De Chico Buarque a Gilberto Gil: músicas brasileiras exaltam a preguiça

*por Raphael Vidigal Aroeira

“(O descuido ficara aberto
de par em par;
um sonho passou, deixando
fiapos, logo árvores instantâneas
coagulando a preguiça).” João Cabral de Melo Neto

O escritor belo-horizontino Fernando Sabino (1923-2004), numa célebre crônica com sabor de ensaio, pleiteava que a “preguiça” deixasse o rol dos pecados capitais, e convocava todos os preguiçosos do mundo a segui-lo, se a preguiça deixasse. Ele não estava sozinho. O também mineiro Rubem Alves (1933-2014), natural de Boa Esperança, advogava que “a preguiça deveria ser incluída entre as virtudes intelectuais”.

“É nos momentos de preguiça que as revelações acontecem. Quem trabalha duro fica tão ocupado com suas próprias ideias que não tem espaço vazio na cabeça para ideias vindas não se sabe de onde”, escreveu. O gaúcho Mario Quintana (1906-1994) ia mais longe, proclamando, sem papas na língua: “A preguiça é a mãe do progresso. Se o homem não tivesse preguiça de caminhar, não teria inventado a roda”. Era também o bordão de Macunaíma, anti-herói de Mário de Andrade (1893-1945): “Ai, que preguiça…”, bocejava.

“De Papo pro Ar” (cateretê, 1931) – Joubert de Carvalho e Olegário Mariano
Com Olegário Mariano, Joubert de Carvalho fomentou uma das parcerias mais profícuas em termos de repertório e qualidade da história musical brasileira. Inicialmente, o casamento começou como aquele famoso caso em que apenas um dos parceiros sabe que está namorando. Joubert musicou dois poemas de Olegário, “Cai, Cai Balão” e “Tutu Marambá”, que os apreciou, e a partir daí nasceram várias canções. Uma que tem levada das mais gostosas é o cateretê “De Papo pro Ar”, de 1931, que exalta a mansidão e a preguiça típicas de Macunaíma, vista de perto em andanças dos dois comparsas. Lançada por Gastão Formenti, ganhou os agudos de Ney Matogrosso.

“Maracangalha” (samba, 1957) – Dorival Caymmi
A mansidão de Dorival Caymmi rendeu uma aura folclórica ao compositor, famoso pela demora em terminar suas canções. A mais repetida conta que ele estava deitado numa rede quando, um ano depois do primeiro verso de “Maracangalha”, encontrou o arremate: “Se Anália não quiser ir, eu vou só…”. Segundo a lenda, a música lançada em 1956 teria se originado na década de 1940. Fato é que, além do ritmo dolente desse samba que se tornou um dos mais conhecidos da obra de Dorival Caymmi, comparece também na letra, de uma certa forma, a preguiça de insistir, nos versos que resumem a intenção do protagonista: “Se Anália não quiser ir, eu vou só…”, cantarola…

“Preguiçoso” (coco, 1965) – Jackson do Pandeiro e Bezerra da Silva
Bezerra da Silva nasceu em Recife, no dia 23 de fevereiro de 1927, e morreu no Rio de Janeiro, no dia 17 de janeiro de 2005, aos 77 anos. Vindo de uma família humilde, começou a carreira artística interpretando cocos em sua terra natal, bastante influenciado por Jackson do Pandeiro e Ary Lobo. Aliás, foi com Jackson que ele compôs uma música que se tornou obscura, o coco “Preguiçoso”, lançado em 1965, no LP “Coisas Nossas”, que também trazia a presença de Almira Castilho, esposa do “Rei do Ritmo”. Ao longo de décadas, Jackson do Pandeiro gravou sucessos inesquecíveis da música brasileira, como “Chiclete com Banana”, “O Canto da Ema” e “Sebastiana”…

“Samba e Amor” (samba, 1970) – Chico Buarque
Se a história da música popular brasileira possui uma linhagem, nela não pode faltar o nome de Chico Buarque de Hollanda. Filho do historiador Sérgio Buarque – e irmão das também cantoras Miúcha, Cristina Buarque e Ana de Hollanda –, o garoto prodígio da canção nacional, como era de se esperar, começou cedo. Enfileirou sucessos desde o princípio da carreira, nos anos 1960, auge da bossa nova, passando por vários ritmos, gêneros e inclusive movimentos musicais. Em 1970, Chico lançou “Samba e Amor”, que justifica a preguiça matutina do eu lírico, autêntico dândi, pelas atividades noturnas que o consomem. A música ganhou uma lisonjeira versão de Caetano Veloso.

“Tarde em Itapoã” (bossa nova, 1971) – Vinicius de Moraes e Toquinho
Na beira do mar, Badi Assad sente a “brisa a acariciar o seu corpo” e sequer precisa sair de casa. A compositora paulista conta que é “transportada” para esse ambiente toda vez que escuta “Tarde em Itapoã”, um dos clássicos do conterrâneo Toquinho em parceria com Vinicius de Moraes. Mas a intimidade de Badi com a obra de Toquinho data de um tempo anterior. “Como muitos brasileiros, o conheci através de ‘Aquarela’. Na época, eu tinha começado a tocar violão e achei incrível um cantor tocar violão daquele jeito enquanto cantava. Eu estava com 14 ou 15 anos mais ou menos, e com certeza ele plantou esta semente de possibilidades em meu jovem coração”, assegura.

“Ladeira da Preguiça” (MPB, 1971) – Gilberto Gil
Não é preciso muito para compreender que Elis Regina (1945-1982) é a maior cantora brasileira de todos os tempos: basta ouvi-la. Nascida em Porto Alegre, a gaúcha morreu aos 36 anos, vítima de uma overdose de álcool e cocaína. O disco “Tom & Elis”, de 1974, é considerado pelo crítico musical Hugo Sukman como “uma homenagem da nossa maior cantora ao nosso maior compositor”. A intérprete, cujo temperamento forte lhe rendeu o apelido de “Pimentinha”, deixou, ao longo da intensa carreira, 25 discos de estúdio e ao vivo, registrados entre os anos de 1961 e 1982. Em 1973, Elis gravou a malemolente e deliciosa “Ladeira da Preguiça”, de Gilberto Gil, uma ode bem explícita.

“Baila Comigo” (balada, 1981) – Rita Lee
Filha de um cientista norte-americano fissurado em extraterrestres e uma matrona italiana fervorosa como o próprio Papa, Rita Lee festejou as raízes do Brasil com Gilberto Gil e se tornou mutante com os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, com quem manteve uma relação atribulada de sucessos radiofônicos, contestações ferozes e paixões dilacerantes. Afinal de contas, Rita Lee não carece de apresentações, o seu perfil esguio e afogueado já fala por si só. Nascida no último dia do ano é a primeira rainha do rock e uma eterna pioneira. Em 1980, ela lançou a balada “Baila Comigo”, uma prece e ode à boa natureza, e que jamais despreza o poder dolente da preguiça…

“Coração Civil” (clube da esquina, 1981) – Milton Nascimento e Fernando Brant
Composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, “Coração Civil” foi lançada em 1981 por Bituca, e ganhou regravações de Tadeu Franco e Ney Matogrosso. No bis do espetáculo “Bloco na Rua”, que Ney montou em 2019, ela ressurge ainda mais contundente. “Sem polícia, nem a milícia, nem feitiço, cadê poder?/ Viva a preguiça, viva a malícia que só a gente é que sabe ter/ Assim dizendo a minha utopia, eu vou levando a vida”, afirmam os versos. “A letra é o que sempre me move. O critério foi escolher músicas que eu gostasse de cantar, mesmo que já tivessem sido gravadas. Acho que o que as une é o fato de a maioria pertencer aos anos 1970…”, sustenta Ney.

“Lua de Cetim” (MPB, 1983) – Francis Hime e Olívia Hime
Francis Victor Walter Hime, conhecido como Francis Hime, nasceu no Rio de Janeiro, no dia 31 de agosto de 1939. Cantor, compositor, arranjador e pianista, Francis Hime começou seus estudos musicais aos seis anos de idade, com o piano. Na década de 1950, mudou-se para a Suíça, onde deu prosseguimento aos estudos. De volta ao Brasil, deparou-se com o início da Bossa Nova, movimento capitaneado por João Gilberto e Tom Jobim, e travou amizades com Vinicius de Moraes, Carlos Lyra, Baden Powell e outros nomes ligados ao movimento. Em 1969, ele se casou com a cantora Olívia Hime, com quem compôs “Lua de Cetim”, gravada por Leila Pinheiro, em 1983…

“Preguiça” (MPB, 1987) – Gonzaguinha
Por trás da expressão carrancuda, do semblante de poucos amigos e da barba que escondia a chance de um sorriso mais largo, havia um coração pronto a explodir do menino que desceu o São Carlos para colocar o dedo na ferida dos problemas sociais e afetivos de mulheres e homens. Filho do Rei do Baião, da dançarina Odaléia e da música brasileira que acolheu com tamanha propriedade, a cara de Gonzaguinha era a de um Brasil que não se entrega e não deixa de apontar as mazelas que atingem as suas pessoas. Em 1987, Gonzaguinha compôs, com uma linguagem carregada de erotismo, a canção “Preguiça”, gravada pelo amigo Fagner em “Romance no Deserto”.

“Cada Tempo em Seu Lugar” (MPB, 1989) – Gilberto Gil
Useiro e vezeiro em misturar influências, ritmos e estilos, tropicalista por vocação, baiano de nascimento e brasileiro até a espinha, Gilberto Gil é dos compositores mais ouvidos e repetidos por bocas e becos e lonas, e para isso há motivo mais do que consistente. Na música “Cada Tempo em Seu Lugar”, de 1989, Gilberto Gil resgata ditos populares, como “a pressa é inimiga da perfeição”, e reverencia Dorival Caymmi (1914-2008), de quem teria recebido um sábio conselho, ao brincar com a ambiguidade sonora contida na palavra “divagar”, sinônimo de entregar-se aos pensamentos sem uma perspectiva pragmática, apreciando a delícia do instante. Nada mais apropriado…

“Deixa o Verão” (MPB, 2003) – Rodrigo Amarante
Depois de um primeiro disco baseado no hard core, o grupo carioca Los Hermanos, formado por estudantes que se conheceram nos cursos da PUC, foi, pouco a pouco, virando suas atenções para a MPB, com um acento característico que os identificava e acentuava a melancolia das letras. “Ventura”, terceiro disco da trupe, é, para muitos, o ápice dessa trajetória. Lançado em 2003, o álbum apresenta “Deixa o Verão”, elogio à preguiça na estação mais quente do ano, feita por Rodrigo Amarante. “Deixa eu decidir se é cedo ou tarde/ Espera eu considerar/ Vê se eu vou assim chique-à-vontade/ Qual o tom do lugar…”, delineiam os versos, sombreados por essa voz que é mansa e mole.

*Bônus
“Porto-poema” (samba, 2023) – Raphael Vidigal Aroeira e Marcos Frederico
O inesperado acendeu a canção “Porto-poema”, que nasceu com outro nome, e andamento diferente. O mundo estava sob uma pandemia quando o jornalista e poeta Raphael Vidigal Aroeira recebeu do músico e habilidoso instrumentista Marcos Frederico uma melodia para colocar letra. O verso que a intitulou foi um dos últimos a vir à tona. A melodia também se modificou plenamente, agora impulsionada por um esperançar dos novos tempos, de uma nova estrela a brilhar no horizonte, com um sentimento de gratidão ao mundo e de perdão pelas dificuldades atravessadas neste caminho. “Hoje a vida me dá bem mais…”, diz o bonito verso que encerra o poema, em forma de canção.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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