*por Raphael Vidigal Aroeira
“Mas deixo neste meu amor a linda lua
Deixo o meu bloco na rua
Pra poder me consolar” Maria Inês Aroeira Braga
A presença das mulheres na composição carnavalesca ainda é tímida em comparação com o número de homens e, principalmente, em relação ao tamanho da população feminina, ainda indevidamente representada nesse segmento, mas ela vai aumentando a cada ano, graças, também, a pioneiras como Chiquinha Gonzaga e Dona Ivone Lara, que romperam as barreiras desse preconceito e estenderam o tapete vermelho para a nova geração de foliãs. Da marchinha ao samba-enredo elas tomam a frente do nosso Carnaval.
“Ó Abre Alas” (marcha-rancho, 1899) – Chiquinha Gonzaga
As compositoras, cantoras e instrumentistas têm mostrado a cara e mudado o panorama do Carnaval na cidade de Belo Horizonte, cujo aumento da visibilidade para canções compostas por mulheres é latente. Um exemplo prático é a presença de 15 autoras inscritas no Concurso de Marchinhas Mestre Jonas 2018. Apesar do recorde, o número ainda é inferior em relação ao de homens.
Mas é uma mulher a autora da primeira música carnavalesca de sucesso da nossa história: Chiquinha Gonzaga. Composta em 1899, a marcha-rancho “Ó Abre Alas” estourou no Carnaval de 1901 e é definida pelo Dicionário Cravo Albin da Música Brasileira como “pioneirismo da produção carnavalesca, antecipando-se em 20 anos à fixação do gênero”. A publicação ainda afirma que a música seguiu como a preferida dos foliões por nove anos seguidos, até as festividades de 1910.
“Os Cinco Bailes Tradicionais da História do Rio” (samba-enredo, 1965) – Dona Ivone Lara e Silas de Oliveira
Dona Ivone Lara foi a primeira mulher a ter um samba-enredo cantado na avenida no Brasil. Como se não bastasse, mulher negra, pobre, imersa em reduto machista e de preconceitos. Mas Dona Ivone Lara venceu todos eles, com voz mansa e andar macio, embora se impondo pela graça de suas músicas e o talento que comprovou na raça.
Foi ao lado de Silas de Oliveira que Dona Ivone Lara tornou-se a primeira mulher a derrubar barreiras e preconceitos e invadir esse ambiente marcadamente masculino, com a coautoria de “Os Cinco Bailes Tradicionais da História do Rio”, périplo que reconta a história de magia, aventura e sedução do Brasil imperial e a chegada do período republicano. Não foi sem méritos que a Império Serrano tornou-se a grande vencedora daquele carnaval de 1965.
“Adeus de Carnaval” (marcha-rancho, 1967) – Maria Inês Aroeira Braga
A história de “Adeus de Carnaval” é curiosa, só para adjetivar. Pois, na verdade, é muito mais. Composta no fim da década de 1960 por Maria Inês Aroeira Braga, poeta, mística e artista plástica mineira, a música retornou à tona anos depois, em 2014 quando, por iniciativa de seu irmão, Marcelo Aroeira, ela foi gravada em estúdio pelo cantor Mauro Zockratto. Mas seu percurso ainda não tinha terminado.
Três anos depois, em 2017, inscrita no “Concurso de Marchinhas Mestre Jonas” foi selecionada entre as finalistas para ser apresentada num show. Feita esta parábola, vamos à sua história, que remonta a todas as tradições carnavalescas, começando por seu ritmo, a marcha-rancho, alusão aos antigos ranchos que desfilavam nas ruas antes das escolas de samba e, claro, aos amores desfeitos que, desde Colombina, Arlequim e Pierrô enfeitam e colorem os carnavais brasileiros. Viva nossa festa!
“O Canto da Cidade” (axé, 1992) – Tote Gira e Daniela Mercury
Identificado com os blocos afro-baianos de Salvador, o compositor Tote Gira criou “O Canto da Cidade” para exaltar a sua relação com o Carnaval da Bahia e a força dessa manifestação cultural junto à história do povo negro. A música chegou às mãos de Daniela Mercury, que realizou ajustes na letra a fim de torna-la mais universal, sem perder a essência negra e baiana.
Assim, em 1992, esse axé potente deu título ao disco lançado por Daniela, que a tornou uma estrela nacional. Pouco antes do lançamento, a cantora baiana realizou uma histórica apresentação no vão do MASP, em São Paulo, que parou o trânsito da capital e abalou as estruturas do Museu de Arte. “O Canto da Cidade” é, até hoje, um dos grandes sucessos do Carnaval em todo o Brasil.
“Carro Velho” (axé, 1998) – Ivete Sangalo e Ninha
“Falavam do É o Tchan, e quem não se lembra de ‘Boquinha da Garrafa’? Isso é descartável? A música não toca mais, mas o axé nos rendeu Ivete Sangalo, Asa de Águia, toda uma geração que está aí e teve influência sobre o que se faz de mais ousado na música brasileira hoje, como Baiana System”, sustenta o crítico musical Miranda, falecido em 2018. Dentre os grandes sucessos de Ivete Sangalo figura a carnavalesca “Carro Velho”, parceria com Ninha, lançada pela Banda Eva em 1998. Um estouro que invadiu as ruas da Bahia.
“O Baile do Cidadão de Bem” (marchinha, 2017) – Jhê Delacroix e Helbeth Trotta
Cantora, atriz, bailarina, assistente social, artista plástica, contadora de histórias, escritora e tudo o mais que englobe a arte, a carioca Jhê Delacroix despontou como um dos destaques do Carnaval de Belo Horizonte em 2017, cidade onde se estabeleceu. Ela venceu o “Concurso de Marchinhas Mestre Jonas”, com a canção “Baile do Cidadão de Bem”, como intérprete e coautora. Detalhe: foi a primeira compositora mulher a levar o prêmio.
A música premiada, que tira um sarro daqueles que foram às ruas pedir o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, é uma parceria com Helbeth Trotta. “Acho importante ter uma mulher num concurso de marchinha, acho importante ter a mulher em qualquer espaço porque não é só homem que faz música de qualidade, que faz letra de qualidade, e a gente está aí pra provar isso”, sentencia Jhê.
“Beijo Mesmo” (marchinha, 2018) – Aline Calixto e Juliano Butz
A partir de 2009, a renovação da folia na capital mineira veio no embalo da criação de diversos blocos feministas, como Sagrada Profana e Bruta Flor. “Beijo Mesmo”, a nova marchinha criada por Aline Calixto, que desde 2014 comanda o Bloco da Calixto, preza, justamente, pelo exercício da liberdade longe da violência e intolerância. “Podemos beijar quem quiser, mas sem forçar, respeitando o outro. A marchinha é sobre isso, é um gênero que permite a crítica e falar de amor”, avalia Aline.
“Marchinho” (marchinha, 2018) – Brisa Marques
Brisa Marques, primeira mulher a ser empossada diretora artística da rádio Inconfidência, é uma das entusiastas do Carnaval de BH. “Estamos nos mostrando mais no movimento, dando a cara, as mulheres não estão deixando passar batido nem os discursos presentes nas letras, e isso é importante, porque as pessoas ficam mais atentas, cuidadosas, pensam mais sobre o assunto. Que bom que as mulheres resolveram assumir o poder, porque a revolução virá pelo ventre”, garante Brisa, que, em 2018, compôs “Marchinho”.
“Trombeta” (marchinha, 2018) – Rita Guerra e Regina Paletta
“Trombeta” é obra de Rita Guerra e Regina Paletta. Ao lado de Therezinha Franco, elas formam o Grupo Delas. Funcionárias públicas aposentadas, as três descobriram juntas a inclinação para a arte durante apresentações do “Auditor Talento”, projeto feito para incentivar o canto e a composição musical no ambiente de trabalho. “A gente ficou brincando que não éramos da faixa etária majoritária, e estávamos tão alegres, rindo e nos divertindo tanto que as pessoas deviam achar que a gente tinha tomado alguma coisa”, conta Rita. Baseada nessa brincadeira nasceu a marchinha “Trombeta”.
“História pra Ninar Gente Grande” (samba-enredo, 2019) – Manu da Cuíca, Luiz Carlos Máximo, Deivid Domenico, Tomaz Miranda, Mama, Ronie Oliveira, Marcio Bola e Danilo Firmino
Marina Íris estava ao lado de Marielle Franco (1979-2018) durante a campanha que a elegeu à Câmara Municipal do Rio de Janeiro pelo PSOL, em 2016, com mais de 46 mil votos. Maria Bethânia lançou o álbum “Mangueira: A Menina dos Meus Olhos”, onde regravou o samba-enredo da Mangueira que saiu vencedor em 2019, “História pra Ninar Gente Grande”, que enaltece o legado de Marielle.
O citado samba-enredo foi interpretado também por Marina Íris em uma sessão solene na Câmara dos Deputados, em Brasília, em março, um ano após a morte de Marielle. E também entrou como uma das faixas de “Voz Bandeira”, seu terceiro disco, dedicado à vereadora que ajudou a eleger, mas que ficou apenas um ano e dois meses no cargo. Além de Marielle, outras mulheres são exaltadas.
“A Culpa É do PT” (marchinha, 2019) – Marília Passos e Isis Passos
Passava das 11h da noite quando Isis telefonou para a mãe, Marília, com uma ideia que mudaria o destino de toda a família. Mas elas ainda não tinham consciência disso. No dia seguinte, as duas se encontraram pessoalmente, e, em cerca de meia hora, estava pronta “A Culpa É do PT”. Era janeiro de 2019, próximo do Carnaval, e, “para brincar e ver a reação dos amigos”, Isis postou a marchinha em seu perfil no Facebook.
Logo em seguida, uma de suas amigas a enviou para um grupo formado só por mulheres no WhatsApp, intitulado “Ele Não”. A canção, recheada de ironias com frases que marcaram a última eleição presidencial, como “nossa bandeira jamais será vermelha” e “essa mamata vai acabar”, já tinha se tornado viral quando o youtuber Felipe Neto a compartilhou. Era o estouro definitivo. “A Culpa É do PT” foi indicada e venceu o Concurso de Marchinhas da rádio CBN. A “Família Passos” estava só começando suas folias.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.