Celso Adolfo: ‘Ser compositor é a nuvem que esconde a turbulência’

*por Raphael Vidigal

“Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice…” Guimarães Rosa

Federico Fellini veio ao Brasil filmar a vida de um garoto e o pegou de calça curta, cercado por anjos barrocos, enquanto a banda tocava tuba no dobrado. Isso foi antes de o cineasta italiano dirigir clássicos como “Amarcord”, “Ensaio de Orquestra” e “A Doce Vida”. Mas tudo não passa da imaginação do repórter, que se deixa levar pelos acordes de “Pratiano”, nos sete minutos de canção que Celso Adolfo construiu com esmero, a partir de uma fotografia, talvez para fixar seu passado, mantendo a memória num lugar cativo. A canção dá título a seu novo disco, aquele que ele acaba de lançar, com nada menos do que 19 faixas, incluindo algumas vinhetas ao longo do percurso que, embora musical, soa cinematográfico para os ouvidos atentos. É um Fellini pelo filtro do mineiro.

“Criadores de todas as artes, quando buscam coisas pessoais e por elas dizem algo do que são, partem do ambiente que dominam, e não obrigatoriamente de onde nasceram. Mas não é vedado criar fora destes domínios. São muitas as saídas dispostas pelas artes. Da minha parte, fico satisfeito quando acerto umas ‘bateiadas’ nas minhas ‘mineirações’, e troco por melodias e palavras as pepitas que alcanço, mesmo sabendo da fugidia esmeralda, que é a esperança de encontrar exatamente o que eu busco e que me causa desconforto ou me deixa confortável”, avalia Celso, sem abandonar por completo o lirismo, sugerindo algo de Guimarães Rosa na conversa. Minas passa também por lá…

Reflexões. Aos 70 anos, completados em setembro do ano passado, Celso se perguntou o que pensava aquele menino de sete ou oito anos quando se deparou com a referida fotografia, em que ele aparece de calça curta, paletó, mãos no bolso e sapato envernizado, versos aproveitados em “Pratiano”, durante uma festa de aniversário passada em São Domingos do Prata, sua cidade natal, localizada entre Ipatinga, João Monlevade e o rio Piracicaba. “Precisei de sete minutos para eu me responder”, conta Celso, numa alusão ao espelho em espiral que dá conta da letra. Apesar disso, não foi a canção que deu nome ao disco. O batismo estava decidido bem antes, na alma do menino.

“Se esta ‘Pratiano’ é uma viagem musical particular, embora comum a milhares de meninos, o CD ‘Pratiano’ é mais do que isto, pois encara temas e gêneros musicais variados por onde um pratiano passou e passa”, esclarece. A expressão é a preferida do músico para se referir a quem nasce em São Domingos do Prata, e revela um incômodo com a escolha do dicionário Antônio Houaiss (em edição de 2001), de identifica-los como “pratenses”, enquanto o Aurélio os trata pela maneira com que se reconhecem desde o nascimento, o “pratiano” do qual se orgulha Celso. Para reafirmar esta posição e garantir segurança nesse terreno movediço, ele se abriga no parecer de um conhecido professor de português, sem perceber que a sua canção contém as respostas.

Origens. A partir de agora, quem quiser entender o significado de “Pratiano” deverá ser imediatamente remetido, através de um link que seja, à música de Celso Adolfo, muito mais persuasiva e completa do que qualquer dicionário. Ele alcança o todo a partir da parte. Fala do mundo por meio de sua aldeia, como preconizava Tolstói, escritor russo que nos aproxima de nossas origens. “Eu sou aquela montanha de vegetação baixa cujas raízes escondem as mais condensadas e as mais leves emoções. Todas estão em tudo que componho, dispersas, mas visíveis”. É o que acontece novamente, como ele mesmo diz, em “Valsa de Ana Emília”, que fecha o disco. Embora ela esteja mal explicada.

“E a culpa é minha, pois não ficou claro que esta Ana Emília que fazia 100 anos era a avó do meu amigo Carlos Roberto Lima, valadarense com quase 40 anos de Estado Unidos e já cidadão estadunidense, a quem dedico a faixa”, informa. Celso conheceu Ana Emília justamente em seu aniversário centenário, “lúcida entre os parentes dela, linda mulher, expressão perfeita da ingenuidade que 100 anos de vida expunham”. “Compus a valsa para ela, tentando, em vão, alcançar as levezas de Ana Emília, cantora de quem ouvi as mais lindas e leves quadrinhas que já pude ouvir, e que, imperdoavelmente, não gravamos”. Porém, Celso não cometeu igual deslize com as travessuras de suas crianças.

Tempo. “Pratiano” se encerra com “Minhas Cantoras” em que é possível ouvir, à distância e, depois, se aproximando, ecos de vozes infantis, como uma câmera que transita de um plano aberto, sobre o horizonte, ao close. “Nada é mais apaixonante do que ouvir e gravar duas filhas brincando, cantando, distraídas construindo um mundo que se forma a partir do que está em volta delas, e, no caso, regado a música e aos desafogos da infância por meio do canto”. Celso já foi uma criança como Laura e Ana, descritas nos créditos da faixa como “cantoras, faladoras, pianistas”. Na medida do possível, ele retém os sonhos, e tenta lidar com as frustrações que estão reservadas aos adultos…

“Lido com o tempo na velocidade e com o poder dele. Em vão tive vontades, muitas, inúmeras, de frear umas coisas, voltar atrás em outras e propor ao passado o que eu quisesse, e ao futuro o meu futuro”, sublinha. “Não gosto de não ter conseguido vencer as dificuldades e não ter estudado música pra valer, formalmente, para dominar os meios de representação dela”. Funcionário público, concursado no DER (Departamento de Estradas de Rodagem), Celso desperdiçou uma chance que ainda remói. O peito consternado segue adiante.

“Pedi ao meu querido chefe Fernando Amaral que me liberasse de trabalhar pela manhã, para eu estudar música e canto com Amim Feres, um incrível barítono que seria o meu instrutor e professor no Palácio das Artes. Tudo parou quando perdi um dia de trabalho e fui fazer um primeiro teste com ele, pois, sendo eu regido pela CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas), se eu insistisse em estudar, e, ainda por cima, estudar música, a minha demissão seria automática! E isto também é o tempo, e sei quanto dele eu perdi tentando me mover nesta areia quente”, reflete o músico, com sua centena de canções…

Encontros. Nada disso deteve o seu ímpeto de compor. “Hoje ou aos 20 anos, são coisas de outra ordem, mas são as mesmas que eu alimento e que me alimentam de volta. O acorde súbito, a nota musical repentina da qual vem um monte de outras, juntando a palavra à frase musical aonde tudo se acomoda, isto é o ímpeto em qualquer idade. O tempo e suas circunstâncias, somando a 2023 o que veio desde São Domingos do Prata, é o tempo. E foi o tempo quem protegeu, protege, consagrou e consagrará o que passou e o que vai passar. O tempo é a tríade de si mesmo. Ora é o seu passado, ora é o seu presente e também é o seu futuro. Para o tempo presente, as músicas deste ‘Pratiano’ estão passando, passando…”, filosofa Celso Adolfo, todo imerso em si mesmo.

Essa travessia começou, pra valer, em 1982, “numa sucessão de sortes”, como descreve o compositor. Na plateia do show “Coração Brasileiro”, que Celso apresentava no Teatro da Imprensa Oficial, em Belo Horizonte, ele distinguiu um rosto conhecido, não apenas por ele. Àquela altura Milton Nascimento já era um emblema da música brasileira. Logo, Celso o estaria chamando, carinhosamente, de Bituca, apelido garantido aos amigos mais íntimos do cantor cuja voz foi comparada por ninguém menos que Elis Regina à de Deus. Milton selecionou a composição “Coração Brasileiro”, de Celso, para gravar no LP “Ânima”, notabilizando o nome do jovem estreante para o país. Na faixa, o próprio Celso tocava o violão. A parceria abriu caminho para que Milton produzisse o primeiro disco do mais recente pupilo, lançado há exatos 40 anos.

Homenagem. Adiante, em 1995, os dois cantaram juntos “Brasil, Nome de Vegetal”, em outro álbum da lavra de Celso. Para prestar reverência e reforçar a gratidão, ele saúda Bituca nos versos de “Eu Bebo do Samba”, e menciona “A Última Seção de Música”, que batizou a turnê de despedida de Milton no ano passado, quando ele se apresentou para uma plateia emocionada no Mineirão. Em 1983, Elba Ramalho transformou “Coração Brasileiro” em nome de seu LP e da “temporada de impressionante sucesso no Canecão, no Rio, com repercussão no Brasil todo”. De fato, a paraibana ampliou o espaço de Celso, explicitando relações das Minas Gerais com o Norte e com o Nordeste…

Em “Pratiano”, temos o “Coco Calangado”, resposta-homenagem a “três gigantes do coco alagoano e, por extensão, da música nordestina: Jacinto Silva e Onildo Almeida, cuja obra conheci a partir de ‘Gírias do Norte’, deles, interpretada pelo genial baiano Xangai, o terceiro gigante da tríade nordestina homenageada por mim”. “Gírias do Norte” ficou célebre na voz da cantora Marinês, referência absoluta para Elba Ramalho, que também a regravou. “Então, ‘Coco Calangado’ não é mineira tal como identificamos certa quantidade de composições mineiras, entre elas várias que eu compus. Pois eu tomei o gênero original para me arriscar noutro que eu supunha estar inventando: um coco, mas calangado, pra chamar de meu. Mergulhei nas ideias e formas originais de ‘Gírias do Norte’, e, quase como um copia e cola, cheguei aos versos-homenagem aos artistas citados”, proseia Celso, animado.

Estilo. Ele procura resumir a inventiva, sem dar conta exatamente de sintetizá-la, ao tratar a faixa como “uma arriscada quantidade de acentuações rítmicas em meio a uma tormenta de palavras, um perfeito problema de perturbação da alma, dos arpejos, um cangalha carregada de ideias e raciocínios propositalmente truncados, um desafio para a montagem da estrofe, para a sintaxe mesmo, mas não é claramente identificada como uma entre as muitas músicas mineiras que há. Quanto mais surjam compositores e as épocas se manifestem, pode ser que o tempo envolva o meu ‘Coco Calangado’ e o ajude a alcançar o status de música mineira”. E noutra seara, ele se atreve a sambar.

“Já compus vários e, embora desejasse, e muito, lá na década de 1990, nunca consegui gravar um disco só de sambas. Mas agora eu resolvi gravar um tanto deles, e ainda deixei alguns para outra ocasião”. “Pagode do Gujoreba” é o exemplo mais claro do álbum, ao lado da não menos divertida “De Bem com a Patroa”. Na vinheta “Querosene com Tylex”, pródiga em sabedoria popular, alguém define a vida como um sutiã: “quem quiser que mete os peito”. As vinhetas servem para recuperar o fôlego. “São três respiros entre as muitas faixas, desaconselhavelmente muitas, ou, como diria o sensacional pleonasmo que tanto diverte o meu amigo Jaime Domingos Vovô: ‘este é um CD sesquipedalmente demais’”, brinca Celso, espirituoso como na junina “Santo Antônio na Querença”, que retoma as crendices acerca do santo casamenteiro.

Nascimento. “Sobre os gêneros musicais em geral, nenhum me incomoda e rarissimamente eu compus escolhendo algum deles. As minhas composições sempre nasceram do violão, um assunto e um fio melódico, conjunto que desembola as ideias que viram música. As composições do CD ‘Pratiano’ seguiram a mesma onda. Quando algo ia para o samba, fui junto; quando os apertos do amor deram as caras, caí pra dentro; quando apareceu uma festa junina, fui ao violão, à viola de 10 cordas e chamei Christiano Caldas para tocar a sanfona”, salienta o entrevistado, creditando com prazer um dos convidados.

Olhando no retrovisor, em especial para os álbuns temáticos de 2011 e de 2019, respectivamente “Estrada Real de Villa Rica”, passeio pelo período colonial mineiro e brasileiro, e “Remanso de Rio Largo”, inspirado na leitura de “Sagarana”, obra atemporal de Guimarães Rosa, o músico nota que se deixou fluir ao modo das águas. “As músicas surgiram de si mesmas, e não de escolhas do tipo agora vou fazer um cateretê, um samba-chula, uma modinha”.

E assim segue Celso nessa estrada, nesses rios, ou nas montanhas, sem precisar se deter em uma geografia única, concentrado no campo da arte, que lhe oferece horizontes ilimitados e abundantes. “Aqui cheguei, cheguei assim”, canta ele em “Pratiano”. “Viver é uma turbulência diária; viver da profissão de compositor é a nuvem que esconde a turbulência. Nesta idade, não vejo mais do que já vejo desde sempre e que são os componentes do que passamos por aqui: um embate entre vontades e derrotas, entre ganâncias, farturas e faltas; um pega-pra-capar entre ganhos e perdas, tudo ao mesmo tempo agora e sempre”. Esta definição, só de Celso, talvez seja melhor que a dos dicionários.

Foto: Eduardo Gontijo/Divulgação.

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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