*por Raphael Vidigal Aroeira
“Sempre contar, sempre livrar-se dessa cócega incômoda no estômago.” Julio Cortázar
Foi no Centro Popular de Cultura do Rio que o cineasta moçambicano Ruy Guerra, nascido em Lourenço Marques, atualmente conhecida como Maputo, iniciou a sua trajetória na música. Morando no Brasil desde a década de 1960, quando estreou como diretor com o filme “Os Cafajestes”, Ruy Guerra conheceu Sérgio Ricardo e compôs com ele “Esse Mundo É Meu!”. Em seguida, iniciou parcerias com Edu Lobo, Marcos Valle e Milton Nascimento, figurando com a canção “E Daí (A Queda)” no álbum “Clube da Esquina II”. Mas a parceria de maior êxito foi, certamente, com Chico Buarque. Juntos, eles compuseram a trilha de “Calabar”, para a qual criaram a música “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”, gravada com muito sucesso por Ney Matogrosso.
“Esse Mundo É Meu!” (canção, 1963) – Sérgio Ricardo e Ruy Guerra
Paulista de Marília, batizado João Lutfi, ele ainda não havia refinado o estilo quando adotou o nome galante de Sérgio Ricardo e iniciou um namoro com a emergente bossa nova. A despedida do movimento ocorreria em um evento de gala, na histórica apresentação no Carnegie Hall, em Nova York, no ano de 1962. Acontece que Sérgio estava nos Estados Unidos porque acabara de obter o segundo lugar do Festival de Cinema de São Francisco com o curta “O Menino da Calça Branca”. Eram apenas os passos inaugurais de sua investida na sétima arte. No ano seguinte, em 1963, um novo estouro, desta vez com o filme “Esse Mundo É Meu!”, montado por Ruy Guerra, com Antonio Pitanga e Ziraldo no elenco e uma impecável trilha sonora, em que se destacava a faixa-título: “Escravo do reino estou/ Escravo do mundo em que estou/ Mas acorrentado ninguém pode amar…”. A música ganharia a voz de Elis Regina.
“Por Um Amor Maior” (samba-canção, 1965) – Francis Hime e Ruy Guerra
Elis Regina ainda não havia se configurado como a estrela-maior da MPB quando gravou, em 1965, o LP “Samba – Eu Canto Assim”. No repertório, prevaleciam nomes ligados à tradição, como Vinicius de Moraes, Baden Powell, Edu Lobo, Francis Hime, Carlos Lyra e Dorival Caymmi. Das doze faixas, nada menos que quatro traziam a assinatura de Ruy Guerra. “Reza” e “Aleluia”, ambas com Edu Lobo, e “Último Canto” e “Por Um Amor Maior”, com Francis Hime. A última foi a que se destacou, recebendo, no ano seguinte, uma regravação cadenciada de Tito Madi, espécie de precursor da bossa nova. Também em 1966, Taiguara, um dos representantes da música de protesto do país, a reviveu no disco “1º Tempo: 5×0”, dividido com Claudette Soares e o Jongo Trio. Na abertura, Taiguara recita um poema que alude à ditadura militar.
“Aleluia” (canção, 1965) – Edu Lobo e Ruy Guerra
Leny Eversong, dona de uma das mais potentes vozes que o Brasil já conheceu, nasceu Hilda Campos Soares da Silva. Ela começou a carreira aos 12 anos, cantando no programa “A Hora Infantil”, na Rádio Clube de Santos. Demonstrando desde o início seu enorme talento para interpretar foxes estrangeiros, Leny logo passou a ser chamada de Hildinha, a “Princesa do Fox”. Pouco tempo depois, ela deixaria para trás o nome em português, mas não abandonaria as canções estrangeiras, passando a se especializar também em outros ritmos, como jazz, bolero e blues. Apesar da enorme fama da qual já desfrutava no exterior, Leny nunca obteve no Brasil o reconhecimento devido, e gravou poucas vezes em português, numa dessas tendo feito registros históricos de músicas que seriam sucesso na voz de Elis Regina, a exemplo de “Aleluia”, parceria de Edu Lobo e Ruy Guerra, também gravada por Nara Leão.
“Bloco do Eu Sozinho” (marcha, 1968) – Marcos Valle e Ruy Guerra
No Festival de Música Popular Brasileira de 1968, Marcos Valle e Ruy Guerra concorreram com “Bloco do Eu Sozinho”. Embora não tenha faturado o prêmio, a marcha angariou regravações de Joyce e do Quarteto em Cy naquele mesmo ano. Chico Buarque também deu voz a essa canção décadas depois. Como já anuncia a letra, a música traz a convivência entre a melancolia da solidão e uma leve esperança carnavalesca. “No bloco do eu sozinho/ Sou faz tudo e não sou nada/ Sou o samba e a folia/ De fantasia cansada/ (…) Sou o enredo da parada/ Sou cachaça e sou tristeza/ Pulando junto e sozinho/ Faço da rua uma mesa”. Já em 2001, a expressão que dá título à música serviu para batizar o segundo disco do grupo carioca Los Hermanos, que alcançou muito sucesso.
“Canto Latino” (clube da esquina, 1970) – Milton Nascimento e Ruy Guerra
Na década de 1970, Milton Nascimento compôs, em parceria com Ronaldo Bastos, “Cravo e Canela”, lançada no álbum “Clube da Esquina” (1972). A música integraria o filme “Os Deuses e os Mortos”, dirigido por Ruy Guerra, em 1970, no qual Milton e a atriz Dina Sfat atuaram juntos, mas acabou excluída da trilha. O encontro com Ruy Guerra, no entanto, para além de uma sincera amizade, também validou três parcerias: “Bodas”, “Canto Latino” e “E Daí (A Queda)”, gravada no disco “Clube da Esquina II”, de 1978. A música “Bodas” foi gravada por Milton em “Milagre dos Peixes”, de 1973, e relançada por Ney Matogrosso em “Água do Céu-Pássaro”, de 1975. “Canto Latino” aparece no disco “Milton”, de 1970. Zé Renato também já registrou uma versão da canção.
“Bárbara” (MPB, 1973) – Chico Buarque e Ruy Guerra
Em 1972, Chico Buarque compôs a primeira música que se tem notícia a abordar o amor homossexual entre duas mulheres. “Bárbara” foi composta com Ruy Guerra, para a peça de teatro “Calabar: O Elogio da Traição”, censurada à época da ditadura. A música trata o tema de forma lírica e intensa, sem julgamentos morais e preconceitos. Foi regravada por Angela Ro Ro (homossexual assumida), Maria Bethânia, Gal Costa, Simone e outras. Crescente em seu drama romântico, letra e melodia se unem numa tensão que é repetida no discurso poético: “O meu destino é caminhar assim desesperada e nua/ Sabendo que no fim da noite serei tua/ Deixa eu te proteger do mal, dos medos e da chuva/ Acumulando de prazeres teu leito de viúva…”, diz a mulher.
“Ana de Amsterdã” (MPB, 1973) – Chico Buarque e Ruy Guerra
“Ana de Amsterdã” é uma parceria de Chico Buarque com Ruy Guerra, dramaturgo, compositor e cineasta natural de Moçambique, então colônia portuguesa, e que vive no Brasil desde a década de 1950. Na verdade, a música é parte de um projeto maior, a peça “Calabar: o Elogio da Traição”, escrita pelos dois autores. O espetáculo, censurado pela ditadura militar e liberado apenas seis anos depois, remonta ao episódio histórico que envolveu o senhor de engenho Domingos Fernandes Calabar, que teria preferido se aliar aos holandeses na invasão ao Nordeste do país, contra a coroa portuguesa. As metáforas da canção serviam também para atacar o regime militar vigente. A protagonista seria uma imigrante holandesa que aqui viveu como prostituta. Mas este nome, como é comum no meio em função dos preconceitos sociais, seria inventado. “Até amanhã sou Ana”, revela um dos trechos desta bela letra.
“Tatuagem” (MPB, 1973) – Chico Buarque e Ruy Guerra
Se o Brasil todo foi apaixonado por Leila Diniz, perpetuada no esplendor de sua beleza pelo olhar comovido do ex-marido Domingos Oliveira em “Todas as Mulheres do Mundo”, Ruy Guerra foi além: casou-se com a musa. Em 1971, nasceu Janaína, a única filha do casal. No ano seguinte, uma tragédia que abalou o país: Leila morreu em um acidente aéreo que partia da Índia, com apenas 27 anos de idade, voltando de uma turnê cinematográfica, no auge do sucesso. Abalado, Ruy não conseguiu criar a filha, e delegou a função para os amigos Chico Buarque e Marieta Severo, casados à época. “Tatuagem”, música de Chico e Ruy de 1973, também composta para o espetáculo “Calabar”, é uma dessas músicas que derramam romantismo na medida exata. “Quero ficar no teu corpo feito tatuagem/ Que é pra te dar coragem/ Pra seguir viagem/ Quando a noite vem”. A música foi lançada por Maria Bethânia no LP “Drama – 3º Ato”, e recebeu regravações de Elis Regina, Maria Rita e Caetano.
“Não Existe Pecado ao Sul do Equador” (frevo, 1973) – Chico Buarque e Ruy Guerra
O cronista holandês Gaspar Barléu, registrou, em 1641, uma máxima que corria por toda a Europa com a velocidade de um ditado popular: “Não Existe Pecado ao Sul do Equador”. A frase foi utilizada para batizar o frevo de Chico Buarque e Ruy Guerra, composto, em 1973, para a peça “Calabar – O Elogio da Traição”, sobre o senhor de engenho pernambucano que traiu os colonizadores portugueses e passou ao lado dos invasores holandeses. A frase representava a noção vigente de que o trópico era visto como antro de perdição, paraíso de utopia e liberdade, onde tudo era permitido, e ganhou a voz de Ney Matogrosso em 1978, com o carimbo da censura em alguns versos.
“Fado Tropical” (fado, 1973) – Chico Buarque e Ruy Guerra
“Fado Tropical”, como explica o título, une os problemas e as belezas do Brasil a Portugal, de quem foi colônia. Na época da composição, feita para a peça “Calabar: o Elogio da Traição”, Chico Buarque se utilizava da música para criticar a ditadura militar vigente no Brasil e exaltar a Revolução dos Cravos, que derrubou o regime de Salazar em Portugal. Lançada por Chico, a música recebeu uma versão de Clara Nunes, em 1977, no LP “As Forças da Natureza”. Em 2017, “Fado Tropical” batizou a turnê que virou disco de Edson Cordeiro, onde ele interpreta o principal gênero da música portuguesa, na linhagem da diva Amália Rodrigues. Edson Cordeiro estreou nos palcos em 1988, na montagem brasileira para a ópera-rock “Hair”, dirigida por Antônio Abujamra.
“Máscara” (samba-canção, 1977) – Francis Hime e Ruy Guerra
A cantora Márcia especializou-se em canções lancinantes de dor de cotovelo, e recebeu os aplausos do exigente Paulo Vanzolini quando gravou “Ronda”, que deu título a seu LP de 1977. Na capa, uma ilustração com o traço inconfundível do craque Elifas Andreato mostrava uma mulher abatida, de cigarro na mão, derramado lágrimas e acariciando uma rosa que se despetala. No repertório, também constava uma parceria de Ruy Guerra e Francis Hime: “Máscara”. A canção repetia o espírito das paixões dolorosas sempre bem-defendido pela intérprete. “Máscara que cobrindo o meu rosto/ Revelaste o coração/ Me dando razão e gosto/ Pra avançar na contramão”. A música também foi gravada por Francis Hime, no LP “Passaredo”, e, já em 1983, ganhou a voz de Olívia Hime.
“Pouco me Importa” (MPB, 1977) – Francis Hime e Ruy Guerra
A fértil parceria entre Ruy Guerra e Francis Hime rendeu ainda, em 1977, “Pouco me Importa”, que foi lançada no álbum “Passaredo”. Em 1985, Zezé Motta tomou para si os versos da canção ao fornecer a sua versão para o LP “Frágil Força”, adensando os seus contornos de ressentimento. “Ah, pouco me importa a maldição/ De ter perdido o teu amor/ Pouco me importa que essa porta/ Não me deixe mais entrar/ Porque eu te quero até o fim/ E sem pudor vou gritar/ Tudo o que o meu corpo guardou/ Pra teu prazer, pra meu penhor”. Zezé passava a integrar um seleto time de grandes cantoras que interpretaram a obra de Ruy Guerra, aliando-se a Elis Regina, Maria Bethânia, Angela Ro Ro.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2021.