*por Raphael Vidigal Aroeira
“Entretanto, céu, terra, flores,
é tudo horizontal silêncio.
O que foi chaga, é seiva e aroma,
– do que foi sonho, não se sabe –
e a dor anda longe, no vento…” Cecília Meireles
Paulo Soledade abriu os olhos e enxergou, pela janela do hospital onde estava, uma primavera fulgurante, embora estivéssemos em dezembro de 1960. Em cerca de quinze minutos, sem violão nem nada, nasceu, segundo o próprio, a melhor composição do autor de “Estrela do Mar”, sucesso de Dalva de Oliveira, e parcerias com Vinicius de Moraes feitas para o projeto “A Arca de Noé”, como as melancólicas “São Francisco” e “O Relógio”, gravadas por Ney Matogrosso e Walter Franco. A canção expressava todo o entusiasmo do compositor, recuperado após se submeter a uma delicada cirurgia, e se tornou um hino da redenção: “Vê, estão voltando as flores/ Vê, nessa manhã tão linda/ Vê, como é bonita a vida/ Vê, há esperança ainda”, misto de alívio e determinação de viver.
Mas a música não seduziu cantores tarimbados e consagrados pela mídia, o que levou Soledade a recorrer à pequenina gravadora Mocambo, dirigida por um amigo, que topou a empreitada. Faltava encontrar a cantora, que não poderia ter contrato com nenhuma outra empresa. Dois anos depois, a voz grava e melodiosa da carioca Helena de Lima ecoava nas rádios do Brasil inteiro, transformando a marcha-rancho “Estão Voltando as Flores” no maior sucesso de 1962. Em 2017, aos 90 anos, Helena era uma das cantoras há mais tempo em atividade no país, dividindo essa primazia com figuras do calibre de Elza Soares (1937-2022) e Bibi Ferreira (1922-2019). Nesta segunda (16), Helena morreu, no Retiro dos Artes, um dia antes de completar 96 anos.
Apesar de ter se apresentado ao lado das contemporâneas Elizeth Cardoso e Dolores Duran, ela ficou menos conhecida do que seus pares. Oriunda da Era de Ouro do Rádio, foi colega de Angela Maria, Dóris Monteiro, Ellen de Lima, entre outras. Em 1948, descoberta pelo radialista César Ladeira, estreou na Rádio Nacional. No mesmo ano, começou a cantar na boate Pigalle, no Rio de Janeiro. Ao longo de sua trajetória, Helena privilegiou as apresentações em ambientes fechados, talhados para a intimidade que sua interpretação sugeria. Outra característica que a diferenciava era a voz grave, atributo que compartilhava somente com a diva da dor-de-cotovelo, Nora Ney, que eternizou clássicos da fossa, como “Ninguém Me Ama”, “Bar da Noite” e outros.
Helena angariou aplausos com músicas dramáticas, como “Verdade da Vida” e “Prece”, e também dedicou discos a Ataulfo Alves e Noel Rosa, caindo com propriedade no samba, à sua maneira. Sua imagem, no entanto, está inevitavelmente ligada à euforia de “Estão Voltando as Flores”, é ela quem cristaliza o canto encorpado e preciso da intérprete. Uma voz única, facilmente identificável, mas que, lamentavelmente, foi menos ouvida do que merecia, e, com o tempo, se tornou cada vez mais esquecida. A morte de Helena de Lima encerra um capítulo importante da música brasileira, protagonizado por Cauby Peixoto, Angela Maria, Dalva de Oliveira, Nelson Gonçalves, Dolores Duran, Nora Ney, Elizeth Cardoso, tantos outros, do qual Helena foi bela coadjuvante.
Quem quiser conferir o talento da cantora tem às mãos os seus melhores discos gravados na boate Cangaceiro, casa noturna que por mais tempo abrigou seus espetáculos, em todas as plataformas digitais, incluindo as da moda. Helena, atemporal, agora chega à modernidade. Mas continua clássica.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.