De Ataulfo Alves a Leci Brandão: Ouça músicas para o Dia dos Professores

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Ensinar é um exercício de imortalidade. De alguma forma continuamos a viver naqueles cujos olhos aprenderam a ver o mundo pela magia da nossa palavra. O professor, assim, não morre jamais.” Rubem Alves

“Um professor que quer aprender”, escreve Brecht na peça “A Vida de Galileu”, de 1943. Já o diretor-teatral Antônio Abujamra repetia que “não existe ensino, existe aprendizado”. Frequentemente desvalorizada, a profissão de professor é essencial em qualquer sociedade, pois forma todas as outras. Como não poderia deixar de ser, essa figura tão especial também aparece na música brasileira, seja em forma de louvor, protesto ou sátira, desde a década de 1930, até os anos 2010. As dificuldades enfrentadas pelos mestres e a beleza de se descobrir um mundo novo surgem nas canções selecionadas, com o beneplácito de nomes como Noel Rosa, Leci Brandão, Toquinho, Ataulfo Alves.

“A.E.I.O.U.” (marcha, 1932) – Noel Rosa e Lamartine Babo
Lamartine Babo é ainda hoje tido como o grande compositor de marchinhas do país, graças a hits como “Linda Morena”, “Grau Dez”, “Hino do Carnaval Brasileiro” e “Rasguei a Minha Fantasia”, entre vários outros. Em 2017, a composição “O Teu Cabelo Não Nega” deixou de ser cantada por blocos de rua que denunciavam o caráter racista da marchinha. Mas em 1932, no auge do prestígio, ele se juntou a ninguém menos que o Poeta da Vila, em uma parceria que só podia acabar em festa. “A.E.I.O.U.” é uma marcha satírica, bem ao estilo de Noel Rosa e Lamartine Babo, que aborda o ambiente escolar. Ela foi lançada pela dupla, em um dueto impagável, e regravada por Maurício Pereira.

“Meus Tempos de Criança” (samba, 1956) – Ataulfo Alves
O menino Ataulfo Alves teve infância humilde, da qual soube recolher a riqueza dos pequenos gestos, as pequenas luzes que brilham sob o olhar inocente de uma criança. Essa essência, Ataulfo levou para a fase madura de sua vida, e se recordou com alegria e saudade, retratada no estilo dos versos presentes em toda sua obra, realizada no Rio de Janeiro, mas com um pé fundo numa Minas interiorana, dolente, rural. “Meus Tempos de Criança” é uma homenagem a todos que preservam os sons da matriz, “a professorinha que ensinou o bê-a-bá”, as travessuras e o primeiro amor, Mariazinha. “Eu era feliz e não sabia”. Esse arrependimento inevitavelmente tardio crava uma ponta de angústia na canção de Ataulfo Alves, composta em 1956, várias vezes revista.

“Aula de Matemática” (samba, 1958) – Tom Jobim e Marino Pinto
Roberto Menescal não cansa de repetir que, além do canto suave e “nota por nota” da bossa nova, o movimento trouxe outra contribuição para a música brasileira, ao transformar a perspectiva do gênero samba-canção. Segundo ele, “a tragédia deu lugar para a esperança”. Fernanda Takai segue com rigor essa perspectiva, ao conferir leveza a todas as 13 canções do repertório de “O Tom da Takai”, homenagem a Tom Jobim. “Aula de Matemática”, de Tom e Marino Pinto, lançada por Sylvinha Telles em 1958, é o grande achado do disco. “A ‘Aula de Matemática’ é minha contribuição como artista e mãe, porque fala de um assunto recorrente para quem tem filhos, o momento em que a matemática começa a ficar cabeluda, acho que pode ajudar muita gente”, conta Fernanda.

“Minha História” (baião, 1965) – João do Vale e Raimundo Evangelista
Um resumo da trajetória de João do Vale aparece em “Minha História”, que é também um resumo da história do Brasil, com suas mazelas e desigualdades. “Eu vendia pirulito, arroz doce, mungunzá/ Enquanto eu ia vender doce, meus colegas iam estudar/ A minha mãe, tão pobrezinha, não podia me educar”, relata João do Vale no baião em parceria com Raimundo Evangelista, lançado pelo próprio autor em 1965, no LP “O Poeta do Povo”, e regravado por Nara Leão no mesmo ano. Chico Buarque, Renato Teixeira, Rolando Boldrin e Zezé Di Camargo & Luciano também retornaram a essa pérola da canção brasileira.

“No Fundo do Quintal da Escola” (rock, 1977) – Raul Seixas e Cláudio Roberto
A parceria entre Raul Seixas e Cláudio Roberto rendeu alguns clássicos da canção brasileira, como “Aluga-se” (revisita pelos Titãs), “Rock das Aranha” (que, na verdade, era um plágio sobre a melodia de “Killer Diller”, lançada por Jimmy BreedLove em 1958, sem os devidos créditos), “Cowboy Fora da Lei”, entre outros. Em 1977, a dupla se reuniu para compor o rock “No Fundo do Quintal da Escola”, em que a rebeldia de Raul diante do ambiente escolar e de qualquer figura de autoridade comparece, além da tendência para sair da curva. “Desde aquele tempo quando o resto da turma se juntava pra bater uma bola/ Eu pulava o muro com Zezinho no fundo do quintal da escola”, canta ele.

“Aula de Piano” (infantil, 1980) – Vinicius de Moraes e Toquinho
Em 1970, Vinicius de Moraes lançou um livro infantil baseado na trajetória bíblica da Arca de Noé. O livro conta a história dos animais que embarcaram na viagem chuvosa de 40 dias e 40 noites através de poemas bem humorados e singelos. Com o talento para manusear as palavras que ele tinha, a obra se transformou em especial da Rede Globo, exibido no dia das crianças do ano de 1980. As poesias foram musicadas por Toquinho, Tom Jobim, Paulo Soledade e outros amigos de Vinicius. E cantadas por Chico Buarque, Milton Nascimento, Elis Regina, Alceu Valença, Ney Matogrosso e outros talentos da arte do canto. Devido ao sucesso do espetáculo, apresentado no ano da morte de Vinicius, um ano depois surgiu a continuação: Arca de Noé 2, com poemas tão encantadores quanto os primeiros. Coube às Frenéticas a “Aula de Piano”.

“Química” (rock, 1987) – Renato Russo
O ano de 1987 foi profícuo em canções com referência à política brasileira. Nenhuma delas elogiosa. Um dos que estendeu a bandeira com maior propriedade e relevância foi o compositor e vocalista da banda Legião Urbana, Renato Russo. O protesto tornou-se tão simbólico que é hoje praticamente um ditado popular: “Que País É Este?”. A música aborda de forma direta e narrativa episódios de corrupção e violência na política brasileira, e ainda chama a responsabilidade a todos, antes de chegar ao início do processo que teria se dado logo na “apropriação” do país pelos portugueses. No mesmo disco, Renato compôs um rock de rebeldia juvenil, “Química”, em que destilava sua revolta contra matérias do currículo escolar e colocava em cheque o modo de ensino ainda em vigência no Brasil. Pois o alvo preferencial era o vestibular.

“Anjos da Guarda” (samba, 1995) – Leci Brandão
Primeira cantora de destaque da música brasileira a se declarar homossexual publicamente, numa entrevista, em 1978, para o jornal “Lampião da Esquina”, dedicado ao público LGBTQIA+, a sambista Leci Brandão filiou-se ao PCdoB (Partido Comunista do Brasil) em 2010 e se elegeu deputada estadual por São Paulo, com mais de 85 mil votos. Em 2014, foi novamente eleita, assim como em 2018, para o cargo que ocupa ainda hoje pelo mesmo partido. Leci fez história ao se tornar a segunda deputada negra da história da Assembleia Legislativa de São Paulo. Em 1995, Leci lançou o belíssimo samba “Anjos da Guarda”, em defesa da educação e de todos os nossos professores. Um hino.

“Dia Comum” (clube da esquina, 2011) – Ronald Valle
O cartunista, chargista, escritor, jornalista Ziraldo, para ficar no básico, é um moleque atrevido, maluquinho, menino. Obediente à sua própria escrita, afirma: “Tudo na vida tem limite, isso de ‘perder o amigo, mas não a piada’ é, em si, uma piada. Ninguém é sozinho na vida. É preciso ter coragem para dizer as verdades e aguentar as consequências”. “Na época do Pasquim criamos várias charges sobre a tragédia que se transformou no filme, aliás, belíssimo, ‘Os Sobreviventes dos Andes’, e o Quino, muito meu amigo, inventor da Mafalda, disse que era um absurdo fazer graça com aquilo, ao que eu retruquei que cada um tem o seu próprio absurdo, o humor tem um limite peculiar”. No filme “Uma Professora Muito Maluquinha”, inspirado em uma de suas criações, Milton Nascimento interpreta “Dia Comum”, de Ronald Valle. Ali, a beleza do aprendizado aparece de forma sutil, mas deixa claro que “vai mudar sua vida”.

“Catulina” (repente, 2019) – Jorge Mautner e Afonso Henriques
Além da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018 em crime ainda hoje não solucionado pela polícia, outra personagem é homenageada pelo compositor Jorge Mautner no álbum “Não Há Abismo em Que o Brasil Caiba”, de 2019. “Catulina”, parceria com Afonso Henriques, conta a história de uma professora no sertão brasileiro que, “montada em seu burrico, trota 120km para ensinar as criancinhas a ler e escrever”. Em forma de repente, a canção serve de mote para o cantor se posicionar a respeito dos episódios de perseguição a professores, baseados em iniciativas como a Escola Sem Partido e de um pretenso marxismo cultural nas escolas. “Isso é uma patrulha totalitária tentando acabar com a santidade da liberdade a cada milésimo de segundo…”.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]