“Tente explicar a alguém a arte do jejum! Não se pode explicá-la para quem não a sente.” Franz Kafka
Uma arte que não te emociona não te faz pensar. Por essência. Artistas não necessariamente são intelectuais, antes a característica primordial de sua atividade é desafiar a lógica, o raciocínio exato, a ordem natural e a previsibilidade, por isso grande parte de seu arcabouço deve-se não somente à aquisição de conhecimento como por aquelas palavras de encanto: instinto, intuição, criatividade, imaginação. Propor algo novo e experimental não basta, o princípio básico é emocionar. Logo nos primeiros minutos de “Rasante” o espaço vazio e amplo, de uma imensidão escura, é condensado de forma sublime pela iluminação afiada, precisa, de Wladimir Medeiros. O desafio de invadir o abismo literário de Kafka promete. Essa primeira impressão é completa com a presença dos dançarinos, a luz sobre eles tem ainda mais efeito, mas não é a que fica. Infelizmente, quando a iluminação apenas compõe a cena, ela perde o charme.
O escritor tcheco padece, muitas vezes, de leituras equivocadas a seu respeito. Tornou-se consenso definir o seu universo como algo repetitivo, monótono, tenso, absurdo, sim, mas, sobretudo, incômodo. Parte é verdade. O fato de suas personagens apresentarem indiferença e enfado não significa que a linguagem, concisa e elegante do escritor, repita esse tom cinza e bege com que frequentemente é pintado. Pelo contrário, as sensações provocadas diante de tal reação das criaturas pitorescas de Kafka frequentemente são de espanto, dilaceramento, delírio, êxtase, perturbação, tudo por conta do caráter visceral e vivaz dos textos. O estranhamento e a constante temática da incapacidade em pertencer a uma ordem fazem parte de uma dentre as muitas dimensões da obra. “Rasante” apresenta ótimos momentos, mas também cai na armadilha.
A questão da luta corporal e do enfrentamento é repetida à exaustão, e as surpresas que sempre iluminam os contos de Kafka são raras, quando ocorrem, deslumbram, a exemplo da primeira cena de enlace das bailarinas Gabriela Christófaro e Grace Passô, o cerco das duas, Bernardo Gondim e Sérgio Penna a Lourenço Marques que escapa, provisoriamente, agarrando-se a uma haste no teto, e, sobretudo, o final, digno do melhor do escritor, quando a luz, novamente protagonista, deixa transparecer apenas braços e pernas dos bailarinos, fruto do desmembramento do homem. A entrega e o comprometimento dos dançarinos é notável. A música e os objetos utilizados de um jeito peculiar não dão o peso necessário ao martírio coreografado. É possível perceber referências a contos kafkianos e a alusão à condição animal deste, como, por exemplo, “Na colônia penal”, “Um artista da fome”, “A ponte”, “Carta ao pai” e “A Metamorfose”. Mas sempre por uma proposição do cérebro, nunca por aquele toque na alma, no espírito. O embate de Kafka com um Deus inclemente também aparece.
Nos tempos atuais, quando se discute, muitas vezes de maneira enviesada e pouco crítica a questão dos suportes, das plataformas, é preciso não perder de vista que eles representam exatamente o que a nomenclatura lhes propõe: servem de esteio para o que importa, o que é duro demais para os dentes do tempo, como um aforismo, parafraseando Nietzsche, e não se desintegrará qual a matéria. Afinal de contas, pouco importa se a música, ou a palavra, ou a imagem chegam através do papel, da pedra ou do vidro, o imprescindível é que este conteúdo impalpável prosseguirá sua rota. Isto serve também para o teatro, a dança, a experimentação, que como fins em si, não se justificam, mas servem de aparador a transformar a vida; sendo arte, com a emoção, para atingir só a mente melhor seria erguer um tratado de filosofia. Por isso fica a impressão que a companhia “No Ar” enfrentou Kafka com o pensamento, mas o sentiu pouco.
Raphael Vidigal
Fotos: Guto Muniz