Cecília Beraba lança o segundo álbum em homenagem a Jorge Mautner

*por Raphael Vidigal Aroeira

“É por cantos e danças que o homem se manifesta como membro de uma coletividade que o ultrapassa.” Nietzsche

Imagens de filmes expressionistas da época do cinema mudo alemão são entremeadas por Cecília e suas tatuagens, com os braços abertos para o mundo. “Ressurreições” contém o verso que dá nome ao novo disco de Cecília Beraba, continuação das homenagens pelos 80 anos de Jorge Mautner que ela iniciou no ano passado: “Só o amor pode matar o medo”. O canto da intérprete não deixa dúvidas, com todas as nuances, soluços e gaguejos que propõe a obra sempre incomum, em rotação, contemporânea do Profeta do Kaos com K.

Talvez o kharma de Cecília Beraba seja interpretar Jorge Mautner. Fato é que nesse novo pacote de canções com que ela nos presenteia, o clima solar se impõe, mesmo diante das adversidades. Cecília parece ter em mente que o único e mortal papel da arte é propor a liberdade, ou, ao menos, alguma forma de libertação. Ela abre os trabalhos com “Olhar Bestial”, lançada por Mautner no álbum “Para Iluminar a Cidade” (1972). Econômica, a gravação se insinua circense. São os sopros quem dão o tom do arranjo, o que valoriza as palavras.

“Salto no Escuro” literalmente leva o disco pra cima, para os ares, ele se eleva com a presença equilibrista do homenageado, que agrega emoção ao dueto com a anfitriã. Sem perder a força poética, Cecília oferece uma faixa que provoca movimentos nos quadris. Não passa despercebida a crítica ao capitalismo. Características de Mautner, que rima revolução com amor. A frase de Rimbaud na voz mitigada pelo tempo de Mautner é o fecho-perfeito. Em “Rainha do Egito”, Cecília não evita as afetações e se entrega a elas com força.

“Por que o ser humano/ Seja homem ou mulher/ É uma eterna criação”. Nada mais eterno e contemporâneo. “Sheridan Square” mergulha no blues. Mautner é um revolucionário cosmopolita, mais do que nacionalista. Entrevemos detalhes de Janis Joplin. “Menino Carnavalesco” também prima pelo arranjo, em clima de tango. A música foi originalmente gravada por Mautner no disco “Árvore da Vida” (1988), dividido com o eterno parceiro Nelson Jacobina, quando eles gravaram “Positivismo”, de Noel Rosa e Orestes Barbosa. Pérolas.

“Aeroplanos”, um dos estandartes de Mautner, penetra na cena lentamente, ciceroneada pelo piano de Antônio Guerra. Prova de que Cecília capta as suavidades do compositor, o que torna a canção ainda mais singela. “Chuva Princesa” permanece nessa trilha lírica, que a cantora domina tão bem. A poesia de Mautner, óbvio, contribui. Até sons de chuva se intrometem na canção. É uma delícia. “O Relógio Quebrou” invoca tons mais sombrios, logo interrompidos por uma languidez que se expande em alegria louca, desaforada.

A outra participação especial é a de George Israel, saxofonista do Kid Abelha, em “Diamante Costurado no Umbigo”, de pegada hippie-existencial. Bem Mautner dos anos-70 e do LP “Mil E Uma Noites de Bagdá” (1976). Mautner, que aprendeu com Maiakovski que não existe conteúdo revolucionário sem forma revolucionária, manda o seu recado numa de suas melhores letras com “Perspectiva”, nutrida de afeto pelo pensamento do poeta russo, que aparece em citações durante a canção, bem preservadas por Cecília. Segue sua utopia.

Parceria com Gilberto Gil presente no disco “Bomba de Estrelas” (1981), em que ficou mais visível o espírito gregário de Jorge Mautner, “A Força Secreta Daquela Alegria” encerra o compêndio como uma verdadeira síntese. Guarda melancolia, esperança, mas, sobretudo, um olhar sobre a vida – que é típico de Mautner –, tão seu quanto de todo o mundo, a quem ele se oferece e se lança com os braços abertos de Cecília Beraba no clipe de “Ressurreições”, e em cuja capa desse revigorante álbum eles se metamorfoseiam, lá além do tempo.

Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]