*por Raphael Vidigal Aroeira
“A ditadura é um costume da infâmia: uma máquina que te faz surdo e mudo, incapaz de escutar, impotente para dizer e cego para o que está proibido olhar” Eduardo Galeano
No dia 1º de abril de 1964, um golpe militar derrubou o então presidente do Brasil, João Goulart, e instaurou uma tenebrosa e perversa ditadura que, durante 21 anos, torturou, exilou e matou os seus cidadãos. Sob uma forte influência da propaganda norte-americana e do plano de expansão do seu domínio nos países da América Latina, o golpe ganhou apoio de parte da população brasileira que, temendo um regime comunista, participou de passeatas como a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”.
Por mais que a censura, os atos institucionais, o desrespeito à vida e à Constituição se propalasse, artistas e pessoas comuns resistiram e pagaram com sangue, suor e lágrimas para ter de volta o direito de se expressar e viver com dignidade. Chico Buarque, João do Vale, Zé Kéti, Aldir Blanc, João Bosco, Gonzaguinha, Geraldo Vandré, Paulinho da Viola e outros criaram canções que foram eternizadas nas vozes marcantes de Elis Regina, Gal Costa, Simone, Tony Tornado, cantadas pelo povo e para o povo, perpetuando o sentido da arte, o da libertação. Em 2014, a então presidenta Dilma Rousseff, do PT, instaurou a “Comissão da Verdade” para investigar e punir os crimes dos militares.
“Carcará” (canção, 1964) – João do Vale e José Cândido
Um ano após o início da ditadura militar no Brasil os movimentos artísticos já se organizavam para protestar contra tal violência. Escrito por Paulo Pontes, Ferreira Gullar, Armando Costa e Oduvaldo Viana Filho, com direção de Augusto Boal, o espetáculo “Opinião” foi um marco da resistência do período. Um dos participantes, João do Vale, era um maranhense de Pedreiras, cuja árida experiência no sertão o credenciava a encarnar o nordestino com todas as suas revoltas e medos.
O tom autobiográfico do relato de João, presente na música como um todo, se acentua quando índices de desigualdade social no nordeste são lidos de forma enérgica por Maria Bethânia, que, com gesto e entonação agressiva, dá vida ao “Carcará”, pássaro-título conhecido por sua força e implacabilidade. Fora isso, Ney Matogrosso declarou mais tarde que a interpretação masculina de Bethânia à ocasião foi o primeiro ato cênico de homossexualidade na história da música brasileira.
“Opinião” (samba, 1964) – Zé Kéti
No mesmo espetáculo, “Opinião”, outro personagem importante era o sambista morador das favelas do Rio de Janeiro, vivido por Zé Kéti. O motivo realista da trama foi o que levou os idealizadores a escolherem intérpretes que pudessem levar para os palcos acontecimentos por quais, de fato, passaram.
A música escolhida para dar nome ao espetáculo foi composta por Zé Kéti, cujo ativismo social e político se espalha por diversas músicas, mas que ficou marcado, em especial, no samba “Opinião”, muito devido aos contestadores e decididos versos: “Podem me prender/Podem me bater/Podem até, deixar-me sem comer/Que eu não mudo de opinião…”.
A música foi gravada por Nara Leão, musa da bossa nova que, antes de Maria Bethânia, fechava a tríade do projeto, no papel da mocinha da zona sul. Com a troca a personagem obviamente ganhou ares mais ásperos. Dali para frente a irmã de Caetano Veloso se consagraria no estilo declamatório e teatral.
“Perseguição” (canção, 1964) – Sérgio Ricardo e Glauber Rocha
A força de “Perseguição” se faz presente até os dias atuais, ao ter o seu sentido renovado em “Piedade” (2020), o mais novo filme de Cláudio Assis. “Se entrega, Corisco!/ Eu não me entrego, não!/ Não me entrego ao tenente/ Não me entrego ao capitão/ Eu me entrego só na morte/ De parabelo na mão”, entoa um dos protagonistas. Da mesma maneira, “Bacurau” (2019), de Kleber Mendonça Filho, recuperou “Bichos da Noite”, editada originalmente no LP “A Grande Música de Sérgio Ricardo” (1967), com ilustrações de Ziraldo no encarte e feita para a peça “O Coronel de Macambira”, de Joaquim Cardozo (1897-1978). “Perseguição” foi regravada pela intérprete paulista Cida Moreira.
“Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores” (rasqueado, 1968) – Geraldo Vandré
Uma das canções brasileiras mais representativas de todos os tempos, “Pra não dizer que não falei das flores” já nasceu controversa. O hino contra a repressão composto pelo paraibano Geraldo Vandré, no auge da ditadura militar no Brasil, em 1968, insuflou os espectadores presentes ao Maracanãzinho no III Festival Internacional da Canção e despertou a ira dos militares.
O público aplaudiu com volúpia e intensidade e exigiu que a música, na definição do autor “um rasqueado de beira de praia”, vencesse o concurso. No entanto, o júri resolveu premiar “Sabiá”, de Tom Jobim e Chico Buarque, que foi incessantemente vaiada após o anúncio. Definida pelo general Luís de França Oliveira, secretário de Segurança da Guanabara, como “subversiva e com cadência do tipo Mao Tsé-Tung”, referência ao líder da ditadura comunista na China, a canção que rendeu a Vandré sucesso e adoração popular foi também artifício para exilá-lo no Chile e, em seguida, abandonar a carreira.
“Hoje” (canção, 1968) – Taiguara
Filho do bandoneonista gaúcho Ubirajara Silva e da cantora uruguaia Olga Chalar, o cantor Taiguara nasceu em Montevidéu, no Uruguai, no dia 9 de outubro de 1945, quando seus pais realizavam uma temporada de espetáculos no país sul-americano. Radicado no Brasil, Taiguara chegou a ser considerado o compositor mais censurado pela ditadura militar, que perdurou de 1964 a 1985, com 68 canções proibidas. Ao lado de artistas como Sérgio Ricardo e Gonzaguinha, ele jamais abandonou a militância política ligada à esquerda.
Em 1968, Taiguara venceu o Festival Universitário de MPB, com a música “Helena, Helena, Helena”, e, no mesmo ano, levou o festival “Brasil Canta no Rio”, com “Modinha”. Outro de seus sucessos foi “Hoje”, utilizada na trilha sonora do filme “Aquarius”, de Kleber Mendonça Filho. Taiguara morreu em 1996, aos 50 anos, vítima de câncer na bexiga. Entre seus sucessos também estão “Universo no Teu Corpo”, “Teu Sonho Não Acabou” e “Estrada Estreita”.
“É Proibido Proibir” (tropicália, 1968) – Caetano Veloso
O projeto tropicalista liderado, no âmbito musical, por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Os Mutantes, e outros, tinha a pretensão literal e ambiciosa de criar uma cultura tipicamente brasileira a partir da mistura e da influência que viriam de todas as partes do mundo, no processo que se considerou chamar de “antropofágico”.
Caetano Veloso, sempre um dos mais ousados e inquietos artistas nacionais, enfrentava a crítica tanto da direita, por seu desprezo ao conservadorismo na utilização de vestimentas e gestos tradicionalmente femininos, e da esquerda nacionalista que urrava, entre outras coisas, contra a guitarra elétrica, por considera-la símbolo do imperialismo norte-americano e do pensamento de colônia. Sem dar trela para os limites impostos por qualquer ideologia Caetano apresentou no III Festival Internacional da Canção, em 1968, a polêmica “É Proibido Proibir” que, recebida com vaias e agressões como arremesso de frutas e verduras ganhou o adendo de um irado discurso.
“Sinal Fechado” (MPB, 1969) – Paulinho da Viola
No ano de 1969, Paulinho da Viola, que sempre bebera na fonte do samba tradicional e um dos nomes mais importantes da Escola de Samba da Portela, cujo pai foi um dos fundadores, se arriscou, de maneira discreta e inteligente, a cutucar com vara curta a onça da ditadura. Não foi só isto. Paulinho também se embrenhava, pela primeira e raríssima vez no campo da MPB e da moderna música brasileira, caminho aberto por artistas de vanguarda como Caetano Veloso e Gilberto Gil, em quem o autor confessa ter se inspirado.
A letra relata um encontro angustiante no trânsito, seguida por melodia que reproduz o sentimento de tensão. O expressivo título retrata com precisão o ambiente e clima vividos pelos brasileiros nos anos do regime militar. “Sinal fechado” serviu ainda de título para disco de Chico Buarque lançado em 1974, quando, perseguido pela ditadura, foi obrigado a gravar somente músicas alheias. Para maior surpresa, a música foi vencedora do V Festival de MPB da Record.
“Apesar de Você” (samba, 1970) – Chico Buarque
Exilado na França Chico Buarque retornou ao Brasil em 1970, após mais de um ano. Incentivado pelo dono de sua gravadora, André Midani, que garantia a melhora da situação, Chico se decepcionou ao constatar o verdadeiro cenário. Para expressar sua indignação e esperança compôs o samba “Apesar de você”, no qual mandava diretos recados, como: “Você vai pagar e é dobrado/Cada lágrima rolada/Nesse meu penar…”. Incrivelmente os censores não captaram a mensagem, e caíram na ladainha de uma “briga de amantes”.
Quando a canção estourou nas rádios, a população, bem mais esperta e atenta, logo a tomou nos braços e entoou em toda parte. Os militares tardiamente descobriram do que se tratava e então proibiram a execução da música e destruíram os discos, mas se esqueceram da matriz, o que permitiu a reedição original ao término do regime autoritário. A partir dessa data, o cerco da censura a Chico Buarque se fechava, mas ele ainda driblava.
“BR-3” (soul, 1970) – Antônio Adolfo e Tibério Gaspar
A inclusão da música “BR-3”, um soul de 1970 de Antônio Adolfo e Tibério Gaspar, no rol daquelas que marcaram o período de contestação à ditadura militar no Brasil, está muito mais ligada à postura de seu intérprete do que propriamente à letra. Tony Tornado estourou nos palcos naquele mesmo ano e, acompanhado pelo Trio Ternura, transformou a canção em um símbolo não apenas da música, mas do movimento negro no país.
Apresentada no V Festival Internacional da Canção, logo arrebatou o público, que se detinha muito mais na figura imponente e vigorosa de Tony do que em seus atributos como cantor. Expressando-se através das gírias e da dança dos negros norte-americanos o intérprete estabeleceu um confronto com todos aqueles que insistiam no preconceito e iam contra as liberdades individuais e coletivas. Dois anos depois, ele seria preso pelo regime, ao repetir no palco, num show de Elis Regina, a saudação dos “Panteras Negras”, movimento de origem marxista.
“Vapor Barato” (tropicalista, 1971) – Jards Macalé e Wally Salomão
Aquela geração ameaçada e violentada pela ditadura não se dobrou à tirania e truculência dos militares e encontrou, na experimentação de drogas proibidas e alucinógenas e na prática do sexo livre e desprovido do sentimento de posse, formas de resistir aos dramáticos tempos de chumbo. É dessa vivência que fala a música de Jards Macalé e Wally Salomão, dois dos artistas mais inventivos e originais do Brasil, em “Vapor barato”, cujo título é uma alusão à maconha.
A desilusão com o momento também é refletida nos primeiros versos, com referência direta e corajosa ao “casaco de general cheio de anéis”, naquilo que os dois autores denominaram como “morbeza romântica”, uma maneira over de escrever canções modernas seguindo a tradição brasileira no gênero. No entanto, embora Macalé e Wally jamais tenham se assumido desta forma, a canção ganhou contornos tropicalistas na interpretação consagradora de Gal Costa, no histórico show “FA-TAL – Gal a Todo Vapor”, dirigido por Salomão.
“Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua” (marcha-rancho, 1972) – Sérgio Sampaio
Com ritmo alegre e dolente a marcha-rancho “Eu quero é botar meu bloco na rua”, de 1972, carrega contrastes em todo andamento. Lançada pelo autor Sérgio Sampaio no VII Festival Internacional da Canção, e finalista do concurso, a música tornou-se emblemática não só pela letra ácida e contestadora, mas, talvez principalmente, em razão do desempenho de Sampaio no palco que, entre outras coisas, simulou um ato sexual com seu violão enquanto cantava: “Eu quero é botar meu bloco na rua/Brincar, botar pra gemer…”.
Autobiográfica, balizada em versos imprecisos e debochados, a canção anuncia pontos importantes da liberdade sexual que aquela geração almejava. Regravada muitas vezes depois, sempre por nomes ligados à rebeldia e irreverência, como Maria Alcina, a canção nunca perdeu o sentido ou saiu de moda. Prova que o bloco de Sérgio Sampaio ia muito além da luta contra qualquer ditadura, era, sobretudo, um brado de libertação.
“Pesadelo” (samba, 1972) – Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro
No dicionário, “pasquim” significa “jornal difamador, folheto injurioso”, e foi por esse motivo que o cartunista Jaguar sugeriu o nome para batizar o semanário fundado em junho de 1969, do qual ele faria parte ao lado de nomes como Ziraldo, Tarso de Castro, Millôr Fernandes e Sérgio Cabral, pai do ex-governador do Rio de Janeiro, preso desde 2016. A ideia de Jaguar era se defender antecipadamente de prováveis críticas, além da evidente ironia. Para a história, “O Pasquim” se transformou num dos principais ícones da resistência à ditadura militar, aliando humor, política, crítica social e de costumes, e passou a ser sinônimo de uma imprensa livre e independente.
Durante um período, a trupe pôde contar ainda com o auxílio luxuoso de Paulo César Pinheiro, letrista que colecionava parceiros tão diversos como João Nogueira e Baden Powell. Numa das músicas mais incisivas escritas contra a ditadura no país, Paulo César Pinheiro afirmava em “Pesadelo” (parceria com Maurício Tapajós): “Você corta um verso/ eu escrevo outro/ você me prende vivo, eu escapo morto/ de repente olha eu de novo/perturbando a paz, exigindo troco”.
“Comportamento Geral” (MPB, 1973) – Gonzaguinha
O inconformismo de Gonzaguinha já denunciava, logo no primeiro disco, o peso de suas “canções de protesto”. Identificado como “compositor-rancor” por críticos e detratores de sua obra, o filho de Luiz Gonzaga, que no início da carreira ainda assinava Luiz Gonzaga Júnior, nunca aceitou a mediocridade, fosse política, social, de gênero e, principalmente, de felicidade. Basta dar uma rápida olhada em seu vasto e complexo repertório para perceber como o autor de canções sensíveis e perspicazes busca retratar o sexo, a desilusão, as relações afetivas e de trabalho com um aguçado senso de justiça e grandeza.
É valendo-se da habilidosa ironia que o calo da vida no morro de São Carlos e a ausência do aclamado pai lhe deram, que Gonzaguinha extirpa uma a uma todas as hipocrisias perpetradas através dos anos pelo costume, a tradição e a intolerância da raça humana com o seu semelhante, na brilhante e ousada letra de “Comportamento geral”, lançada em 1973 como um dardo afiado, no alvo.
“Jorge Maravilha” (samba, 1973) – Chico Buarque
Perseguido pela censura Chico Buarque recorreu, em 1973, a um de seus truques. Ao criar o pseudônimo Julinho da Adelaide ele conseguiu incluir canções de sua autoria no álbum “Sinal fechado”, idealizado para ser composto apenas com músicas alheias. O show “O Banquete dos Mendigos” foi uma estratégia do irreverente Jards Macalé para “arrecadar doações” para si e homenagear os 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma farpa no âmago da ditadura, em total dissonância com os propósitos do documento da ONU.
Participaram, dentre outros, artistas como Jorge Mautner, Raul Seixas, Paulinho da Viola, Luiz Melodia e, claro, Chico Buarque. Transformada depois em álbum, Chico registrou na histórica apresentação o samba “Jorge Maravilha”, numa das mais irônicas cutucadas no regime, que atingia diretamente o seu ditador. Os versos “você não gosta de mim, mas a sua filha gosta”, eram o melhor do desprezo que Chico poderia oferecer a Ernesto Geisel, cuja filha era fã do compositor de olhos claros.
“Como Nossos Pais” (MPB, 1976) – Belchior
Elis Regina, embora identificada noutro momento com a tradição da canção brasileira, gostava de pinçar novos compositores e descobrir músicas novas, cheias de frescor e prontas para serem trabalhadas e recriadas pela intérprete, aclamada como a maior cantora do Brasil em todos os tempos. Numa dessas procuras foi que ela descobriu Belchior, vindo de Sobral, no interior do Ceará, e deparando-se com as dificuldades e asperezas da cidade grande.
O relato verborrágico e narrativo do compositor, que se cristalizaria como marca registrada ao longo dos anos, pegou de jeito não só a intérprete como multidões de todas as idades que repetiam inflamados os versos de inconformidade e desalento presentes na moderna elegia de Belchior. “Como nossos pais” ganhou prestígio imediato em todo o território nacional por seu poder de identificação, centrado na simplicidade do tema, salpicado de máximas e frases precisas.
“Cálice” (MPB, 1978) – Gilberto Gil e Chico Buarque
O tema religioso perpassa toda a estrutura da música “Cálice”. Composta numa Sexta-Feira da Paixão, a lembrança do martírio de Cristo inspirou Gilberto Gil a identifica-lo com a situação vivida pelos brasileiros no auge da ditadura militar no país. A melodia, também de memória sacra, acompanha os versos que falam da “bebida amarga”, a “força bruta”, o “monstro da lagoa” e “o grito desumano”, entre outros. Todas essas imagens fortes seriam ainda coroadas com o refrão que mistura o sentido das palavras “cálice” e “cale-se” através do som.
A figura imponente de “um pai que destrói as individualidades” fez com que Gilberto Gil jamais regravasse a canção após a tentativa, censurada pelo regime, de apresenta-la em show ao lado de Chico Buarque, em 1978, quando o áudio do microfone dos dois foi cortado. Chico, por outro lado, a registrou em disco deste mesmo ano, intitulado apenas com o seu nome. Apesar de todas as tentativas dos ditadores, foram eles que se calaram, não os autores.
“Tô Voltando” (samba, 1979) – Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro
“Tô Voltando”, um samba de 1979 de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro celebra a volta pra casa do narrador que já se delicia com a lembrança dos quitutes tipicamente nacionais com os quais pretende se deliciar em breve, além, é claro, do conforto, carinho e aconchego do lar nos braços de sua amada. Interpretada por Simone, no contexto da época foi usada para festejar não apenas o encontro de um casal, mas o retorno de vários anistiados brasileiros que haviam sido exilados em outros países pelo regime ditatorial.
O ritmo pra cima, festeiro, alegre, contrastava com a situação cinza na qual o país havia emergido, mas era também uma resposta, uma maneira de resistir e provar aos mesquinhos e poderosos da exploração que não se pode tirar da pessoa aquilo que lhe é mais imprescindível, e não se conquista através de determinações, mas de um sentimento honesto e verdadeiro. Como uma cerveja gelada, uma flor perfumada e um amor inquebrantável.
“O Bêbado e a Equilibrista” (MPB, 1979) – João Bosco e Aldir Blanc
Outro compositor alçado à fama por Elis Regina foi o mineiro de Ponte Nova, João Bosco. Ele já havia se encontrado e mostrado músicas inclusive para Vinicius de Moraes, mas foi o poder de elevação do canto de Elis Regina que o colocou em definitivo no panteão da música brasileira. Além disso, João formaria, no Rio de Janeiro, uma das mais frutíferas parcerias da nossa canção, ao lado do carioquíssimo Aldir Blanc.
“O bêbado e a equilibrista” narra esse período triste com contundentes e líricas referências a vítimas da ditadura militar, como a viúva do jornalista Vladimir Herzog, torturado e enforcado nas prisões do regime, no verso que alude às “Clarisses”, e Herbert de Souza, o Betinho, identificado na letra como “o irmão do Henfil”, dois ávidos críticos e combatentes do regime, cada qual à sua maneira, o primeiro com a sociologia, o segundo com os cartuns e o jornalismo. Ainda havia espaço para lembrar Charlie Chaplin, o Carlitos, defensor dos pobres, simples e da humanidade.
“Aos Nossos Filhos” (MPB, 1980) – Ivan Lins e Vítor Martins
O engajamento levou Elis Regina a se tornar uma das primeiras personalidades a se filiar ao, à época incipiente, Partido dos Trabalhadores (PT), a ponto de criar intimidade com o ex-presidente Lula, que compareceu ao velório da artista, em 1982. “Elis e Lula eram fascinados um pelo outro. Ela falava sobre ele com animação e admiração, e vice-versa”, relata o pesquisador Renato Contente.
Ele aponta que “Elis já esboçava uma reação estética à ditadura mais consolidada, e tomou de vez o bastão da resistência a partir do espetáculo ‘Falso Brilhante’”, cujo repertório agregava “Como Nossos Pais” e “Velha Roupa Colorida”, de Belchior, “Um Por Todos”, de João Bosco e Aldir Blanc, e “Gracias a La Vida”, de Violeta Parra. Outro marco foi o espetáculo “Saudade do Brasil”, de 1980, em que Elis dava voz à melancólica e pungente “Aos Nossos Filhos”, de Ivan Lins e Vítor Martins, um tributo aos que se foram naqueles tempos de crueldade deliberada pelo Estado.
“Angélica” (toada, 1982) – Chico Buarque
Zuzu Angel era uma renomada estilista de moda no Brasil e no exterior quando, em 1971, agentes do regime militar sequestraram, torturaram, lançaram ao mar e sumiram com o corpo de seu único filho homem, Stuart Angel Jones, de apenas 26 anos, à época, envolvido em movimentos contra a ditadura. A revolta da mãe levou-a a desafiar e apontar o dedo na cara de generais em todos os tribunais aos quais teve acesso, denunciado a falácia, desumanidade, podridão e espírito macabro do regime autoritário onde o assassinato é prática comum.
A resposta grotesca e à altura da estupidez dos militares foi assassinar Zuzu, num armado e proposital acidente de carro, em 1976, quando ela tinha 54 anos. Em 1982, Chico Buarque apresentou “Angélica”, uma toada em homenagem à trajetória da mulher que procurou o filho, levado por forças do mal, mas que ela conservou para sempre em seu coração.
A vida de Zuzu Angel e o assassinato de Stuart foram transformados em filme no ano de 2006, com direção de Sérgio Rezende, Patrícia Pillar no papel da protagonista e Elke Maravilha, que foi amiga da estilista, em participação especial. O triste relato dos horrores da ditadura militar no Brasil pode ser conferido de perto, e em detalhe, nessa e em outras películas. Felizmente o abominável regime pereceu, e o que sobreviveu ao tempo foi a canção de Chico, Gil, João, Vandré, Gonzaguinha.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.