*por Raphael Vidigal Aroeira
“Aos esfarrapados do mundo e aos que neles se descobrem e, assim descobrindo-se, com eles sofrem, mas, sobretudo, com eles lutam.” Paulo Freire
Não existe nome para quem perde um filho. Esse sentimento inominável é o mote de “Pequenas Lembranças”, canção que integra o primeiro álbum de Dandara Alves. A música, que ganhou um delicado videoclipe, é uma parceria da anfitriã com Selma do Samba. “Essa é uma música biográfica. Selma do Samba, minha parceira nessa composição, perdeu uma filha e, enfrentando o luto diário, ela decidiu musicar a angústia da saudade e me convidou. Após uns ajustes de melodia e mudanças sutis na letra, finalizamos essa obra, que dedico aos que partiram, mas também como acalanto aos que ficaram”, explica Dandara, que aproveita o tema para saudar signos do feminino e do feminismo.
“A sororidade feminina é o que tem nos mantido vivas nos últimos tempos. Digo viva no sentido literal da palavra. Todo e qualquer espaço que tivermos pra manifestar nossas ideias tem que ser aproveitado. Tento fazer isso com o poder que o microfone me dá. É isso que me inspira a compor, poder falar das vivências a partir da minha ótica”. A ótica de Dandara comparece ao longo das dez faixas, como aquela que dá título ao trabalho: “A Voz do Suor”, de Alessandro Cardozo e Leandro Saramago, abre-alas para ela passar. “Sacode a poeira do chão/ Pra modificar/ A condição de ser ou não feliz…”, canta Dandara, ciceroneada por uma percussão no mesmo ritmo de gana, euforia, fé.
Repertório. “A seleção do repertório foi feita pensando em agregar diversas vertentes do gênero samba e também de outros gêneros musicais com os quais me identifico. Além disso, quis mesclar compositores consagrados e nomes da nova geração da composição, tendo como critério maior a minha identificação e verdade com a obra”, conta a intérprete, que, após mais de dez anos de estrada, estreou em disco. “Vai Mesmo”, de Antônio Rufino, agrega a participação da Velha Guarda da Portela. “Suspiro” tem a assinatura de João Martins, enquanto “De Bar em Bar” une os velhos bambas Toninho Geraes e Roque Ferreira. “Convite de Manel”, de Walber Junior e Fernando Procópio, lembra as canções de Adoniran Barbosa, em especial o clássico “Samba do Arnesto”. Já “Te Amar É Viver” é obra de Diogo Nogueira, Fred Camacho e Leandro FAB. As influências de Dandara vão a diversos caminhos.
A reminiscência mais significativa que ela guarda na memória musical e afetiva é das horas e horas que passava olhando os detalhes das capas dos LPs. “Eu ouvia e organizava na ordem que mais gostava. Essa ordem mudava sempre, mas os álbuns se repetiam: ‘Nos Dias de Hoje’, aquele de 1978, que o Ivan (Lins) aparece como preso político; ‘Aquarela Brasileira 2’, do Emílio Santiago, de 1989; ‘Nação’, da Clara Nunes, de 1982’”, enumera. Dona Ivone Lara, Alcione, Fundo de Quintal, Jorge Aragão, Leci Brandão, Chico Buarque e Tom Jobim são outros nomes que a inspiraram. “Graças a Deus a gente tem muita coisa boa na música brasileira, muitas fontes pra beber”, exalta. Paraibana, Dandara não poderia deixar de fora o forró do repertório na estreia fonográfica.
Brasil. “Festa do Arrastapé”, de Leandrinho Partideiro e Cadé, era originalmente um samba, mas ganhou um arranjo típico de pé-de-serra, aquele forró mais dançante, cheio de chamego, com direito a videoclipe gravado no Centro de Tradições Nordestinas Luiz Gonzaga, no Rio de Janeiro, onde Dandara reside desde 2018. “O forró é um gênero musical forte na Paraíba e eu não poderia deixar de fora essa essência musical da minha terra. Nos shows, dedico um momento para clássicos do forró autêntico”, garante a artista. Durante a canção, outro ícone da terra, Jackson do Pandeiro, recebe uma saudação especial. Profundamente ligada às raízes, Dandara se ressente do estado atual do Brasil, mas não desanima e usa as armas que tem pra lutar.
“O resultado da última eleição parece que foi uma carta branca pra que as pessoas colocassem pra fora o que há de pior. Um chefe de estado arrogante, machista, racista, homofóbico, divulgador de notícia falsa e tudo mais, passa para seu povo a ideia de que tudo bem ser assim. E não, não está tudo bem!”, protesta Dandara, em referência ao presidente Jair Bolsonaro, condenado em três instâncias pela Justiça por incitação ao estupro, além de conviver com denúncias de corrupção em seu governo, a última relacionada ao Ministério da Educação, que teria trocado verbas e cargos por barras de ouro destinadas a pastores aliados. “Acredito no respeito às diferenças, acredito que um governo tem que trabalhar para seus compatriotas e não só a quem convém”, avalia ela.
“O que eu vejo hoje é a população voltando à situação de miséria, subnutrida. Doenças que já haviam sido erradicadas estão retornando graças à campanha de desinformação acerca das vacinas, a inflação está galopante, o número de casos de violência contra mulheres, pretos, indígenas e LGBTQIA+ segue crescendo assustadoramente e foi só isso que cresceu nesse governo. Não é esse o país que eu quero. E, em nenhuma hipótese, Bolsonaro teve ou terá o meu voto”, encerra Dandara, com a voz do seu suor, plena de energia e fibra.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.