“Foi de mãe todo o meu tesouro
veio dela todo o meu ganho
mulher sapiência, yabá,
do fogo tirava água
do pranto criava consolo” Conceição Evaristo
A arte como exercício político é uma das premissas do espetáculo “A-Corda Que é Real!”, que coloca em cena a dançarina Cyntia Reyder e a instrumentista Gal Duvalle. Não é por acaso que as duas mulheres, negras, exercem tal protagonismo, pois, aqui, opta-se pela narrativa simbólica. E é através de suaves e preciosos simbolismos – qual o corte de uma tesoura – que ambas tecem sua travessia pela origem, para buscar, afinal de contas, esse tesouro da identidade: que se revelará múltipla ainda que reverente à ancestralidade. Inexiste novidade em inferir que é a partir da pergunta “de onde viemos” que começamos a conscientemente nos construir. Mas este movimento se afeta tanto de fora para dentro quanto em seu refluxo, como pondera a apresentação. Nada, logo, está imóvel; o menor gesto realça o todo. A dança se instaura com desenvoltura e sensibilidade pelos climas desejados.
Com efeito, a premissa política, de forma consciente, aqui está a serviço da arte, não o contrário; desta maneira o discurso distende-se aos poucos, com próprio tempo de maturação suficiente para que se descubram as camadas. Intimista, o espetáculo ressente-se de uma relação menos distante com seu interlocutor, alocado de maneira conservadora frente ao palco italiano, mesmo que a bailarina faça o possível para transitar entre e através dele. A iluminação exerce sua função, assim como o figurino que, no entanto, também poderia agregar outro valor ao espetáculo caso houvesse mais imaginação e ousadia em seu fomento, justamente o que não falta ao cenário, peça essencial, catalisadora de toda a narrativa. É através de sua interação com as artistas que ocorre a catarse e os limites da intolerância – delineados – são, finalmente, transpostos. A ação da música é crucial, tanto que se sustenta, inclusive, a sós.
Ficha técnica
Direção e concepção cênica de Cyntia Reyder.
Codireção de Pedro Lobo.
Com Cyntia Reyder e Gal Duvalle.
Iluminação: Pedro Lobo e Ismael Soares/Figurino: Marilda Cordeiro/Trilha Sonora Original: Ronilson Silva e Gustavo Bracher/Técnico de som: Marcos Vinícius.
Raphael Vidigal
Fotos: Geraldo Bisneto.