*por Raphael Vidigal Aroeira
“Meu amor
Deixa eu chorar até cansar
Me leve pra qualquer lugar
Aonde Deus possa me ouvir” Vander Lee
Fagner admite que não é muito de olhar e-mail, mas há cerca de quatro meses, ao conferir a caixa de entrada virtual, se deparou com uma mensagem de Vander Lee, que morreu em 2016, aos 50 anos, após sofrer um infarto. O conteúdo da mensagem era triste, e Fagner ficou “profundamente chocado”. “Esse show é uma maneira que eu vou ter para retribuir e exaltar esse grande artista que eu conheci, e que se foi tão cedo, mas deixou uma obra muito consistente”, afirma.
O cantor se refere ao espetáculo “Aonde Deus Possa Me Ouvir”, que ele apresenta nesta sexta (18) em Belo Horizonte, cujo título retoma uma das mais conhecidas canções de Vander Lee, gravada por nomes como Gal Costa, Elba Ramalho, Simone, Mart’nália, Leila Pinheiro, padre Fábio de Melo, entre outros. Fagner chegou a interpreta-la em um show em sua cidade natal, Orós, no Ceará, mas não a gravou.
“É uma dívida que eu tenho com o Vander Lee pelo fato de ter tido um contato com ele, ter curtido muito essa música, ter cantado em alguns shows, prometi gravar e, de alguma maneira, não aconteceu”, relata. Acompanhado pelo violonista Cainã Cavalcante, o músico cearense promete um espetáculo mais intimista, em formato acústico, “onde a plateia participa e todo mundo canta, com um repertório praticamente aberto”.
Maluco Beleza. A experiência bem-sucedida começou em Natal. “Nós levamos um roteiro e ele foi totalmente modificado, com as pessoas pedindo músicas que há muitos anos eu não cantava”, destaca Fagner. A interação serviu de estímulo para a memória recobrar canções que estavam esquecidas há mais de uma década, e tomar pé desse repertório. Ele cita, como exemplo, “Amor Escondido”, de 1989.
Parceria com Abel Silva, a música entrou para a trilha sonora da novela “Tieta”, da Rede Globo, protagonizada por Betty Faria, que exibia a modelo Isadora Ribeiro completamente nua na capa, encostada num coqueiro. “Quando se tem o amor escondido/ Querendo aflorar/ É se guardar um rio perdido/ Que não encontra o mar”, dizem os primeiros versos cheios de romance e sensualidade.
Surgido na década de 70, a partir do LP “Manera Fru Fru, Manera: O Último Pau de Arara”, Fagner quase compôs com Raul Seixas, o que acabou não acontecendo. “Conheci Raul em mil novecentos e setenta e poucos, na porta da (gravadora) Som Livre, pra escrever uma música, às dez horas da manhã. Depois disso, eu nunca mais o encontrei hora nenhuma”, brinca.
Clube da Esquina. No embalo do sucesso do primeiro disco, que apresentou ao Brasil canções como “Canteiros” e “Mucuripe” (impulsionada por Elis Regina, em 1972), Fagner participou de um projeto de curtas-metragens do cineasta Sérgio Rezende. “Na época, fizeram uma lei exigindo que todo filme estrangeiro exibido, precisava de um curta”, relembra. Fagner morava no bairro carioca de Santa Teresa, onde acabou filmado “descendo de carro, jogando bola”. O curta atingiu um milhão de espectadores.
“Foi incrível, eu estava surgindo na época, e muita gente entrava nos cinemas na hora do almoço, aí depois as salas ficavam vazias, porque as pessoas só queriam assistir ao curta”, orgulha-se. Ele confessa que, certa vez, foi assistir a si próprio escondido, e ficou “com uma vergonha danada”. Foi também em Santa Teresa, no Rio, que travou amizade com os ilustres mineiros do Clube da Esquina, cujo disco inaugural acaba de completar meio século de história.
Ele revela que Maria Fragoso Borges, mãe dos irmãos Márcio e Lô Borges, o tratava como um filho. “Era um carinho enorme, a gente era tudo a mesma tribo. Nós temos uma amizade muito antiga”, conta Fagner, que faz questão de citar nominalmente Beto Guedes, Paulinho Pedra Azul, Sirlan, e seu maestro e arranjador Túlio Mourão, todos das Minas Gerais. Uma lembrança, porém, o comove especialmente.
Futuro. “Entre tantos e tantos artistas e compositores e cantores, posso dizer que o primeiro impacto que eu tive foi Milton Nascimento”, sublinha Fagner. No disco “Amigos & Canções”, de 1998, eles realizaram um dueto na música “Morro Velho”, lançada por Milton em 1967. “Era a única música que não fazia parte do meu repertório. Eu convidei o Milton, ele foi para o estúdio, chegou lá falei que queria gravar ‘Morro Velho’ e ele se emocionou. É uma das lindas gravações que eu tenho nesse disco, foi um momento incrível”, detalha Fagner.
“É um artista maior, não existe adjetivo pra falar do Milton”, completa. Fagner também prepara uma homenagem a outro compositor de estirpe, com quem conviveu intimamente, mas não esconde que a relação era atribulada, munido de sua habitual sinceridade. “Estou preparando um disco em homenagem a Belchior, fizemos parte da geração dos anos 70, que chamavam de ‘Pessoal do Ceará’, mas a gente não tinha negócio de turma não, a gente brigava pra caramba. Era tudo menos turma”, diverte-se. A “patota” contava ainda com Amelinha, Ednardo, Fausto Nilo, dentre outros.
Outras novidades de Fagner para breve compreendem discos e parcerias com Moacyr Luz, Renato Teixeira e uma turnê com Elba Ramalho para divulgar o álbum “Festa”, tributo a Luiz Gonzaga lançado em 2021, que deve virar DVD. Já o alentado álbum de inéditas – prometido desde 2015 –, terá produção de Robertinho de Recife e composições que incluem Chico César e Zeca Baleiro. “Estamos voltando com bastante trabalho, isso que é importante. O momento que nós estamos passando é difícil, mas são através dessas histórias que a gente pode recuperar as energias e partir pra frente”, conclama Fagner.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.