*Raphael Vidigal Aroeira
“uma consciência sem escândalo é uma consciência alienada” Bataille
Os seios são fartos e extravagantes como num filme de Fellini e a desproporção da figura lembra Picasso. As nádegas parecem competir para tornar ainda mais largos os quadris, enquanto o sexo se exibe sem pudor. Tudo está à mostra na escultura cuja cabeça é representada por um gancho, mas o mais impressionante é que, a despeito dos traços que poderiam levar um observador incauto a relacioná-la à arte contemporânea, a obra é considerada uma das mais antigas já produzidas pela Humanidade, com cerca de 40 mil anos. Encontrada em uma caverna na região da Suábia, ducado que originou a Alemanha, a paleolítica “Vênus de Hohle Fels” despertou no arqueólogo britânico Paul Mellars, que a analisou em 2008, o seguinte comentário: “Pelos padrões atuais, diria que ela seria considerada quase pornográfica”.
Não é preciso ir tão longe. Em Belo Horizonte, basta olhar para o alto, ao modo do que realizam os visitantes da Capela Sistina, pintada por Michelangelo no Vaticano, para se deparar, nas imediações da Praça Raul Soares, com um enorme mural criado pelo Cura (Circuito Urbano de Arte), em que duas mulheres pretas se abraçam sem roupa. O tempo, no entanto, não amainou o escândalo provocado pelo corpo. sobre vastos pelos pubianos, a “Vênus” (1485) de Botticelli alisar sutilmente uma das mamas, o “David” (1501) de Michelangelo dar vulto ao membro da anatomia masculina, “As Três Graças” (1505) de Rafael empinarem peitos, maçãs e bumbuns, e de Gustave Courbet (1866) dar um close no lugar de onde, afinal, nascemos, a exposição “Fullgás”, em cartaz no CCBB da capital mineira desde agosto, recebeu a visita da Guarda Municipal, da Polícia Civil e da Polícia Militar, que escoltavam os vereadores Irlan Melo (Republicanos) e Flávia Borja (Democracia Cristã) com pedidos para seu fechamento.
A nudez presente em pinturas e esculturas da mostra, que tem como norte justamente o período de redemocratização do Brasil, sobretudo entre os anos 1980 e o começo de 1990, teria motivado a reação dos parlamentares. Diante do ocorrido, o CCBB declarou em nota que a exposição segue as normas do Guia Prático de Artes Visuais do Ministério da Justiça, publicado em 2021, destacando o fato de que as obras presentes apresentam “níveis elementares e fantasiosos de violência e sem teor erótico explícito”. Com cinco obras na exposição “Fullgás”, das quais quatro pertencem ao período do Movimento de Arte Pornô (1980-1982), Eduardo Kac, pioneiro da arte digital no Brasil, esclarece que a incursão à qual ele se dedicou na década de 1980, “não produzia o que entendemos hoje por pornografia, ou seja, um produto comercial cujo objetivo é a excitação sexual”. “O MAP não tinha nada a ver com isso. Ele subvertia a lógica da pornografia para criar algo novo, uma pornografia livre, alegre, imaginativa e emancipatória”.
A que você atribui os recorrentes episódios de ataques a exposições de arte em Belo Horizonte e outras partes do país e o que esse movimento de censura representa para os artistas e o campo da arte plástica?
Quando estes ataques são originados por políticos eleitos, ou por pessoas ou organizações com interesses políticos, me parece que antagonizam exposições de arte para chamar a atenção para si e se beneficiarem politicamente junto aos seus eleitores conservadores. A censura à arte é inadmissível em um país democrático. Quem decide a relevância de uma obra de arte é o tempo. Trata-se de hipocrisia. O que as crianças têm acesso hoje através de seus telefones, inclusive as das famílias daqueles que pediram classificação indicativa de 18 anos, não se compara com nada que está na exposição ‘Fullgás’. Como dizíamos no Movimento de Arte Pornô, no começo dos anos 80, obsceno é a fome e a miséria — e não corpos humanos em estado natural. Fica a pergunta: porque esses mesmos políticos não se indignam com a fome e a miséria?
De que armas o campo progressista e dos artistas dispõe para lidar com essa onda de ataques reacionários?
É preciso continuar a criar oportunidades para que manifestações democráticas possam ocorrer livremente, sejam elas debates, publicações, filmes, emissões televisivas, ou exposições de arte. É fundamental não aceitar nem normalizar os ataques reacionários. Na verdade, a nudez já era presente desde a Antiguidade greco-romana. Ela é parte integral da cultura ocidental. Já o nosso presente repressivo resulta de uma cultura religiosa que suprime e pune o prazer individual, impulsionada a partir do momento em que os imperadores romanos Constantino e Licínio legalizaram o Cristianismo por meio do Édito de Milão em 313 EC. Esse documento permitiu que a religião fosse praticada abertamente em todo o Império Romano e encerrou as perseguições oficiais aos cristãos. Na Idade Média, essa visão de mundo opressiva já estava plenamente difundida na Europa e, assim, chega ao Brasil com Cabral. Com relação à presença de valores medievais no presente, apenas uma pessoa insegura com a sua própria sexualidade manifesta insegurança com relação à sexualidade alheia, buscando controlá-la e suprimi-la, em vez de respeitá-la.
Qual a função da arte em tempos dominados por uma perspectiva não apenas conservadora, mas muitas vezes publicitária e mercantilista, em que as pessoas se portam como clientes de um produto frente a uma criação artística?
A função da arte é sempre a mesma: ser um laboratório de liberdade. Na exposição ‘Fullgás’ tenho cinco obras, das quais quatro pertencem ao período do Movimento de Arte Pornô (1980-1982): 3 fotos de poemas-graffiti; 1 camiseta com o poema monovocabular OVERGOZE; 1 poema digital, intitulado “Não!,” de 1982, criado após o fim do Movimento de Arte Pornô. É importante frisar que Movimento de Arte Pornô (MAP) não produzia o que entendemos hoje por pornografia, ou seja, um produto comercial cujo objetivo é a excitação sexual. O MAP não tinha nada a ver com isso. O MAP subvertia a lógica da pornografia para criar algo novo: uma pornografia livre, alegre, imaginativa, e emancipatória. Obras e publicações do MAP fazem parte de coleções de museus internacionais, tais como o Museu de Arte Moderna e o Metropolitan Museum of Art, ambos de Nova Iorque; o Tate, em Londres; o Centro Pompidou, em Paris; e o Reina Sofia, em Madri. O MASP não as possui mas já as exibiu. Essas obras não foram censuradas nesses museus quando exibidas. Esse fato fala por si só.
O cenário enfrentado pelos artistas plásticos hoje é muito diferente de períodos de assumida censura institucional?
Na época do MAP, por exemplo, a Gang, que era o braço performático do Movimento, foi expulsa em 1981 da Biblioteca Mário de Andrade. Levamos o público para fora do teatro da Biblioteca e fizemos a performance na escadaria da entrada. Outros membros do MAP também sofreram censura. Por exemplo: a poeta Sandra Terra foi presa e teve seus livros confiscados em 1981 e Hudinilson Jr. teve um de seus outdoors censurado em 1983, o que o levou a cobrir a obra com uma tarja, em protesto. Estes são alguns exemplos de como, numa época em que a censura era uma área oficial do governo, os ímpetos autoritários se reproduziam nas várias esferas da sociedade. Mas, veja, estamos falando de um período que ainda era de ditadura. Hoje, se o Brasil é de fato uma democracia, a censura é inconcebível.


