Crítica: peça “Minha Querida” une fragmentos para rir com o drama e chorar com a comédia

“Sou um artista começando… a passar fome. Batam palmas senão onde vou bater bombo?” Wally Salomão

Minha-Querida

Baseada nas obras da argentina Griselda Gambaro e do russo Anton Tchekhov, a peça “Minha Querida”, apresentada na Funarte pelo grupo de Teatro Universitário da UFMG, com direção de Rogério Lopes, une em fragmentos um coletivo de jovens atores cujo talento ajuda a brotar pelo texto crítico, ácido, e, sobretudo, bem humorado. Há uma visão de mundo a ser explorada pelos diversos personagens no corpo da mesma Olga: o ridículo da trajetória humana, inclusive nos momentos mais dramáticos. E o que sensibiliza é que esse olhar de deboche é sempre pautado por alguma ternura, afinal andam e se afogam todos nesse idêntico barco.

Há várias passagens impagáveis, como a canção em castelhano na ode à madeira, material de trabalho de um dos maridos enfadonhos da já cansada Olga. E o desejo que esta demonstra pela morte dele, nas entrelinhas, na exaltação com a possibilidade de um romance novo, mostra que os atores em cena estão dispostos a não poupar nada nem ninguém. Tudo é visto com uma desesperança crônica, até a própria profissão que, ainda em início de carreira, almejam. Afinal os aplausos ressoam sempre que há uma situação dramática, e o riso cobre o desespero sem o menor escrúpulo. Como na cena em que uma das atrizes se joga à porta e sai de lá encharcada de palmas: apenas mãos batendo, tão banais quanto qualquer cólica, é o que parece.

Os números musicais, a maquiagem de Cacá Zech e o figurino providenciado por Ana Luisa Santos e os alunos, exuberantes e caricaturais, o jogo de interpretação entre o exagero Almodóvar e o comedimento um pouco Woody Allen, mesmo com todo o dilúvio ao redor, seduzem a platéia a pensar de maneira desordenada e louca que no mais absurdo dos mundos está a essência humana: a busca por algo impalpável, a falta de encaixe entre sonho e realidade, a inexistência de comunicação entre as pessoas, e o cinismo que sustenta alguns lares pela simples aparência, necessidade de se parecer mais feliz do que é, e na ausência de pudor e vergonha dos intérpretes, que se jogam de peito aberto, instrumentos altos, calça pra fora da blusa, mão para dentro da calça que limita e incomoda, eles acendem inconformados o fogo dos isqueiros: é importante ser feliz para si, e amar sem precedentes.

Embora o riso perpasse todo o movimento, existe ainda o comovente lirismo na cena em que a mulher rola como uma gata no chão com a criança, e a canção imita os miados do animal em formato de ópera. A gargalhada que se confunde com lágrimas mostra que a companhia une fragmentos para rir com o drama e chorar com a comédia. Há, sobretudo, a provocação, a pirraça, quando os microfones anunciam em ritmo de novela do rádio os desaforos pelos quais se passa dentro duma casa, e quando com uma bandeja na mão Olga dá os seus pitacos sobre biologia e serve os convidados sem se interessar exatamente na resposta. Porque a pergunta é o preponderante, e dela que vive a raça.

Minha-Querida-critica

Raphael Vidigal

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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