Crítica: “Se essa rua fosse minha” é indescritível

“Nessa rua, Nessa rua Tem um bosque. Que se chama, Que se Chama solidão. Dentro dele, Dentro dele Mora um anjo. Que roubou, Que roubou Meu coração” Domínio Público

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…Ao me apresentar na porta do teatro, o segurança, Serjão, de terno preto e gravata vermelha, mostra no celular a foto dos caçadores de tesouro. Um disco voador sobre a cabeça dos três deve roubar minha atenção. Macaxeira chegou procurando a igreja. Caçoou da barba ruiva de um senhor a meu lado. O rosto todo sujo não esconde a faísca nos olhos. Duas bolas pretas como a casca de um besouro. Macaxeira pode parecer um desenho, uma mancha, um borrão, mas é real. Sei porque belisca a bunda enquanto tenta se desvencilhar do assédio de Mandioca. Ralha, zanga com o moribundo. Está cansada. E ele está morto. Mas quem sou eu para apontar o dedo e desmanchar as coisas inexistentes? – Lá fora um policial vigia –

Ela imita a si e a outros três tipos bestas, um pior do que o outro. Lembro-me do artista Wolinski, assassinado por terroristas: só é possível uma arte de esquerda. Se ele não disse, disseram que disse. E fica tudo por isso mesmo. Rilke, um alemão, afirma não ser possível dizer nada sobre obras de arte, que carregam o quase “indizível”. E se Macaxeira é uma artista maior do que Shakespeare, quem sou eu para desmenti-la? Quem somos nós, os inexistentes? Na festa de casamento, revira os copos à sua maneira. Num: o arroz. Noutro: está vazio. Tudo mentira. À Igreja. À Indiferença. Ao Governo de Merda. Assassino. Dona Clara (Luz no fim do túnel: que expressão mais batida – como bonita é a luz de um trapo de vida; algo de um manoel de barros?) corta os cabelos puídos. Não podem ser como de Jesus pois estão cheios de piolhos. – Piolhos no cu – AMÉM

Há no teatro uma hipocrisia. Mas Macaxeira dá o seu espetáculo aos que pagaram ingresso e aos que não pagaram. Não está deixando uma obra. Modifica, naquele momento, a realidade. Que só, naquele instante, é possível. Depois desmancha. Eu estou nesse espetáculo. Sou um reles borrão discreto. E com a chuva, eu também me apago. Dizem, função da crítica. Veja só. Que eliminei partes a mim desinteressantes, e floreei outras. Que muito e nada disso aconteceu, só na minha imaginação. Que inventei tudo. E amanhã será diferente. Que rabisquei por sobre um corpo pútrido de aipim. Uma música mais antiga do que o arco da velha retorcido avisa sobre anjos, solidões, amores desfeitos, bosques, essas coisas de calçada. Por todo o lugar em que olho sinto o rastro dessas pessoas invisíveis. Nenhuma delas carrega coroa. Só no corpo o lixo é um vestido. – Eu mandava ladrilhar –

Com a minha hipocrisia caminho com a chuva nos olhos. A lágrima é um asterisco. Só. Transformada em linguagem. Deixo obra. “– E não me venha com caraminholas” – Macaxeira toma um café preto e come pão. Cospe as estrelas…

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Raphael Vidigal

Fotos: Elizabeth Faustina e Flávio Charchar, respectivamente.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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