*por Raphael Vidigal Aroeira
“O contemporâneo é o intempestivo” Roland Barthes
O ano de 2021 não foi fácil pra ninguém, como costumam dizer. Pandemia, ataques à democracia e violências ambientais marcaram a passagem de um novo ciclo. O Brasil, em especial, atravessou uma das fases mais conturbadas de sua história recente. A música popular, claro, não deixou de dar o seu recado, pautada pela diversidade que determina a sua própria formação social. De velhos medalhões da MPB a novíssimos nomes da música independente, o que se viu foi uma mistura de ritmos com um discurso pronto para exaltar o seu poder de luta e a defesa de valores inegociáveis, como o respeito às liberdades. Abram as alas para Caetano, Ney, Naroca, Juliana Linhares e mais. Eis aqui uma retrospectiva, com músicas representativas desse Brasil de 2021.
“Não Vou Deixar” (MPB, 2021) – Caetano Veloso
Caetano Veloso voltou ao disco após quase uma década longe de um trabalho de inéditas. O tom adotado foi iminentemente político, o que não assustou ninguém que conhece a trajetória do bardo tropicalista, sempre embrenhado nas questões da formação sociocultural do Brasil. Intitulado “Meu Coco”, o álbum trouxe uma lavra de inéditas que homenageou parceiros de longa data como Gil, Milton Nascimento e Gal, além de prestar reverência a talentos da nova geração como Marília Mendonça, Gloria Groove e Pretinho da Serrinha. “Não Vou Deixar” se apresentou como a faixa mais incisiva, com um clipe impagável em que Caetano, através de expressões faciais, revela sentimentos.
“Unidos e Misturados” (samba, 2021) – Martinho da Vila, Zé Katimba e Tuninho Professor
Martinho da Vila prepara um disco de inéditas, que deverá se chamar “Mistura Homogênea”. Seguindo a nova regra do mercado, ele resolveu disponibilizar alguns compactos para já deixar os fãs com aquele gostinho de água na boca. Foi o caso de “Era de Aquarius”, com o rapper Djonga, e “Vidas Negras Importam”, parceria com Noca da Portela. Como se constata, as discussões políticas estão no centro da roda do sambista. “Unidos e Misturados”, samba feito com Zé Katimba e Tuninho Professor, não deixa por menos. Interpretado ao lado da comadre Teresa Cristina, uma das artistas que mais se posiciona atualmente, Martinho dá as suas cutucadas no atraso com a habitual elegância.
“2 de Junho” (MPB, 2020) – Adriana Calcanhotto
A frase te pega pela garganta. “País negro e racista” cabe melhor à bandeira verde-amarela do que o “ordem e progresso” que a estampa hoje, abolindo o princípio do lema formulado por Auguste Comte que Noel Rosa poetizou. Tergiversações à parte, a voz ainda encorpada de Maria Bethânia segue vibrando como um metal que é despertado por um leve toque: “País negro e racista”. O que vem depois é bem pior, mais aterrador, pois nos lembra de que essa inscrição, gravada com ferro em brasa no corpo dos escravos, representa a morte de uma criança negra, que Adriana Calcanhotto, autora da discursiva letra, compara a Ícaro, aquele do mito grego que morre ao se aproximar do Sol.
“Black Power” (samba rap, 2021) – Renegado, Umberto Tavares e Jefferson Júnior
“Renegado é um presente de Deus, que a gente ganha não sabe como, mas merece”, exalta Elza Soares. Em 2020, a dupla colocou na praça o clipe de “Negão Negra”, parceria do rapper com Gabriel Moura. As imagens trazem cenas impactantes e palavras de ordem. Surgem, depois, notícias de jornais escabrosas: “Exército dispara 80 tiros em carro de família no Rio e mata músico”. “Tiro que matou Eduardo no Alemão partiu de PM, mas nenhum é indiciado”. “Assassinatos de negros no país crescem 29% enquanto de brancos caem 25%”. Na mesma toada de combate ao racismo, Renegado e Elza lançaram, em 2021, o samba rap “Black Power” com mais um clipe de impacto.
“Nu com a Minha Música” (MPB, 1981) – Caetano Veloso
Em 1981, Caetano Veloso lançou o disco “Outras Palavras”, com músicas como “Lua e Estrela”, de Vinícius Cantuária, “Verdura”, de Paulo Leminski, “Jeito de Corpo” e “Rapte-me Camaleoa”. Também se destacava nesse repertório a delicada “Nu com a Minha Música”, anos depois regravada por Marisa Monte e Rodrigo Amarante. Em 2021, ao completar 80 anos, Ney Matogrosso escolheu a música para intitular o seu álbum comemorativo. Embora localizada em outro tempo e espaço, ela se adequou perfeitamente ao Brasil e à humanidade de agora, renovando o recado. “Vejo uma trilha clara pro meu Brasil, apesar da dor”, canta Ney, e que ainda cita os “operários do ABC”.
“Você Rainha” (MPB, 2021) – Zélia Duncan e Juliano Holanda
Inquieta, a carioca Zélia Duncan homenageou dois vanguardistas paulistas: Itamar Assumpção (1949-2003), em “Tudo Esclarecido” (2012); e Luiz Tatit, com “Totatiando” (2013); e também prestou tributo à obra não menos singular de Milton Nascimento, na parceria com o violoncelista Jaques Morelenbaum, que resultou no álbum “Invento +” (2017). Para completar, colocou na praça uma coleção de sambas, com “Antes do Mundo Acabar” (2015), a exemplo do que Adriana Calcanhotto havia feito em 2011. Em 2021, num cenário de pandemia, lançou “Pelespírito”, em que apresentou parcerias sensíveis com Juliano Holanda, como “Você Rainha”, uma ode de solidariedade às mulheres.
“Coco Taxi” (mambo, 2021) – João Donato e Jards Macalé
João Donato e Jards Macalé estão entre os mais inclassificáveis compositores da música brasileira, com uma obra absolutamente autoral e inconfundível. Em 2021, eles resolveram unir as personalidades irreverentes e lançaram o álbum “Síntese do Lance”, protagonizado pela dupla, que aparece nua na capa, protegida apenas pela folhagem. “Coco Taxi”, composto por Macalé e Donato, é um mambo que revolve os ares de Cuba, inspirado no conhecido meio de transporte utilizado pelos turistas na ilha, que costuma ser bastante inseguro. Em meio a um cenário de trevas e opressões, esses dois coringas da MPB vêm nos lembrar de que alegria e rebeldia são armas para revolucionar a vida.
“Eu Quero É Botar Meu Bloco na Rua” (marcha-rancho, 1972) – Sérgio Sampaio
Com sua “loucura lúcida”, como disse Lygia Fagundes Telles sobre o escritor Caio Fernando Abreu, o músico capixaba Sérgio Sampaio criou uma das mais emblemáticas canções de Carnaval de todos os tempos. Em meio à ditadura militar que se instaurara no Brasil, o compositor, tido por muitos como “maldito”, dá uma aura lamentosa à festa popular mais famosa do país, ao entoar versos confessionais em tom melancólico, emendando logo na sequência o refrão esperançoso que garantiu o sucesso da canção: “Eu quero é botar meu bloco na rua, brincar, botar pra gemer…”. Tudo é emblemático na regravação com pegada roqueira de Lobão, que revê as próprias cicatrizes ao longo da melodia.
“Velha Roupa Colorida” (MPB, 1976) – Belchior
Censura. Tortura. Perseguição. Assassinato. Violências patrocinadas pelo Estado. Esse era o Brasil de 1976, quando Elis Regina cantou “Velha Roupa Colorida”, futuro e imediato clássico de Belchior, que também a gravou naquele ano, no LP “Alucinação”. O que aconteceu de lá pra cá levou Ney Matogrosso e Sandra Pêra – ex-integrante das Frenéticas e irmã da atriz Marília Pêra, falecida em 2015 –, a lançarem um videoclipe com a canção, parte integrante do álbum que Sandra dedica a Belchior. Como vaticinou o cada vez mais temido comunista alemão Karl Marx, “a História, primeiro, se repete como tragédia e, depois, como farsa”. É preciso fazer mudanças no armário de novo.
“Ou Você Me Come ou Você Cai Fora” (funk, 2020) – Julio Secchin
A sanha da mídia em rotular tudo levou o estilo do carioca Julio Secchin a ser denominado “funk pelúcia”, pela suavidade impregnada às melodias de um gênero usualmente conhecido pela batida furiosa. “Jovem”, lançado em 2019, disparou o primeiro dardo de sua fama. Ali, já comparecia a cantora Rebeca, que volta a dividir os vocais, com o compositor, na atrevida e descarada “Ou Você Me Come ou Você Cai Fora”, composta em 2020, mas que se tornou febre já em 2021, e tem muito a dizer sobre um período da história em que os avanços na área dos costumes e da liberação corporal sofrem vários ataques. A música de Julio chamou atenção até de Claudia Leitte, com quem ele cantou.
“Não Ama Nada” (pop, 2021) – Jade Baraldo, June e Lucs Romero
Em 2017, Jade Baraldo colocou na praça o seu single de estreia. “Brasa”, com produção do francês Damien Seth, consolidou-se como um sucesso viral ao alcançar, em poucas semanas, o topo do Spotify. Autoral, a música popularizou o contundente refrão: “Vadia, louca, depravada/ Te quero na cama, na rua/ No carro, na escada/ Lambe, esfria, bate, esquenta/ Eu quero, agora aguenta”. “Várias coisas me inspiram a compor: fenômenos da natureza, acontecimentos da vida, questões pessoais, intrigas internas”, enumera ela. Agora, em 2021, o clipe com pegada pop que vem provocando burburinho é “Não Ama Nada”, que, além da autoafirmação, traz um verso simbólico: “Morro e nasço de novo”.
“Frivião” (frevo, 2021) – Juliana Linhares e Rafael Barbosa de Araújo
A cantora e compositora Juliana Linhares, da banda Pietá, lançou, em 2021, “Nordeste Ficção”, o seu primeiro disco solo, em que apresenta parcerias com Zeca Baleiro, Chico César e nomes de sua geração, e também regrava as clássicas “Tareco e Mariola” e “Bolero de Isabel”, além de cantar, com Letrux, a irônica “Aburguesar”, canção escrita por Tom Zé em 1972, que permaneceu inédita. Nascida em Natal, no Rio Grande do Norte, a potiguar aproveita o disco para questionar os estereótipos em torno da população nordestina. O frevo “Frivião”, parceria com Rafael Barbosa de Araújo, não poupa munição contra os tipos caricaturais e grotescos que se apossaram do Brasil nos últimos anos.
“Tempos Sombrios” (MPB, 2021) – Naroca
Nara Torres, a DJ Naroca, atua como percussionista e professora de música em Belo Horizonte desde 2011, e prefere a união à dissolução na hora de opinar sobre o que seria um músico profissional e um amador. “Pensar que uma palavra envolve ‘profissão’, a outra, envolve ‘amor’, e nosso trabalho envolve as duas”, sentencia. Idealizadora do bloco feminista Sagrada Profana, a artista estreou em disco-solo nesse ano de 2021 com “Meridiana”, em que passou a assinar apenas como Naroca. O repertório traz uma safra autoral inspirada e que intensifica os ideais da compositora, como a envolvente “Amor de Carnaval”. Outro destaque é “Tempos Sombrios”, recado direto aos caretas.
“A Nobreza do Não” (MPB, 2021) – Arthur Nogueira
Cantora, atriz e pianista, a paulistana Cida Moreira é conhecida como “A Dama Indigna” da canção brasileira. “Está em curso um extermínio cultural no Brasil, em todos os sentidos, lugares, Estados e cidades”, aponta a intérprete, que se mostra disposta a lutar por sua causa. “A palavra ‘resistir’ é muito bonita no Facebook, mas a vida cotidiana de um artista é bem mais difícil. Nós, que sempre propusemos a arte como caminho, queremos continuar existindo”, diz. Em 2021, ao completar 70 anos, Cida Moreira ganhou de presente do jovem compositor paraense Arthur Nogueira, um dos destaques da nova geração, a linda música “A Nobreza do Não”, flecha afiada em direção ao futuro do Brasil…
“Sobreviver” (valsa, 2021) – Dante Ozzetti
Luiz Tatit e Dante Ozzetti, dois expoentes da chamada Vanguarda Paulista, são parceiros de longa data. Em 2001, Virgínia Rosa gravou “Vão”, música que volta à baila duas décadas depois, no álbum em que os dois compositores dividem para celebrar 25 anos de amizade dentro e fora das melodias. “Abre a Cortina” apresenta a habitualmente inspirada safra dessa dupla perspicaz de costureiros da canção, que manobra como poucos as nuances das notas e das palavras. É um encontro que faz jus à grandiosidade do movimento revolucionário que permitiu ao Rumo se tornar um dos grupos mais relevantes da MPB. Ná Ozzetti, que pertenceu à trupe, dá voz à comovente “Sobreviver”…
“Arco-Íris” (MPB, 2021) – Ed Nasque e Raphael Vidigal
A delicadeza permeia todo o repertório de “Interior”, álbum de estreia de Ed Nasque, mineiro de Belo Horizonte que se mudou para Ouro Preto para cursar Música e realizar um sonho. A atmosfera de sonho, embora com pés fincados na realidade, aqui se concentra na transição entre mar e montanha, imagens recorrentes nas letras do trabalho. Agora chega a parte que me cabe. Antes da pandemia, Ed me convidou para escrever a letra de uma melodia que ele compôs. Mas o letrista não é dono das palavras, ele só as escava de dentro das notas. Portanto, tudo que digo em “Arco-Íris” já estava lá, escondido nesse interior sonoro que Ed revela a todos e a todas nós. A esperança está de volta.
“Ressurreições” (tropicalista, 2006) – Jorge Mautner e Nelson Jacobina
“Nelson Jacobina começou a trabalhar comigo aos 16 anos. Quando ele teve câncer, o methadone e uma outra medicina que custava muito dinheiro não acabavam com suas dores. Isso só acontecia quando ele tocava violão. Nunca vi nada tão impressionante”, conta Jorge Mautner. “A falta que sinto dele é absoluta, mas sempre converso com ele, seja acordado ou dormindo. Eu acredito na ressurreição dos mortos, porque sigo Jesus de Nazaré e também São Paulo”, completa. A dupla compôs, em 2006, “Ressurreições”, lançada no álbum “Revirão”, de Mautner. Tempos depois, em 2021, Cecília Beraba volta a esta canção e garante a ela um suingue novo que preserva a força da poética.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.