em seu primeiro disco-solo, um ano antes de a irmã regrava-la. “Onde Andarás” se vale do mais sofrido gênero musical para embalar seus versos. É um bolero que, ainda assim, troca o derramamento pela suavidade, graças ao talento de Ferreira Gullar e Caetano. “Onde andarás nesta tarde vazia/ Tão clara e sem fim/ Enquanto o mar bate azul em Ipanema/ Em que bar, em que cinema te esqueces de mim”, diz a letra também regravada por Adriana Calcanhotto e Marisa Monte. Foi a primeira canção de Ferreira Gullar a alcançar algum êxito.

“O Trenzinho do Caipira” (tocata, 1978) – Villa Lobos e Ferreira Gullar
Foi Thereza, esposa de Ferreira Gullar, quem o apresentou à música de Heitor Villa-Lobos. Ao ouvir o disco com as “Bachianas”, o fascínio foi imediato. “Entrei em transe. É que, quando menino, meu pai, que fazia comércio ambulante, me levava nas viagens de trem entre São Luís e Teresina. O trem saía de madrugada e, ao amanhecer, cortava o Campo dos Perizes, um vasto pantanal, povoado de garças, marrecos, nhambus, pássaros de todo tamanho e cor. Eu ficava deslumbrado, a cada viagem. Deslumbramento esse que voltou quando ouvi a ‘Tocata’ da ‘Bachiana nº 2’”, relata Gullar, que pretendeu colocar letra em “O Trenzinho do Caipira”, sem sucesso. Anos depois, em 20 minutos, conseguiu escrever a letra lançada por Edu Lobo, já no ano de 1978.

“Bela, Bela” (MPB, 1979) – Milton Nascimento e Ferreira Gullar
Ferreira Gullar iniciou sua parceria com Milton Nascimento em 1979, quando a partir de versos do célebre “Poema Sujo” eles deram forma a “Bela, Bela”, música que entrou para a trilha de peça teatral protagonizada por Esther Góes e Rubens Corrêa. Milton só registrou a canção em 1981, no disco “Caçador de Mim”. “Bela, bela/ Mais que bela/ Mas como era o nome dela?/ Não era Helena, nem Vera/ Nem Nara, nem Gabriela/ Nem Tereza, nem Maria/ Seu nome, seu nome era”, cantava ele no encerramento do álbum. Antes, em 1978, Paulo Diniz compôs outra melodia para os mesmos versos, e a gravou no disco “É Marca Ferrada”. A versão de Milton ganhou outro registro, em 1988, com a participação da cantora Alaíde Costa e foi gravada por Wagner Tiso, em 1979.

“Traduzir-se” (MPB, 1981) – Fagner e Ferreira Gullar
A parceria entre Fagner e Ferreira Gullar partiu do cearense que, em 1981, musicou o poema “Traduzir-se”, do maranhense, com que batizou o seu disco daquele ano. A música ganhou um dueto, também em 1981, entre Nara Leão e Fagner, no disco “Romance Popular”, da cantora, em que ela dava voz a compositores nordestinos. Em 1998, outro dueto, desta vez entre Fagner e Chico Buarque. “Traduzir-se” seria regravada diversas vezes, como por Adriana Calcanhotto, no registro de show ao vivo intitulado “Público”, de 2001. “Uma parte de mim/ É todo mundo/ Outra parte é ninguém/ Fundo sem fundo/ Uma parte de mim/ É multidão/ Outra parte estranheza/ E solidão”, dizem os versos do poema, publicado originalmente em “Na Vertigem do Dia”, em 1980.

“Contigo” (MPB, 1983) – Fagner e Ferreira Gullar
O encontro musical entre Fagner e Ferreira Gullar deu tão certo que, em 1983, eles voltaram a criar juntos. Naquele ano, Fagner lançou o LP “Palavra de Amor” e gravou, com Chico Buarque, a música “Contigo”. Outra participação do disco era do grupo Roupa Nova, na faixa-título. “Canta comigo este canto/ Feito de calma e espanto/ Canto comigo e deixa/ Que eu te arraste/ Pra onde a beleza é tanta/ Que não basta”, dizem os versos de “Contigo”. Naquela época, Fagner e Chico Buarque eram parceiros de “pelada”, mas a amizade começou a se distender quando as diferenças políticas ficaram mais aparentes. A partir da deposição da ex-presidente Dilma Rousseff, em 2016, os dois se afastaram. Em 2018, Chico defendeu a libertação de Lula, e Fagner apoiou Jair Bolsonaro.

“Me Leve” (MPB, 1984) – Fagner e Ferreira Gullar
O canto rascante de Fagner era o ideal para uma canção cujo subtítulo carregava a sentença “Cantiga Para Não Morrer”. Intitulada “Me Leve”, a parceria com o poeta Ferreira Gullar foi lançada em 1984, no disco “A Mesma Pessoa”, e logo estourou nas paradas de sucesso. “Quando você for-se embora/ Moça branca como a neve/ Me leve, me leve/ Se acaso você não possa/ Me carregar pela mão/ Menina branca de neve/ Me leve no coração”, afirmam os versos doloridos da canção. “Me Leve” recebeu uma versão ao vivo de Fagner, em 2002. Dois anos depois, a dupla ainda comporia “Rainha da Vida”, que não obteve o mesmo sucesso, mas que ganhou uma versão em espanhol, feita pelo argentino Julio Lacarra e gravada por Fagner no ano 1991.

“A Aurora” (MPB, 1986) – Federico García Lorca, Fagner e Ferreira Gullar
O relacionamento de Fagner com a poesia começou logo no disco de estreia, e de maneira controversa. Em 1973, ao estrear no mercado com o LP “Manera Fru Fru, Manera”, ele apresentou “Canteiros”, em que musicava versos de Cecília Meireles sem pedir autorização à família. O fato acabou num imbróglio judicial que obrigou a gravadora a pagar uma quantia vultosa aos herdeiros de Cecília Meireles. Fagner repetiu o comportamento em 1978, quando musicou versos de “Motivo”, novamente sem autorização da família de Cecília. Desta vez, a gravadora preferiu retirar a faixa da reedição. Em 1986, ele participou do álbum “Poetas em Nova York” e, autorizado, compôs, com Ferreira Gullar, a música “A Aurora”, de Federico García Lorca, que cantou com Chico Buarque.

“Promessa de Vida” (bolero, 1986) – Murilo Alvarenga e Ferreira Gullar
Filho do mineiro de Itaúna que formou, na década de 1930, a dupla caipira Alvarenga & Ranchinho, o músico Murilo Alvarenga se encontrou com o poeta Ferreira Gullar em 1986 para compor o bolero “Promessa de Vida”. Era o início da incursão na música verdadeira popular de Ferreira Gullar, que desaguaria no megassucesso “Borbulhas de Amor”, em 1991. O ensaio começou com o cantor potiguar Gilliard, que, em 1986, lançou “Promessa de Vida”. Na década de 1980, Gilliard foi um estouro e ocupou as prateleiras de sucesso das maiores gravadoras do Brasil, por mais que a crítica torcesse o nariz para o estilo derramado e romântico de suas canções. Ao lado de nomes como Odair José e Martinha, ele faturou Discos de Ouro e bateu recordes de vendagens.

“Borbulhas de Amor” (bolero, 1991) – versão de Ferreira Gullar
Há, na internet, uma entrevista impagável de Ferreira Gullar à repórter Dadá Coelho, em que ele explica, sem meias-palavras, do que se trata o “peixe” da canção “Borbulhas de Amor”, adaptação para a original do dominicano Juan Luis Guerra. A tradução do bolero foi feito por Ferreira Gullar a pedido de Fagner, que então mergulhava em um repertório cada vez mais popular. Ferreira Gullar também conta que Fagner, “doido como sempre”, sequer pediu autorização ao titular da canção. Desta vez, no entanto, não houve imbróglios com a Justiça. O sucesso de “Borbulhas de Amor” a tornou uma canção atemporal, que recebeu versões de Gusttavo Lima, Leonardo e Eduardo Costa. A música também ficou conhecida pelo primeiro verso: “Tenho Um Coração…”.

“Solução de Vida” (samba, 1996) – Paulinho da Viola e Ferreira Gullar
Paulinho da Viola encomendou uma letra para Ferreira Gullar, que o presenteou com “Solução de Vida”, cujo expressivo subtítulo é “Molejo Dialético”. A música foi lançada por Paulinho, autor da melodia, em 1996, no álbum “BEBADOSAMBA”. Posteriormente, recebeu uma versão ao vivo em “BEBADACHAMA”, de 1997. “Acreditei na paixão/ E a paixão me mostrou/ Que eu não tinha razão/ Acreditei na razão/ E a razão se mostrou/ Uma grande ilusão/ Acreditei no destino/ E deixei-me levar/ E no fim/ Tudo é sonho perdido/ Só desatino, dores demais”, dizem os versos do samba. Na capa do álbum, os traços inconfundíveis de um poeta da arte visual: Elifas Andreato, que acabou premiado por mais esse desenho histórico, assim como Paulinho pelo álbum.

“Poema Obsceno” (samba, 2005) – Moacyr Luz e Ferreira Gullar
Nenhuma canção combinava tanto com a capa e o título do disco “A Sedução Carioca do Poeta Brasileiro” como “Poema Obsceno”, parceria de Ferreira Gullar e Moacyr Luz. A capa do disco trazia os traços do desenhista Lan, com uma mulher deitada na areia, sob o sol escaldante, exibindo suas formas sem vergonha de ser feliz. O álbum lançado era de Moacyr Luz e do grupo Água de Moringa, em 2005. No repertório, vários poetas desfilavam, como Vinicius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade, Aldir Blanc, Manuel Bandeira, Elisa Lucinda, Murilo Mendes, Geraldo Carneiro, entre outros. As melodias ficavam a cargo de Moacyr. A poesia de Ferreira Gullar sustenta: “Façam a festa, cantem, dancem/ Que eu faço o poema duro/ o poema-murro, sujo/ como a miséria…”.

“Definição da Moça” (MPB, 2009) – Adriana Calcanhotto e Ferreira Gullar
Adriana Calcanhotto e Ferreira Gullar iniciaram a parceria com as canções infantis para o espetáculo “Adriana Partimpim: o Show”, quando compuseram “Dono do Pedaço”, “Gato Pensa?”, “O Gato e a Pulga” e “O Ron-Ron do Gatinho”. Na continuação do projeto, Adriana deu voz a “O Trenzinho do Caipira”, histórica parceria de Gullar com Villa-Lobos. Já em 2008, no disco “Maré”, ela concedeu sua versão para “Onde Andarás”, o bolero lançado por Caetano Veloso em 1968. Até que, em 2009, eles compuseram “Definição da Moça”, de conotação erótica, lançada pela cantora Simone no álbum “Na Veia”. Simone voltou à canção no disco “Em Boa Companhia”, que também rendeu um registro audiovisual, em 2010. “Como defini-la/ Quando está desnuda…”.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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