Brigitte Bardot e a MPB: musa foi cantada com paixão e crueldade

*Raphael Vidigal Aroeira

“quando confusas
mesmo as exatas
medusas
se transmudam
em musas” Paulo Leminski

A passagem de Brigitte Bardot pelo litoral do Rio de Janeiro na década de 1960, precisamente no verão de 1964, impactou não só a pequena cidade de Búzios, mas a própria música brasileira. A presença magnetizante da musa do cinema francês acabou gerando uma estátua que virou ponto turístico obrigatório ao redor da praia que ela teria frequentado, assim como inspirou compositores de diversas vertentes da canção nacional. Mesmo antes desse apoteótico acontecimento, a atriz já era um ícone da sétima arte e se tornara título de uma marcha eternizada por Jorge Veiga. Na sequência, foram as vezes de Caetano, Gil, Tom Zé, Péricles Cavalcanti e Zeca Baleiro cantarem Brigitte, ora com versos apaixonados, outrora com uma implacável crueldade.

“Brigitte Bardot” (marcha, 1960) – Miguel Gustavo
Foi deitado em uma maca que o cantor Jorge Veiga entrou no estúdio da gravadora Copacabana para dar voz à maliciosa marcha “Brigitte Bardot”, de Miguel Gustavo. Na época, ele ainda se recuperava de um acidente de carro sofrido em julho de 1959. Lançada em dezembro de 1960, a música não chegou a empolgar os foliões no Carnaval do ano seguinte, até ser descoberta pelo cantor francês Sacha Distel, antigo affair de Brigitte. Com isto, a canção chegou à França e se tornou um sucesso surpreendente. Regravada em polonês e inglês, a versão original de Jorge Veiga seguiu na preferência dos estrangeiros, embora ninguém entendesse a letra. Só que junto à fama vieram problemas judiciais quando Brigitte, aconselhada por advogados, pediu e conseguiu na justiça o repasse de 10% dos direitos autorais relativos à canção.

“Alegria, Alegria” (tropicalista, 1967) – Caetano Veloso
Apresentada pela primeira vez ao público no III Festival de Música Popular Brasileira de 1967, a tropicalista “Alegria, Alegria”, suprassumo do movimento capitaneado na música por Caetano Veloso, fez barulho desde o princípio, com sua perspectiva de rompimento, colagem e antropofagia das estruturas. No ano seguinte, surgiu no primeiro álbum solo do compositor baiano como principal sucesso e abre-alas do trabalho. Na efusiva e intrincada letra surge, de repente, a figura da musa do cinema francês, em versos de rara inventividade e ousadia: “Em caras de presidentes/ Em grandes beijos de amor/ Em dentes, pernas, bandeiras/ Bomba e Brigitte Bardot”. Na própria capa do LP, o rosto de um jovem e compenetrado Caetano é circundado por uma espécie de Eva modernista, cujos traços lânguidos e as expressivas curvas lembram Brigitte.

“Brigitte Bardot” (canção, 1973) – Tom Zé
Ao contrário de dezenas de canções que exaltavam a beleza estonteante e o brilho da estrela do cinema francês, Tom Zé não poupou a decadência inerente propiciada pelo tempo na canção “Brigitte Bardot”, lançada em seu provocativo e sempre tropicalista álbum “Todos os Olhos”, de 1973. Ali, o compositor retira a atriz do pedestal para colocá-la ao rés do chão no qual se estende toda a humanidade com sua inevitável miséria, frente a questões de ordem existencialista que comparecem no corpo, com a angústia atingindo o ponto de uma tentativa de suicídio, como referido no verso “será que algum rapaz de vinte anos vai telefonar/ na hora exata em que ela estiver com vontade de se suicidar?”, um dos mais cruéis de toda a composição. O próprio Tom Zé regravou a canção no álbum “O Pirulito da Ciência”, registro de show ao vivo, em 2009.

“Brigitte Bardot” (MPB, 1983) – Péricles Cavalcanti
Composta para a última peça do grupo de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone, que contava na montagem com nomes como Regina Casé, Luiz Fernando Guimarães, Hamilton Vaz Pereira e Carina Cooper, “Brigitte Bardot”, de Péricles Cavalcanti, integrou a trilha de “A Farra da Terra”, posteriormente lançada em LP. No espetáculo, fazia referência ao histórico ativismo pela causa animal da atriz francesa, e, num lance de deboche que combinava com a identidade da trupe, era cantada por atores que vestiam a pele de simpáticos bichinhos. A referência na letra à Caetano Veloso era completada pela própria presença do compositor baiano nos vocais. Além dele, Bob Dylan também era exaltado. A canção ressurgiu no álbum “Blues 55”, do compositor Péricles Cavalcanti, de 2004, num medley no qual era precedida pela faixa “Laurin Hill”.

“Touche Pas à Mon Pote” (reggae, 1985) – Gilberto Gil
No álbum “Dia Dorim Noite Neon”, lançado em 1985, cujo título aludia à andrógina personagem do clássico “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, Gilberto Gil compôs uma canção em francês para exaltar o movimento antirracista “Touche Pas à Mon Pote”, que batizou a composição. Os versos trazem referências a diversas personalidades francesas, como o filósofo Jean-Paul Sartre, o tenista Yannick Noah, o cantor Charles Aznavour, o cineasta Jean-Luc Godard, e, claro, a atriz francesa Brigitte Bardot. Para reafirmar o caráter de assimilação da diversidade e das influências de povos historicamente oprimidos, a canção de língua francesa surge em ritmo de reggae. Assim, Gil dá mais uma mostra de seu compromisso histórico com causas sociais que sempre o mobilizaram, e notadamente a da igualdade através do pacifismo.

“Brigitte Bardot” (valsa, 2000) – Zeca Baleiro
Depois do sucesso atingido com o álbum de estreia “Por Onde Andará Stephen Fry?”, de 1997, e o seguinte, “Vô Imbolá”, de 1999, premiados com disco de ouro pelas milhões de cópias vendidas, o compositor maranhense Zeca Baleiro colocou no mercado “Líricas”, no ano 2000, apostando em uma textura musicalmente sofisticada que lançava mão de violinos, violoncelos, clarinete, acordeon e outros instrumentos. Nesse contexto se inscreve a valsa “Brigitte Bardot”, em que Baleiro poetiza a imagem simbólica da atriz francesa que marcou toda uma geração de cinéfilos e cineastas. Com versos delicados, a canção conjuga a ideia de saudade à da musa, deixando no ar uma inevitável sensação de nostalgia. As referências à própria filmografia da homenageada comparecem de maneira sutil. “A saudade é Brigitte Bardot”, diz a letra.

“Tu Veux ou Tu Veux Pas?” (rock, 1967) – versão de Pierre Cour
Brigitte Bardot não se conformou em ser apenas musa de inúmeras canções feitas para ela no Brasil. A atriz francesa também se arriscou a interpretar uma versão de autoria de Pierre Cour para a célebre “Nem Vem Que Não Tem”, de Carlos Imperial, cuja marra da letra ficava ainda mais explícita na interpretação adequada ao tema de Wilson Simonal. Na voz sensual de Brigitte, “Tu Veux ou Tu Veux Pas?” ganhou ritmo de rock e invadiu as rádios francesas em 1970, um ano depois de ser lançada no país europeu por Marcel Zanini, cantor e músico francês nascido na Turquia. Na adaptação da letra, a afirmação de Imperial se transformava em provocativo questionamento: “Você quer ou não quer?”. Difícil resistir a uma pergunta tentadora dessas vinda de Brigitte Bardot.

Compartilhe

Facebook
Twitter
WhatsApp
LinkedIn
Email

Comentários pelo Facebook

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *


O período de verificação do reCAPTCHA expirou. Por favor, recarregue a página.

Recebas as notícias da Esquina Musical direto no e-mail.

Preencha seu e-mail:

Publicidade

Quem sou eu


Raphael Vidigal

Formado pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, atua como jornalista, letrista e escritor

Categorias

Já Curtiu ?

Siga no Instagram

Amor de morte entre duas vidas

Publicidade

[xyz-ips snippet="facecometarios"]