De Fernando Pessoa a ‘Torto Arado’: a recusa ao que está posto

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Nos momentos de forte emoção meu horizonte se embota, transbordo para os lados, não consigo reunir o que me compõe.” Itamar Vieira Junior

Alberto Caeiro, um dos afamados heterônimos de Fernando Pessoa, não consegue se desvencilhar de sua cruzada contra o misticismo, um dos principais topos de “O Guardador de Rebanhos”, obra do autor português publicada pela primeira vez em 1925. Na visão do poeta, o misticismo turva tudo o que é verdadeiro, induzindo a uma vida destituída de sentido, apegada a valores ordinariamente mesquinhos, levando a um embotamento da experiência humana no que ela tem de único e irremissível. Por exemplo, Caeiro se recusa a tratar as coisas pelo que elas não são, a substituir o que é pelo que ele simboliza, no que fica explícito o trecho em que ele determina que as forças da natureza, sejam elas árvores, rios ou ventos, não possuem um sentido metafísico, para além do ser – essa espécie de deformação da consciência humana – mas, só, existência.

Da mesma maneira, não compreende a razão de Deus ter que ser, em tese, conhecido por “apelidos”. Ele seria, na visão dos místicos, o conjunto amplo da Natureza, ao que o poeta reage com virulência. Se Deus queria ser chamado de árvore, por que chamá-lo de Deus?, reage. O que Caeiro, com sua poesia, procura fazer, é aproximar a vida de sua “real” face. Outro poema notável desta tentativa é aquele em que ele cria a sua própria imagem do Menino Jesus, tão real e verdadeira quanto a de todos os outros que vieram antes e que virão depois, insinua, pois, afinal de contas, num campo vago como este, só o que está proibido é o absolutismo instaurador da ordem geral a ser seguida por todos. Tudo o que leva a uma vida que distancia o ser humano de uma certa noção de “essência” é combatido pelo poeta, que renega o maniqueísmo fácil, a repetição maneirista, e o tal abstracionismo estéril e falso acerca do “mistério das coisas”…

Caeiro se coloca numa posição de alienação e alheamento desta sociedade, quando não de combate, ao contrário dos protagonistas de “Nós Matamos o Cão Tinhoso!”, livro de contos publicado pelo escritor moçambicano Luís Bernardo Honwana, em 1964. Ali, os valores da sociedade colonialista de base escravocrata deturpam e corrompem a essência da vida humana, tornando irresistível a tentação deste veneno introjetado de maneira tão brutal e cotidiana a ponto de naturalizá-lo e, sub-repticiamente, determinar toda uma lógica de ação e reação. Vejamos, sobretudo, o notável caso do conto que dá título à coletânea. Narrado em primeira pessoa sob o ponto de vista de uma criança, somos paulatinamente apresentados às diferentes camadas de angústia a que uma experiência aparentemente banal nos submete. Da indiferença, passa-se ao adesismo ingênuo que, no futuro, já não permite um dolorido arrependimento.

Tudo permanece como no começo, detectamos ao final do conto. Não raro, é um gosto de amargor que se instala ao final de cada parábola de Honwana. A resistência, seja ela especulada ou levada a cabo, termina sempre estraçalhada e derrotada. Impõe-se, indiscutivelmente, a opressão sobre a utopia. Se os cantos de Caeiro são revoltosos e pendem para uma doce exaltação da recusa, e a prosa de Honwana não disfarça o seu cheiro de cansaço, num marasmo que domina o cenário, a prosa de Itamar Vieira Junior em “Torto Arado”, vencedor do Prêmio Jabuti de 2020, tem outro viés. Luta-se com perspectiva de vitória, ainda que haja derrotas empilhadas. Se não é possível modificar a injustiça reinante e meticulosamente estruturada, a saída, para o autor, reside numa espécie de vingança, em que a vida, ainda que por instantes, respira diante de tanta morte…

Sem negar o seu nítido engajamento político, a obra opõe valores arraigados na tradição escravocrata, machista e patriarcal brasileira a exemplos de resistência individual que, por hora, chegam a aspirar a uma experiência coletiva. O feminino dá o tom da narrativa, seja pela escolha das protagonistas, seja pelos gestos que demarcam o que é passível de acolhimento, gestação, criação, ou seja, vida; e o que age através do instinto de destruição, domínio, posse, controle, limite, numa relação mortífera para todos os demais. A religiosidade de matriz africana também se contrapõe àquela dominante; e, em suma, tudo o que se tornou dominante nessa sociedade propagadora de desigualdades, doenças e morte, é combatido pela retórica de “Torto Arado”, sob a perspectiva de uma disputa de terra entre aqueles que trabalham nela e os que dominaram – à força bruta – os meios de produção, no que se opõe o capitalismo à vida socialmente saudável…

Mas, aqui, ao contrário de “Nós Matamos o Cão Tinhoso!” e “O Guardador de Rebanhos”, a postura é muito diferente. Não existe a corrosão e a corrupção a que as personagens do autor moçambicano se submetem; tampouco o desprezo que coloca o autor português numa posição de superioridade em relação ao misticismo de seus pares; prossegue todo um enfrentamento exaustivo e excruciante, mas que parece ser a única possibilidade para as protagonistas de “Torto Arado”. As personagens lutam de modos diferentes contra opressões diversas. Todas elas, no entanto, preservam a essência de seu ser; seja na religiosidade, seja no trato com a terra, na altivez diante do macho, ou na aventura de um sonho cujos riscos são calculados pela força das adversidades. Desprezo, corrupção, enfrentamento, todas são formas de negativizar, criticar e denunciar os males inerentes a essa sociedade em que impera a hipocrisia e a injustiça. E o que permanece, ao final das leituras, é a necessidade de mudança.

Foto: Cia. das Letras/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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