*por Raphael Vidigal Aroeira
“Nomes de nomes
Como Scarlet Moon de Chevalier
Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
E Maria da Fé
E Arrigo Barnabé” Caetano Veloso
Permeada por tradições, a música popular brasileira construiu outra ao longo dos anos, desde suas origens: a de homenagear artistas que a integram. Foi assim com Noel Rosa, Wilson Baptista e Geraldo Pereira, precursores do samba cantados em verso e prosa por João Nogueira, e com Ciro Monteiro, intérprete tarimbado que recebeu uma invectiva cheia de ironia e afeto de Chico Buarque, numa pendenga entre o tricolor fluminense e o flamenguista. Estrelas como Elza Soares, Rita Lee e Cássia Eller tiveram canções batizadas com o próprio nome, e por aí vai, sempre entoando, a MPB.
“Wilson, Geraldo e Noel” (samba, 1977) – João Nogueira
Filho do violonista e advogado João Batista Nogueira, conhecido como Mestre, o cantor João Nogueira cresceu em um ambiente musical, já que sua irmã, Gisa, também compunha. Foi com ela, aliás, que ele estreou no ofício que o levaria a ser gravado por Eliana Pittman (“Das 200 pra Lá”), Clara Nunes (“Meu Lema”) e Elizeth Cardoso (“Corrente de Aço”), a quem ele agradeceria o batismo musical na faixa “Wilson, Geraldo e Noel”, preciosidade em que presta reverência a Wilson Batista (1913-1968), Geraldo Pereira (1918-1955) e Noel Rosa, que deu nome ao disco homônimo de 1981. De cada um deles, João registraria ao menos uma canção emblemática: “Louco (Ela É Seu Mundo)”, “Bolinha de Papel” e “Gago Apaixonado”, respectivamente. Um sucesso!
“Ilmo Sr. Ciro Monteiro ou Receita pra Virar Casaca de Neném” (samba, 1970) – Chico Buarque
Em 1965, Vinicius de Moraes e Baden Powell, dupla que fomentou os indispensáveis afro-sambas, se juntaram para compor um disco em homenagem a Ciro Monteiro, um dos grandes cantores de samba do país, com divisão rítmica e dicção únicas. O resultado foi “De Vinicius e Baden Especialmente para Ciro Monteiro”. Cinco anos depois, em 1970, Chico Buarque respondia ao intérprete conhecido entre os amigos íntimos como “Formigão”, com uma invectiva pra lá de saborosa, em que combinava ironia e afeto ao transformar o presente do flamenguista em agrado para um bebê filho do tricolor ilustre que Chico Buarque sempre foi. Assim nasceu o samba “Ilmo Sr. Ciro Monteiro ou Receita pra Virar Casaca de Neném”, de título extenso e composição ágil.
“Sanfona Branca” (canção, 1975) – Benito Di Paula
A marca de Benito Di Paula está impressa em músicas da tarimba de “Como Dizia o Mestre”, uma homenagem a Ataulfo Alves, de quem sempre foi fã. “É, acaba a valentia de um homem/ Quando a mulher que ele ama vai embora/ É, tanta coisa muda nessa hora/ Que o mais valente dos homens chora”, ensina Benito, com a simplicidade da linguagem direta que não dispensa a precisão. O recado é tão claro quanto desconcertante, e abala as estruturas do machismo. Uma versão singular foi gravada por Fernanda Takai, dada a suavidade da voz, o que gerou novos contornos à letra. As saudações atingiram Luiz Gonzaga, em “Sanfona Branca”, canção gravada por Benito em 1975, e a mulher brasileira, na faixa-homônima. Nenhuma dessas, porém, ficou tão marcante como “Charlie Brown”, um sucesso de 1975, que segue fascinando gerações.
“Uma Saudade (Ao Meu Xará)” (choro, 2016) – Waldir Silva, Raphael Vidigal e André Figueiredo
Depois de gravar discos instrumentais de choro e bolero, Waldir Silva foi homenageado em 2016, com o disco “Waldir Silva em Letra & Música”, quando suas melodias ganharam letra. “Uma Saudade: Ao Meu Xará” é uma homenagem de Waldir Silva a Waldir Azevedo, outro craque do cavaquinho, que ganhou a interpretação da cantora Natália Sandim, com letra composta por Raphael Vidigal Aroeira e André Figueiredo. Ao longo da composição, são referidos diversos sucessos do cavaquinista que o inspirou, como “Brasileirinho”, “Pedacinhos do Céu”, “Minhas Mãos, Meu Cavaquinho”, dentre outras, que não passam incólumes pelos conhecedores e amantes do chorinho.
“Ouvi Dolores” (samba-canção, 2024) – Raphael Vidigal e André Figueiredo
Ao final da página, o poeta anotou os seguintes versos, que serviriam de indicações para o músico: “Samba-canção. Dor de cotovelo. Cartola. Fossa”. O samba “Ouvi Dolores” demorou cerca de 15 anos para ficar pronto. Em 2009, quando o jornalista Raphael Vidigal Aroeira entregou a letra para André Figueiredo, a melodia rapidamente foi criada ao violão. Apesar disso, o tempo para maturação se prolongou além das expectativas. Em 2024, a versão definitiva da canção ganhou o mundo. Compositor da melodia, André Figueiredo estreia soltando a voz, além de empunhar o violão, e realiza um delicado dueto com a cantora Luisa Doné, em interpretação sublime. O título de “Ouvi Dolores” alude a Dolores Duran, pioneira compositora e ícone do samba-canção.
“Um Abraço do João” (bossa nova, 2021) – Jards Macalé e Joyce Moreno
João Donato e Jards Macalé estão entre os mais inclassificáveis compositores da música brasileira, com uma obra absolutamente autoral e inconfundível. Em 2021, eles resolveram unir as personalidades irreverentes e lançaram o álbum “Síntese do Lance”, protagonizado pela dupla, que aparece nua na capa, protegida apenas pela folhagem. “Coco Taxi”, composto por Macalé e Donato, é um mambo que revolve os ares de Cuba, inspirado no conhecido meio de transporte utilizado pelos turistas na ilha, que costuma ser bastante inseguro. Em meio a um cenário de trevas e opressões, esses coringas da MPB vêm nos lembrar que alegria e rebeldia são armas para revolucionar a vida. Já a faixa “Um Abraço do João”, de Joyce e Macalé, homenageia João Gilberto.
“Rita Lee” (psicodelismo, 1969) – Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias
Rita Lee foi uma personagem da música brasileira, literalmente. Tanto que aparece em versos de Caetano Veloso, Jorge Ben Jor, Gilberto Gil, Chico Buarque, Itamar Assumpção e até Gal Costa, num raro atrevimento da cantora pelo terreno da composição. O estilo criativo e único de Rita Lee, sua tendência para a novidade e a independência diante de limites impostos respondem por parte do encanto que ela provocava, se tornando síntese de um comportamento de liberdade e libertação. Em 1969, ainda como integrante dos Mutantes, Rita aparece como compositora, ao lado de Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, da alegre canção intitulada justamente como “Rita Lee”.
“Rock’n’Raul” (rock, 2000) – Caetano Veloso
A ambiguidade é um traço da obra de Caetano Veloso, presente, inclusive, no movimento tropicalista, com todas as suas contradições. A relação do baiano com o conterrâneo Raul Seixas, por exemplo, demonstra esse tensionamento na “homenagem atravessada” que ele prestou ao Maluco Beleza com “Rock’n’Raul”, música lançada no ano 2000, em “Noites do Norte”, que mereceu uma resposta verborrágica de Lobão em defesa de Raul, com “Mano Caetano”. “Rock’n’Raul” seria regravada, mais tarde, pela cantora Maria Alcina, no disco dedicado ao repertório de Caetano, batizado “Espírito de Tudo”. Todas composições e registros de alta voltagem.
“Caetano Veloso” (tropicalista, 2017) – Arthur Dantas
Na adolescência de Johnny Hooker, um jeito de “encontrar a própria tribo” era montar uma banda de rock, e com ele não foi diferente. O artista já compunha quando, aos 16 anos, descoloriu o cabelo, pegou uma roupa emprestada da amiga e estreou num concurso ao som de Sex Pistols, Nirvana e algumas canções autorais. Ao vencer o reality show “Geleia do Rock”, comandado por Beto Lee no canal Multishow, em 2010, ele viu algumas portas serem abertas, logo escancaradas com o convite para cantar a música tema do filme “Tatuagem”, que abordava a temática LGBTQIAPN+, em 2013. Já em 2017, ele invadiu as rádios com a canção “Caetano Veloso”, obra de Arthur Dantas.
“Eu Queria Ser Cássia Eller” (balada, 1998) – Péricles Cavalcanti
O poeta Wally Salomão, compositor de preciosidades da MPB como “Mel” (parceria com Caetano Veloso que rendeu a Maria Bethânia o eterno apelido de “Abelha-Rainha” da música brasileira), dirigia o espetáculo “Veneno Antimonotonia”, em que Cássia Eller interpretava canções de Cazuza, quando pediu a Péricles Cavalcanti uma canção feita sob a medida para a gravação ao vivo, no que ele se saiu com o rock “Eu Queria Ser Cássia Eller”, lançado em 1998, no disco “Veneno Vivo”. Péricles confessa que achou que Cássia poderia se sentir constrangida ao dizer que gostaria de ser ela mesma, mas o resultado foi muito acima do esperado. A cantora logo fez da canção um “hino de fé”.
“Elza Soares” (vanguarda paulista, 2003) – Itamar Assumpção
Itamar Assumpção (1949-2003) já havia morrido quando Elza Soares colocou voz na música que ele dedicou a ela. A faixa “Elza Soares” foi gravada pela intérprete como parte da “Caixa Preta”, que reuniu os CDs inéditos “Pretobrás II e III”, completando a trilogia iniciada por Itamar com “Petrobrás I – Por Que Eu Não Pensei Nisso Antes?”, que se tornou o último disco de sua trajetória, lançado em 1998. Na época, Itamar já lutava contra um câncer de intestino que o matou em 2003, aos 53 anos. A ideia de retomar a trilogia idealizada por Itamar veio da filha, Serena, que produziu os trabalhos, com subtítulos sagazes como “Maldito Vírgula” e “Devia Ser Proibido”. Acontecimentos.
“Eu Quero Saber Quem Matou” (rock, 2003) – Rogério Skylab
Rogério Skylab tornou-se nome de alcance nacional a partir de aparições no programa de Jô Soares. Em suas músicas, Roberto Carlos, Chico Xavier, Glória Maria, Fátima Bernardes e Maria Bethânia já foram citados, quase sempre com sarcasmo. Ao mesmo tempo, Arrigo Barnabé, Jorge Mautner, Walter Franco, Chacal e Arnaldo Antunes, foram tratados com reverência. Skylab, inclusive, orgulha-se da parceria com Mautner, “Palmeira Brasileira”, do disco “Abismo e Carnaval”, e da presença de Barnabé na canção “Cântico dos Cânticos”, em SKYLAB III. Em 2003, com a canção “Eu Quero Saber Quem Matou”, Skylab desfiou o seu rosário de referências, marginais e poéticas.