“Seu manto azul oculta corujas e morcegos.
Quem dera acreditasse no carinho –
O rosto da imagem suavizada por velas,
Derramando, só em mim, seus olhos meigos.” Sylvia Plath
Além do signo astrológico, Caetano Veloso se inspirou na figura “solar e luminosa” (como já disse em entrevistas) de Dadi Carvalho, à época baixista do grupo Novos Baianos, para compor, em 1977, a música “O Leãozinho” (que no disco “Bicho”, sucede “Tigresa”). Quarenta anos depois, a canção ganhou três regravações quase simultâneas (sem falar no próprio Caetano, que a interpreta em show feito com os três filhos). E isso nada tem a ver com efeméride. A mineira Roberta Campos iniciou os trabalhos com versão divulgada no formato de single.
Já o EP “Anavitória Canta Para Pessoas Pequenas, Pessoas Grandes e Não Pessoas Também” trouxe o registro da dupla de Tocantins. Por último, Ana Vilela (que estourou com o hit “Trem Bala” em 2016) escolheu a obra do baiano de Santo Amaro para ser a única não autoral de seu disco de estreia, lançado no último mês de outubro e que traz como título apenas o nome da cantora de Londrina. “Tenho uma tatuagem no braço com a palavra ‘leãozinho’ porque minha tia Simone cantava ela para mim antes de dormir, quando eu era criança. Sou apaixonada por essa música”, conta Ana.
Fofa. Mas essa não é a única semelhança que as citadas, ao lado de nomes como Mallu Magalhães, Tiago Iorc, Clarice Falcão, Tiê, e outros, apresentam. Apesar das diferenças entre si, algumas características têm associado essa turma a um estilo definido como MPB Fofa: voz suave, violão no colo, letras simples e delicadas, a maioria com narrativas ao gosto folk que trazem certa impressão autobiográfica.
“Gosto de falar sobre o amor. Com tanta dificuldade dos dias, acredito no amor que salva, abraça e traz esperança”, define Roberta, autora de versos que encantaram Nando Reis e levaram o ex-titã a dividir o palco com a conterrânea de Clara Nunes (nascida em Caetanópolis). “Mas talvez você não entenda/Essa coisa de fazer o mundo acreditar/Que meu amor não será passageiro/Te amarei de janeiro a janeiro”, canta Roberta em “De Janeiro a Janeiro”, que virou trilha da novela “Sangue Bom” em 2013.
Apontada como espécie de precursora desse movimento, Mallu Magalhães, a exemplo de Anavitória e Ana Vilela, primeiro chamou a atenção do público com vídeos divulgados na internet. Hoje ela acumula quatro álbuns solo e uma carreira consolidada no mercado fonográfico. Em 2017 lançou “Vem”, com 12 faixas autorais. Entre os músicos convidados, o inspirador de “Leãozinho”, Dadi Carvalho, aparece no baixo.
“Geralmente quando estou muito triste não componho porque evito sentir tristeza e a composição traz a tona os sentimentos”, admite Mallu. Atualmente, a autora de sucessos como “Velha e Louca” e “Tchubaruba” vive em Portugal com o marido, o também músico Marcelo Camelo (ex-Los Hermanos), produtor de seu último disco. “Sim, vejo uma leveza na minha composição, uma ausência de agressividade e vejo que trabalho, geralmente, com um ânimo mais contemplativo, uma intenção de compreender e ver beleza na vida, com alguma melancolia”, afiança. O início de tudo dá outra pista preciosa. “A primeira música que lembro de cantar é ‘Um Girassol da Cor de Seu Cabelo’ (Lô e Márcio Borges) na gravação feita pelo Milton Nascimento. Também cantava muito ‘O Leãozinho’, do Caetano”, entrega.
Estilo. Logo que surgiu, em 2008, Mallu voltou a cantar “O Leãozinho”, dessa vez para uma plateia maior da que a assistia em casa, no programa de auditório apresentado por Luciano Huck na rede Globo. “O pai da Mallu botava ela para dormir com essa música. Ela pertence à memória afetiva de várias gerações. Era música de adulto que criança gostava”, sublinha o crítico e jornalista Marcus Preto, diretor musical de Gal Costa e do mais recente trabalho de Mallu. “Tem a ver com o berço, o acalanto, é uma canção de ninar”, complementa Preto, que aproveita para rememorar uma história curiosa.
“No primeiro disco da Mallu tem uma música chamada ‘Noil’, que é leão em inglês escrito de trás para frente. É como se fosse a versão dela para a música do Caetano”, avalia o entrevistado. “Essas artistas ocuparam um lugar na nossa música popular que estava fazendo falta. Uma safra de ‘cantautoras’ que pega o violão e coloca seus sentimentos para fora, de uma maneira doce e cool”, elogia.
Bossa. Um dos ícones da bossa nova, o violonista Roberto Menescal, autor das melodias de “O Barquinho” e “Bye, Bye, Brasil”, enxerga semelhanças entre o gênero capitaneado por João Gilberto e Tom Jobim na década de 1960 e atuais representantes da música pop nacional. “Gosto da Mallu Magalhães, Tiê, Tiago Iorc, eles fazem uma música leve com qualidade. Foi a bossa nova que inventou essa leveza. A gente era vidrado no samba-canção, mas as letras eram muito pesadas”, afirma.
Preto aproveita a ocasião para defender o minimalismo das interpretações. “Gritar não é sinônimo de atitude. Está cheio de gente aos berros no Facebook que não diz nada. O fato das músicas desses artistas serem suaves não significa que elas sejam vazias”, defende. “Nara Leão foi uma das cantoras mais inteligentes desse país e cantava com doçura. A fofura é como a inteligência, o humor, a sensualidade, são todas formas de sedução. Nenhuma delas deve ser desprezada”, assegura, antes de voltar a outro aspecto.
“É natural que a gente tenha essa escola de canto mais suave, interiorizado. O Brasil é o país que melhor desenvolveu esse estilo na música mundial”, aponta Preto. Apesar disso, o crítico faz questão de ressaltar as peculiaridades de cada intérprete. “Anavitória tem uma pegada rural; o Iorc já é mais gringo, com uma influência forte da música norte-americana. A Mallu, apesar de ter começado por esse referencial do exterior, agregou vários elementos da música brasileira, e traz um discurso emocional, espontâneo. Clarice Falcão vejo como totalmente diferente, ela é uma roteirista, faz um trabalho mais racional, enxerga as coisas com ironia e distância”, compara.
Influências. Nessa estrada em que se entrecruzam bossa nova e a MPB Fofa, Roberta Campos aponta outro caminho, percorrido por compositores mineiros que tomaram a cena a partir da década de 1970. “Ouvi muito Milton Nascimento, Lô Borges, Beto Guedes, 14 Bis, Beatles, Elis Regina, Bob Dylan. Me identifico muito com o Clube da Esquina”, observa.
Noutra ponta, Ana Vilela espelha-se numa geração que lhe está bem próxima. “Me inspiro na galera da nova MPB: Maria Gadú, Tiago Iorc, Anavitória, Mallu Magalhães, Clarice Falcão”, cita. Tanto é verdade que Clarice, Mallu e Marcelo Camelo são citados nominalmente na música “Entrelinhas”, lançada por Ana no novo disco. “Já era fã deles todos desde sempre. São pessoas que escrevem letras bonitas, mas muito simples, que a gente entende, porque falam daquilo que estamos sentindo”, atesta.
Já a enaltecida Mallu prefere não focar sua resposta em nomes ou denominações. “Sempre tive a arte como refúgio e companheira. Quero ser útil ao próximo dessa maneira. Procuro dividir o que tenho de mais genuíno e natural, na intenção de oferecer conforto e identificação para as pessoas que buscam esperança para a vida na arte”, garante. Pois como ela canta em “Velha e Louca”: “Nem vem tirar meu riso frouxo com algum conselho/Que hoje eu passei batom vermelho/Eu tenho tido a alegria como dom/Em cada canto eu vejo o lado bom”.
Fofas, mas nem tanto. “Na minha vida já existiram/Cinquenta opções de amor/Quarenta e nove desistiram/E você foi o que sobrou”. A ironia explícita dos versos, escritos por Clarice Falcão, encontraram um correspondente no clipe da música. As cenas de nudez, “explícita”, levaram à retirada do vídeo de “Eu Escolhi Você” do YouTube. Mas a clareza para por aí.
O jeito delicado e suave de interpretar, geralmente acompanhada por seu violão, antagoniza com o conteúdo das canções da artista pernambucana. Por essas e outras a atriz, que só não é modelo e dançarina, mas canta, interpreta e roteiriza, é “fofa”, mas nem tanto. “Gosto muito de falar sobre coisas banais ou clichês de uma forma que seja nova, ou que pelo menos eu nunca tenha ouvido. Amor, raiva, ciúme, fossa, são temas que já foram abordados, mas acredito que tem sempre um jeito diferente de olhar e contar cada história”, assegura Clarice.
Embalada para dormir pela mãe ao som de Chico Buarque, ela se apega a um detalhe que, em suas canções de interpretação diminuta, surgem imensas. “Sempre fui fã das letras de música. Prefiro interpretações que talvez não sejam as mais virtuosas, mas contam a história. Também gosto de interpretações que tenham um quê de bem-humoradas, como algumas do Sérgio Sampaio, Luiz Tatit, Rita Lee”, aponta.
Artifício. Com dois discos na bagagem, Rhaissa Bittar emplacou, em 2012, a música “Pif Paf” (de Daniel Galli), na trilha da novela Balacobaco. No tradicional jogo amoroso descrito na letra, a cantora embaralha as cartas e muda a lógica recorrente. “Ai malandro!/Fica rebolando/Até parece um pandeiro/E tá pedindo pra apanhar”, canta Rhaissa com voz macia e doce, quase infantil.
“Como intérprete, eu gosto de contar histórias que cutucam e emocionam as pessoas de alguma forma. Procuro fazer com que elas se encontrem consigo mesmas, se sintam acolhidas em meio às próprias angústias e instigadas a ser mais e melhor consigo e os outros”, sustenta. Pois o açúcar do canto é usado a favor de um recado incisivo.
“Minha voz é doce, foi assim que vim ao mundo e é com esse artifício que procuro confortar, provocar e emocionar o público, antes mesmo que eles percebam”, brinca. Em seu segundo disco de carreira, “Matéria Estelar”, lançado em 2014, Rhaissa encarna uma boneca cheia de sensibilidade. O álbum traz a participação especial de Paulinho Moska e Paulinho Boca de Cantor, entre outros.
“Gosto de cantar personagens. Nesse disco usamos objetos como alegoria para falarmos de sentimentos humanos. Isso deixou o assunto aparentemente mais leve, mas, quando ouvido com atenção, é possível identificar bastante angústia e melancolia”, destaca. Que o diga a música “Artifício”: “Já que é pra morrer/Eu vou fazer bonito/Estilhaçar os astros/Riscar o infinito/Pois só por um segundo/O tempo que durar/Eu vou fazer barulho/Pra você me notar”.
Graça. Indicada ao Prêmio da Música Brasileira pela canção “Diz Puta”, a carioca Carol Naine segue o princípio. “Me considero uma compositora do cotidiano. Do banal ao mais importante, a minha intenção é transmitir um olhar, não precisa nem ser a minha visão sobre aquilo, mas gosto sempre de colocar um personagem que você identifica, um perfil a quem estou dando voz”, sublinha. Em “Qualquer Pessoa Além de Nós”, lançado em 2016, questões como machismo, intolerância religiosa e homofobia são sutilmente debatidos, com a graça própria da artista que não exime os assuntos da seriedade inerente a eles.
“A objetividade da letra é suavizada pela tranquilidade do canto, o que favorece a mensagem, já que são temas delicados”, observa. “Pelo meu tipo de voz, já me perguntaram várias vezes porque eu não canto bossa nova. Mas as minhas principais influências vêm do samba e da música de protesto feita no período da ditadura militar no Brasil. Tanto que fiz um CD de resistência, que é um manifesto, e se propõe a refletir as questões do meu tempo”, assinala. “Às senhoras e senhores/Preocupados com o que se diz/Com o que se pensa e onde metem o seu nariz/Vejam bem vocês que apontam os seus fuzis”, recita Carol ao pé do ouvido na faixa que abre o disco, como quem puxa as orelhas.
Raphael Vidigal
Fotos: Divulgação.