*por Raphael Vidigal Aroeira
“E assim, não menos que rir, beber é próprio do homem.” Rabelais
Reza a lenda que a expressão “dor de cotovelo”, criada pelo compositor Lupicínio Rodrigues, mestre do gênero, nasceu porque ele tinha o costume de ficar apoiado sobre a mesa de bar enquanto lamuriava os amores perdidos. Ninguém mais apropriado para ouvir essas desilusões do que o garçom, habitual confidente dos momentos de desassossego da alma, combatidos frequentemente com teor alcóolico. Na música brasileira, conhecida pelo romantismo elítico, o garçom não poderia deixar de comparecer, servindo doses de samba, tango, marchinha, rock, foxtrote e música sertaneja. Letras sobre a profissão que vive na rotina de brasileiros não faltam. Desce mais uma!
“Conversa de Botequim” (samba, 1935) – Noel Rosa e Vadico
Noel Rosa levou a esposa Lindaura para o cinema, mas, no caminho, resolveu parar em uma leiteria para comer arroz-doce. Logo, Noel avistou um amigo e foi até ele papear. Lindaura ficou esperando, sem dinheiro para pagar a conta ou pegar o bonde, e o marido só apareceu quando ela já estava em casa, de madrugada, com a ajuda do garçom que conhecia Noel e pendurou o pedido da vez. Essas confusões eram frequentes na vida de Noel, um boêmio incorrigível. “Conversa de Botequim”, samba de 1935 em parceria com Vadico, é uma crônica bem nesse estilo: “Seu garçom faça o favor de me trazer depressa/ Uma boa média que não seja requentada…”. E foi lançada por Noel.
“Esta Noite Eu Tive Um Sonho” (samba de breque, 1941) – Wilson Batista e Moreira da Silva
O único samba que se tem notícia que traz uma citação na língua de Goethe, Brecht, Beethoven e Einstein. Assim é “Esta Noite Eu Tive Um Sonho”, samba de breque de 1941, composto por Wilson Batista e Moreira da Silva, que, na segunda estrofe, apela para o alemão: “Ich nag dich, seu Fritz”. A tentativa é de se fazer entender na terra das personalidades citadas, depois que a personagem do samba salta em Berlim. “O garçom respondeu: ‘não pode ser não!’/ Fiquei furioso e fui ‘hablar’ ao patrão”, canta Moreira da Silva, que lançou a música, mais tarde regravada por João Nogueira no disco “Wilson, Geraldo e Noel”, de 1981. A música traz uma série de tiradas impagáveis durante a letra.
“Bar da Noite” (samba-canção, 1953) – Bidu Reis e Haroldo Barbosa
Edila Luísa Reis, conhecida como Bidu Reis, foi uma pioneira. Nascida no Rio de Janeiro, ela atuou como compositora, poeta, pianista, atriz, escreveu livro infantil, foi presidente da Associação das Donas de Casa da Zona Norte, “Rainha” do Sindicato dos Músicos e integrou o trio As Três Marias, com Marília Batista e Salomé Cotelli, que foi fundado em 1942. Uma mulher extraordinária. Como compositora, o grande sucesso de Bidu Reis foi o samba-canção “Bar da Noite”, parceria com Haroldo Barbosa, lançado em 1953 por Creusa Cunha na boate Mocambo, mas que se eternizou no canto de Nora Ney. Em 2021, Maria Bethânia o regravou: “Garçom, apague esta luz/ Que eu quero ficar sozinha…”.
“Turma do Funil” (marchinha, 1956) – Mirabeau, Milton de Oliveira e Urgel de Castro
A cantora Carmen Costa viveu um romance turbulento com o compositor Mirabeau. Os dois foram amantes e tiveram uma única filha. “Turma do Funil” representa bem o espírito boêmio de Mirabeau. A marchinha de carnaval composta com Milton de Oliveira e Urgel de Castro fez enorme sucesso ao ser lançada pelos Vocalistas Tropicais, em 1956. Ao cair no gosto popular, ela recebeu diversas regravações, inclusive do trio formado por Miúcha, Tom Jobim e Chico Buarque, em 1979. O trio acrescenta uma introdução criada por Chico e Tom à música, conhecida como “No Baixo Leblon”, que diz: “Quando ninguém mais tem dono/ O garçom tá com sono/ E a primeira edição circulou”.
“Neste Mesmo Lugar” (samba-canção, 1956) – Armando Cavalcanti e Klécius Caldas
Transformada em prefixo musical de Luiz Gonzaga, a toada “Boiadeiro” foi composta em 1951 por um coronel do exército. Se hoje poucos reconhecem o nome de Klécius Caldas, na época em que suas músicas alcançaram o sucesso tampouco era diferente. Autor do samba-canção “Neste Mesmo Lugar”, lançado por Dorinha Freitas em 1956, e consagrado na voz de Dalva de Oliveira, Klécius Caldas foi um grande criador de hits dos anos 40 e 50, ao lado do parceiro Armando Cavalcanti, vizinho de edifício e colega de farda. A letra do samba-canção se detém sobre o término de um romance, e, de lambuja, cita Noel Rosa. “O mesmo garçom se aproxima…/ Parece que nada mudou…”.
“A Dama de Vermelho” (foxtrote, 1960) – Ado Benatti e Jeca Mineiro
Ado Benatti, compositor e poeta de Taquaritinga, e Jeca Mineiro, violeiro de Arceburgo, no interior das Minas Gerais, se uniram para criar, em 1960, o foxtrote “A Dama de Vermelho”. Já na segunda gravação, na Chantecler, em 1963, a música teve o ritmo alterado para um bolero, e ganhou as vozes da dupla sertaneja formada por Paiozinho e Zé Tapera. O sucesso foi imediato e permaneceu ao longo do tempo, angariando regravações de Reginaldo Rossi, Waldick Soriano, Bruno & Marrone, Leonardo e Eduardo Costa, o que a tornou cultuada por um público de uma nova geração. “Garçom olhe pelo espelho/ A dama de vermelho que vai se levantar”, anunciam os primeiros versos da letra.
“Eu, Ela e o Garçom” (sertaneja, 1963) – José Ferreira e Canário
Formada pelos irmãos Antônio Bergamo e Pedro Bergamo, a dupla sertaneja conhecida como Canário & Passarinho nasceu em Altinópolis, no interior de São Paulo. Eles começaram trabalhando na lavoura e cantando em festas da escola. Em 1959, viajaram para São Paulo e, contratados como faxineiros de um hotel, obtiveram a primeira oportunidade de cantar no programa “Alvorada Cabocla”, da Rádio Nacional. O primeiro disco foi gravado em 1961. Dois anos depois, conheceram o sucesso com “Eu, Ela e o Garçom”, uma moda tipicamente sertaneja, composta por José Ferreira e Canário. A música saiu pela Continental e, ao lado de “Gaiola de Ouro”, foi o maior sucesso do álbum.
“Amigo É Pra Essas Coisas” (samba, 1970) – Aldir Blanc e Sílvio da Silva Júnior
Durante a ditadura militar, Ivan Lins e Aldir Blanc formaram, ao lado de Gonzaguinha, César Costa Filho e de outros colegas do ambiente estudantil, o MAU (Movimento Artístico Universitário). O grupo se reunia com frequência na casa do psiquiatra Aluízio Porto Carreiro para longas conversas e rodas de violão e pretendia, principalmente, ampliar o espaço para a música autoral no país. Foi nessa época que Aldir deu à luz uma de suas composições mais bonitas, “Amigo É Pra Essas Coisas”, parceria com Sílvio da Silva Júnior, defendida no III Festival Universitário de Música Popular Brasileira pelo conjunto vocal MPB-4. Ela foi regravada por João Nogueira e Emílio Santiago.
“Super-Heróis” (rock, 1974) – Raul Seixas e Paulo Coelho
A parceria entre Raul Seixas e Paulo Coelho rendeu diversos frutos para a música popular brasileira, dentre eles clássicos do porte de “Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás”, “Gita”, “Tente Outra Vez”, “Al Capone” e “A Maçã”. Raul tomou contato com a obra de Paulo Coelho através de um artigo do escritor sobre extraterrestres publicado na revista “A Pomba”, e logo se interessou. Em 1974, eles criaram e compuseram a “Sociedade Alternativa”, uma espécie de retiro hippie. No mesmo ano, lançaram o rock “Super-Heróis”, nascido durante uma viagem à Disney. A letra mistura os mais variados personagens da cultura pop. “Pedi cerveja e convenci o garçom do botequim a não pagar o tal do casco…”.
“Tango pra Tereza” (tango, 1975) – Evaldo Gouveia e Jair Amorim
A família de Abelim Maria da Cunha tinha horror de que ela se tornasse cantora de rádio, embora a menina já demonstrasse talento fora do comum no coro da igreja. Para despistar a família, ela adotou o nome de Angela Maria e se tornou uma das maiores cantoras da história da música brasileira, colecionando sucessos em série. Chamada carinhosamente de Sapoti, apelido dado por Getúlio Vargas, que considerava sua voz doce como o sabor da fruta, Angela Maria gravou, em 1975, “Tango pra Tereza”, música de Evaldo Gouveia e Jair Amorim, craques em sucessos radiofônicos. “Garçom ponha a cerveja sobre a mesa/ Bandoneon toque de novo que Tereza/ Esta noite vai ser minha e vai dançar/ Para eu sonhar”. A música foi regravada em 2010 por Ney Matogrosso.
“Vida Noturna” (MPB, 1976) – João Bosco e Aldir Blanc
Aldir Blanc formou-se em medicina e se especializou em psiquiatria, mas, já em 1973, trocou a profissão, definitivamente, pela música. Foi o ano do primeiro álbum de João Bosco, que já trazia parcerias da dupla como “Bala com Bala”, lançada um ano antes por Elis Regina. Em 1976, foi lançado o disco “Galos de Briga”, mais um dedicado à fértil parceria com João Bosco. Todas as músicas eram da dupla, incluindo “Vida Noturna”, música de caráter boêmio, tanto na forma quanto no conteúdo. Não por acaso foi regravada, naquele mesmo ano, por Nelson Gonçalves, e por Zizi Possi, em 1978. “Eu disse ao garçom que quero que ela morra”, desabafa o protagonista ressentido, com dor de cotovelo.
“Tango do Covil” (tango, 1978) – Chico Buarque
Durante uma conversa com o cineasta moçambicano Ruy Guerra, o compositor Chico Buarque teve a ideia de escrever uma adaptação que reunisse os clássicos “Ópera dos Mendigos”, de John Gay, e “A Ópera dos Três Vinténs”, de Bertolt Brecht e Kurt Weill, a fim de refletir o cenário socioeconômico e político do período. Assim nasceu a peça “Ópera do Malandro”, que sofreu censuras da ditadura militar brasileira, em 1978. No ano seguinte, chegou à praça o disco com as músicas da peça, entre elas “Tango do Covil”, interpretada pelo conjunto vocal MPB-4. “Ai, quem me dera ser garçom, ter um sapato bom/ Quem sabe até talvez, ser um garçom francês”, diz trecho da letra.
“Você Não Soube Me Amar” (rock, 1982) – Evandro Mesquita, Ricardo Barreto, Zeca Mendigo e Guto
Há que se fazer justiça: dois anos antes do estouro da Blitz em todo Brasil, a turma conhecida como Vanguarda Paulista, capitaneada por Arrigo Barnabé e Itamar Assumpção, já investia na mistura de linguagens, especialmente a dramaturgia, e mudava a cara da música brasileira. O que a Blitz trouxe de novidade foi, justamente, o seu caráter mais acessível, que o então baterista Lobão depois defenestrou como sendo excessivamente infantil. Fato é que “Você Não Soube Me Amar”, rock para a juventude de 1982, representou um fenômeno comercial. Composta por Evandro Mesquita, Ricardo Barreto, Zeca Mendigo e Guto, ela se baseia no diálogo de um casal com suas idas e vindas.
“Dolorosa” (rock, 1984) – Cazuza e Roberto Frejat
A boemia de Cazuza era conhecida, tanto que, nos anos 1980, ele foi considerado atração turística do Baixo Leblon pelo Guia da Michelin, ao lado de Lobão, que, debochado, dizia que eles eram conhecidos como “rodo e pano de chão”, pelos vexames que costumavam protagonizar nas noitadas. Em 1984, Cazuza participou de seu último disco como vocalista do Barão Vermelho, que trouxe clássicos do rock nacional, como a faixa-título, “Maior Abandonado”, e, ainda, “Beth Balanço” e “Por Que a Gente É Assim?”. Uma canção que passou sem grande atenção foi “Dolorosa”, parceria de Cazuza e Frejat. A letra flagra uma habitual cena da vida noturna do Rio, com direito a garçom mal-humorado.
“Cabaré [Piano Bar]” (tango, 1986) – Paulo César Pinheiro e Ivor Lancellotti
Paulo César Pinheiro mantém o hábito de, toda manhã, tomar café, ler os jornais e, sentado diante da mesa, colocar uma folha em branco à espera da inspiração. Foi esse ritual que garantiu a ele algumas das letras mais bonitas da música brasileira, além de ter se consagrado como um exímio poeta. Ele é autor dos versos de canções como “Espelho” (com João Nogueira), “Portela na Avenida” (com Mauro Duarte) e “Matita Perê” (com Tom Jobim). Em 1986, se uniu a Ivor Lancellotti, compositor de “Abandono”, sucesso de Roberto Carlos, para compor o tango “Cabaré”, também conhecido como “Piano Bar”. A música foi lançada por Nelson Gonçalves, em 1986. “Um garçom enchendo a taça…”.
“Garçom” (brega, 1987) – Reginaldo Rossi
É impossível achar uma música que esteja mais associada à profissão do que, justamente, “Garçom”, que a traz logo em seu título. Essa canção brega do repertório de Reginaldo Rossi se tornou praticamente um epíteto do cantor e é, certamente, o maior sucesso de sua carreira. Lançada em 1987, ela foi fundamental para a redescoberta de Reginaldo Rossi em 1998, quando obteve novamente espaço na mídia após um longo período de ostracismo. Em 2013, “Garçom” entrou para a trilha sonora da novela “Balacobaco”, da TV Record. A música mostra o garçom como principal confidente de um homem desiludido. “Garçom, aqui, nessa mesa de bar/ Você já cansou de escutar…”, canta Rossi.
“Em Noventa e Dois” (pop rock, 1993) – George Israel e Paula Toller
Embora tenha sido lançada em 1993, no disco “Iê Iê Iê”, a música “Em Noventa e Dois” foi composta um ano antes, o que justifica o nome. Sexto álbum de estúdio da banda Kid Abelha, o lançamento vendeu cerca de cem mil cópias, e teve a música destacada entre as de maior sucesso. Parceria do saxofonista George Israel com a vocalista Paula Toller, a letra aborda, como de costume, as relações conjugais que pautam grande parte da obra da banda, e já apresenta algo que se tornaria cada vez mais comum com a globalização e as redes sociais: o uso de expressões importadas: “Meu coração está on/ Garçom, me traga alguma coisa/ Que eu sou capaz de fazer qualquer coisa…”.
“Saideira” (pop rock, 1998) – Samuel Rosa e Rodrigo Leão
Depois de estourar em todo o Brasil com uma abordagem diferenciada do reggae e da música pop, o grupo mineiro Skank resolveu explorar outras praias sonoras. O resultado foi “Siderado”, quarto álbum da carreira da trupe, que trazia, inclusive, uma canção acústica: “Resposta”. Fechando os trabalhos, mas sem passar despercebida, “Saideira”, música de Samuel Rosa e Rodrigo Leão. No videoclipe de divulgação, os músicos chegam atrasados a um boteco “copo sujo”, onde começam a tocar, justamente, “Saideira”. A sacada da música é que ela chama o garçom por diversos nomes, menos o oficial. “Comandante, capitão/ Tio, brother, camarada/Chefia, amigão/ Desce mais uma rodada”, diz.
“Cabrochinha” (MPB, 1999) – Paulo César Pinheiro e Maurício Carrilho
Com arranjos de Maurício Carrilho e J. Moraes, a cantora Miúcha lançou, em 1999, o disco “Rosa Amarela”, que trazia, entre outras, “Cabrochinha”, parceria de Carrilho com o poeta e letrista Paulo César Pinheiro. O resultado foi uma das canções mais bonitas do repertório. “Cabrochinha” une o romantismo de outrora a uma graciosidade delicada, como por exemplo, no verso em que os compositores lançam mão de expressões estrangeiras já completamente assimiladas ao nosso idioma. “Ô monsieur garçom/ Leva o menu que eu não entendo lhufas/ Eu vou pedir esse Don Perignon/ Um scargot e um filet com trufas”. “Cabrochinha” foi regravada no CD “Iaiá” de Mônica Salmaso em 2004.
“Nos Bares da Cidade” (sertaneja, 2003) – Rick
Formada por Geraldo Carvalho, natural de Monte Carmo, em Tocantins, e Ivair Gonçalves, de Patos de Minas, no interior do Estado, a dupla conhecida como Rick & Renner já surgiu na música brasileira fazendo barulho. Em 2003, eles comemoraram a trajetória com o álbum “10 Anos de Sucesso: Acústico”. No repertório, músicas como “Só Pensando Em Você”, “A Força do Amor”, “Bandida” e “Nos Bares da Cidade”, que recebeu diversas regravações, entre elas as de Eduardo Costa, Gusttavo Lima, Valéria Barros e Bruno & Barreto. A letra não deixa dúvidas sobre o tema: “Garçom me traga outra garrafa de cerveja/ Vou ficar sozinho nessa mesa/ Eu quero beber/ E chorar por ela”, diz.