Carlos Gardel: 90 anos sem o ídolo do tango que moldou caráter argentino

*por Raphael Vidigal Aroeira

“Cantávamos duetos de amor de Puccini, boleros de Agustín Lara, tangos de Carlos Gardel, e comprovávamos uma vez mais que aqueles que não cantam não podem nem imaginar o que é a felicidade de cantar” Gabriel García Márquez

O mistério preenche boa parte da vida de Carlos Gardel, cuja imprecisão é a marca registrada. Sua morte, por outro lado, é mais exata, embora trágica. O mais famoso cantor de tangos da história perdeu a vida num acidente aéreo, em 1935, quando se preparava para uma apresentação na Colômbia. O avião chocou-se com outro e não deixou a cidade de Medellín. Devido ao estado do corpo, uma pulseira com o nome de Gardel foi o que possibilitou identifica-lo. Durante anos, ele foi conhecido pelo chapéu sombreando o rosto, levemente descaído, com uma autoconfiança no olhar que expressava paixão e sensualidade, reforçada pelo sorriso cheio de encantos e promessas de amor…

As letras que ele cantava, ao contrário, compreendiam a amarga constatação da desilusão e do desencanto, em músicas que, não raro, abordavam traições conjugais. A própria vida sexual de Gardel foi embebida em mistério. Discreto, ele jamais assumiu um romance em público, o que permitiu boatos tardios de uma escondida homossexualidade. Nada disso afetou a relação de Gardel com seu povo. Ídolo supremo na Argentina, ele segue visto em Buenos Aires, dentro de bares e nas portas de restaurantes e botecos de todas as categorias, cantado em verso e prosa por seus conterrâneos ou através de estátuas que o aclamam. Gardel é uma marca do orgulho portenho, e o fato de o músico não ter nascido na Argentina pouco importa para seu povo. Há duas versões sobre.

A primeira e mais difundida proclama que “o argentino” que, segundo o próprio, nasceu em Buenos Aires “aos dois anos e meio de idade”, veio ao mundo em Toulouse, na França. Sua mãe teria então treze anos. O pai jamais foi revelado. A outra versão aponta o Uruguai como sua terra natal. E o pai, desconhecido, não poderia ser revelado por se tratar de um líder político local. Seja como for, o mundo todo passou a ouvir a voz melódica e doce do moreno de Abasto, como ele ficou conhecido na juventude, quando praticava pequenos furtos para sobreviver enquanto a mãe se virava limpando casas de madames. A primeira oportunidade aconteceu há um século, com discos gravados pela Columbia. Milongas e outras composições nativas compunham seu repertório.

O tango entrou definitivamente na vida de Carlos Gardel na década de 1920. Composições como “Mano a Mano”, “El Día Que Me Quieras”, “Por Una Cabeza”, “Mi Buenos Aires Querida”, dentre outras, se tornaram febre e levaram o intérprete para as telas de cinema, encarnando o galã que ele também representava nos palcos musicais. A curiosidade é que “Por Una Cabeza” foi a única música com a assinatura de Carlos Gardel, uma parceria com o fiel escudeiro Alfredo Le Pera, brasileiro filho de imigrantes italianos, criado na Argentina. A canção abordava a paixão de Gardel pelas corridas de cavalos, o hábito de apostar, e traçava comparações machistas com mulheres.

Uma das últimas canções gravadas por Gardel foi o tango “Cambalache”, de autoria de Enrique Santos Discépolo, que ganhou regravações de Caetano Veloso, Angela Ro Ro, Gilberto Gil e uma tradução em português de Raul Seixas. Com amargor indisfarçável, a letra narra as desventuras da humanidade e recorre à ironia como forma de alguma redenção. Pouco depois, com apenas 44 anos, Gardel despediu-se da vida para sempre, mas não de seus adoradores. Houveram relatos de suicídios de mulheres argentinas, alardeados pelos pasquins da época. O desespero tomou conta das ruas de Buenos Aires. Mas como o drama sempre foi uma marca de seu povo, eles, por fim, se resignaram, e continuaram cantando tangos que calam fundo na alma…

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Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

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