*por Raphael Vidigal
“Nunca deixei de me sentir obcecado por essa imagem de dor, a um só tempo extasiante e intolerável.” Georges Bataille
Vingança, traição, sangue e assassinato. Tochas de fogo acesas em meio a tanques, fuzis e canhões. Imagens de guerras convivem com as comezinhas violências que nos depauperam no dia a dia. O horror e a barbárie, com todo seu poder de causar espanto e medo, comparecem em canções da música popular brasileira que, para além do óbvio, conseguem olhar para esta realidade com o lirismo poético que, se não a redime, a torna mais palatável para nossos sentidos. Da década de 1930 aos anos 2000, passando pela pena de Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues, Chico Buarque, Rogério Skylab, nossa MPB é assustadora.
“Triste Cuíca” (samba, 1935) – Noel Rosa e Hervé Cordovil
Uma vingança motivada pela traição conjugal. Esse é o pano de fundo do samba “Triste Cuíca”, que ainda traz, como elemento sinistro, a comparação do instrumento com “um boi mugindo”. Composto por Noel Rosa e Hervé Cordovil, o samba foi lançado pela cantora Aracy de Almeida, em 1935, e ganhou posteriores regravações que, inclusive, alteraram um verso importante, que dizia: “esconderam o Laurindo/mas não se sabe onde foi”. O tal trecho, conservado na versão original, revela a crueldade trágica do acontecido. Assassinado, o personagem não tem o corpo encontrado. Marcos Sacramento, Paulinho da Viola e Isaurinha Garcia resgataram esse samba com sua categoria.
“Sem Cuíca Não Há Samba” (samba, 1942) – Germano Augusto e João Antônio Peixoto
O mesmo personagem Laurindo retorna num samba de 1942, lançada por Isaurinha Garcia com acompanhamento do Conjunto de Benedito Lacerda, histórico flautista que acompanhou e compôs com Pixinguinha. Tudo indica que João Antônio Peixoto seja mais um dos inúmeros pseudônimos utilizados pelo malandro e sambista Wilson Baptista ao longo da vida, por razões diversas, inclusive porque na recente regravação da música, que realça sua característica terrífica nos arranjos e no canto de Ilessi, fica evidente a prosódia e o estilo do compositor de clássicos como “Lenço no Pescoço” e “Louco (Ela É Seu Mundo”). Essa canção aterradora sobre o crime ainda tem como autor Germano Augusto.
“Dona Divergência” (samba-canção, 1951) – Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins
Principal artífice do gênero conhecido como samba-canção ou dor-de-cotovelo, Lupicínio Rodrigues possui uma centena de canções em que o amargor e a ironia dão o tom, o que não é diferente em “Dona Divergência”, parceria com Felisberto Martins lançada em 1951, no canto melancólico e triste de Linda Batista, eleita Rainha do Rádio na mesma década. Acontece que a essa característica imutável do compositor, acrescenta-se o horror de imagens impressionantes, com uma boa dose de tragédia cristã. “Aonde a dona divergência com o seu archote/ Espalha os raios da morte/ A destruir os casais”, escreve Lupicínio, que ainda fala sobre guerra, tanques, fuzis e canhões, além da violência dos leões. Sinistro.
“Carcará” (canção, 1964) – João do Vale e José Cândido
Maranhense de Pedreiras, João do Vale estava habituado a conviver com a violência do sertão, o que o levou a poetizar a imagem do temível pássaro que “pega, mata e come” ao compor, com José Cândido, a música “Carcará”, que tomou todo o país ao entrar para o repertório do histórico espetáculo “Opinião”, em que inicialmente atuava com Zé Kéti e Nara Leão, substituída posteriormente por Maria Bethânia. Foi a cantora baiana quem melhor conseguiu traduzir o espírito áspero e insubmisso contido nessa canção em que o horror aparece sem pedir licença, não como denúncia, mas constatação de sua necessidade para a sobrevivência. Pois Bethânia ainda declamava índices sobre a miséria no Brasil.
“Só Morto” (rock, 1970) – Jards Macalé e Duda Machado
Lançado em um compacto ao lado da faixa “Soluços”, o rock “Só Morto” precedeu o primeiro álbum de Jards Macalé, gravado com Lanny Gordin e Tutty Moreno em 1972. Parceria com Duda Machado, a música seria revista pelo cantor no disco “Jards”, de 2011. Com o estilo experimental de Macalé, dá o prenúncio da “morbeza romântica” que ele inauguraria com Wally Salomão nos anos 1970, movimento estilístico que procurava unir a tradição romântica da canção brasileira a uma morbidez inerente à beleza. Os versos condensados de “Só Morto” estilhaçam imagens como num intrincado jogo de palavras ao ouvinte. A morte, o fosso, o olho do morto, tudo se mistura num clima soturno de violência.
“Depois da Vida” (samba, 1971) – Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e Paulo Gesta
Com uma religiosidade fervorosa, o bamba Nelson Cavaquinho tinha na relação com a morte uma das suas principais inspirações. Alguns clássicos saíram dessa obsessão, como “Rugas”, “Luz Negra”, “Folhas Secas” e “Juízo Final”. A mais pitoresca, no entanto, certamente é “Depois da Vida”. Parceria com Guilherme de Brito e Paulo Gesta (parceiro de Ataulfo Alves em “Na Cadência do Samba”), “Depois da Vida” foi lançada por Paulinho da Viola em 1971. Para se aclimatar ao ambiente fúnebre da canção, Paulinho criou um arranjo sombrio, como se um vento uivante lentamente se aproximasse de nossos ouvidos com sua nostalgia. O crítico José Tinhorão não gostou da ousadia e espinafrou o arranjo da música.
“Cobaias” (samba-canção, 1978) – Hermínio Bello de Carvalho e Maurício Tapajós
A gravidade do canto de Cláudia Savaget não vem apenas das cordas vocais, que imprimem espessura a tudo que ela canta. A canção torna-se encorpada. As palavras adquirem massa, peso, largura. Se vez por outra sussurra, ela não hesita em comprimir as sílabas para que elas recebam densidade, numa espécie de drama sóbrio, distanciado. A comezinha dor-de-amor do fim-de-caso está ali para realçar as nuances da tragédia humana, como na impressionante “Cobaias”, de Hermínio Bello de Carvalho e Maurício Tapajós, apresentada ao público em “Samambaias”, de 1978, seu segundo álbum, o primeiro profissional. O som de órgão, com tudo o que ele tem de sinistro, tenciona o ar com tal horror…
“Pedaço de Mim” (MPB, 1978) – Chico Buarque
A insuportável dor da ausência, feito membro amputado cujo nervo ainda nos tortura, reaparece expressa na canção “Pedaço de Mim”, de Chico Buarque, lançada em 1978, num dueto com a cantora Zizi Possi. Ao longo da letra, Chico cria imagens que sublimam a pungência dessa dor, com metáforas que enchem de lirismo o dilaceramento atroz causado pela ausência. “Que a saudade é o revés de um parto/ A saudade é arrumar o quarto/ Do filho que já morreu/ Ó pedaço de mim/ Ó metade amputada de mim/ Leva o que há de ti/ Que a saudade dói latejada/ É assim como uma fisgada/ No membro que já perdi”. Aqui, os versos criam beleza a partir do horror, ou, antes, a beleza advém desse cenário…
“Uma Canção Desnaturada” (MPB, 1979) – Chico Buarque
O lado trágico e sombrio da relação entre mãe e filha é abordado por Chico Buarque nesta música composta em 1979 para a “Ópera do Malandro”, em que o próprio autor a interpreta em parceria com a cantora Marlene. Essa faceta menos simpática e idealizada da maternidade aparece com menos frequência nas obras de arte, mas pode ser conferida, por exemplo, no filme “Sonata de Outono”, do cineasta sueco Ingmar Bergman, e no clássico da mitologia grega Édipo, que eternizou a figura de Jocasta, a mãe que dorme com o próprio filho. Embora pouca agradável, a conflituosa convivência entre mães e filhos aparece na realidade em grau maior do que sugere a ficção. Chico Buarque, com sua habitual competência poética, traça o panorama de crueldades de que também é capaz uma mãe. “Porque cresceste, Curuminha, assim depressa, estabanada”.
“O Ciúme” (MPB, 1987) – Caetano Veloso
Tudo, ao longo da letra de “O Ciúme”, composta e lançada por Caetano Veloso em 1987, converge para o desfecho trágico, repleto de melancolia, e o arrepio de horror que o sublima. A música integra o álbum lançado pelo baiano no final da década de 1980, que ainda trouxe belezas como “José”, “Eu Sou Neguinha?”, “Giulietta Masina”, e a irreverente “Vamo Comer”, num dueto com Luiz Melodia. “O Ciúme” não fica atrás de nenhuma dessas no quesito poesia. Caetano tece imagens em que congrega a geografia aos sentimentos mais recônditos do ser humano, e arremata numa sequência de raro estupor e precisão: “Tantas almas esticadas no curtume/ (…) Paira, monstruosa, a sombra do ciúme”, define o autor.
“Naquela Noite” (MPB, 1992) – Rogério Skylab
Numa famosa peça de teatro, dois maltrapilhos esperam indefinidamente. Mas Rogério Skylab não espera nada. Ele quer o Impossível. “A morte pode ser vista sob as mais diferentes perspectivas. Uma delas, e pra mim a mais cara, é relativizar a importância do sujeito, da própria identidade”, declara. Lancinante, um caco de vidro se enterra no umbigo da vítima, que tem os mamilos retorcidos com alicate, enquanto seus fios de cabelo são puxados e arrancados, fio por fio. Ao reconstituir o ambiente de uma tortura na música “Naquela Noite”, lançada em seu primeiro disco, “Fora da Grei”, de 1992, o músico opta por uma melodia suave-delicada que, associada à letra, embebe em lirismo o horror e a crueldade.
“Noite Severina” (MPB, 2001) – Pedro Luís e Lula Queiroga
As referências ao sertão nordestino, com toda a sua aspereza, são fundamentais para a compreensão da música “Noite Severina”, de Lula Queiroga e Pedro Luís. João Cabral de Melo Neto e sua “Morte e Vida Severina”, além de Ariano Suassuna, célebre autor de “O Auto da Compadecida”, são citados, de uma forma ou de outra, nominalmente. A música foi lançada por Lula em 2001, numa versão que ainda trazia a recitação de um poema em espanhol na introdução, e tornou-se ainda mais conhecida quando Ney Matogrosso a interpretou com o grupo Pedro Luís e a Parede, para o álbum “Vagabundo”, de 2004. É, sobretudo, no clima dessa canção que ela revela o seu perigo iminente, na tocaia do animal.
“Tango dos Açougueiros Felizes” (tango, 2001) – versão de Letícia Coura
Poeta surrealista de formação anarquista, o francês Boris Vian (1920-1959) foi uma das figuras mais proeminentes das artes nas décadas de 1940 e 1950, quando contribuiu com a música e o teatro, em constante diálogo com as artes plásticas. No ano de 2001, a cantora e atriz belo-horizontina Letícia Coura traduziu e adaptou o seu poema que ficou conhecido como “Tango dos Açougueiros Felizes” na regravação da magistral intérprete Cida Moreira, uma ácida crítica ao estado de coisas que normaliza a violência e a impõe como condição incontornável para as sociedades modernas, nada muito diferente da nossa habitual barbárie. É com sarcasmo e ironia que o terror emerge na canção.
Foto: Rogério Skylab em show na Autêntica, em BH, por Felipe Mesquita/Divulgação.