*por Raphael Vidigal Aroeira
“A natureza se revela mais quando é condensada pela arte do que quando é abandonada a si mesma.” Francis Bacon
Das preocupações com o mundo nossos compositores nunca se viram livres. Fossem elas de ordem política, sociais ou relacionadas, em suma, ao meio ambiente em que vivem. Dessa perspectiva tanto ecológica quanto de preservação do espaço, nomes como Luiz Gonzaga, Beto Guedes, Caetano Veloso, João Nogueira, Djavan, Jorge Benjor, Toquinho, Paulo César Pinheiro e intérpretes do porte de Clara Nunes e Baby do Brasil se valeram para cantar a terra com todo o verde que ela deseja e merece. Em um planeta cada vez mais cético e desenvolvimentista, impingido de lama e poluição, a arte ainda é um alento. Seguem, abaixo, 20 músicas brasileiras a favor do meio ambiente e da causa indígena para celebrar, justamente, toda importância do Dia do Índio.
“Índia” (guarânia, 1952) – versão de José Fortuna
O LP “Índia”, de 1973, teve a capa, focada na parte de baixo do biquíni de Gal Costa, vetada pela ditadura. Para sair, o disco precisou ser vendido em plástico opaco, solução encontrada pelo compositor Roberto Menescal, então diretor artístico da gravadora Philips. “A censura à capa de ‘Índia’ não a afetou negativamente. Na verdade, impulsionou as vendas do disco e gerou bastante burburinho em torno da obra. O que afetou os rumos de Gal de maneira mais decisiva foi a recepção irregular ao disco subsequente, ‘Cantar’, de 1974”, conta Renato Contente, autor do livro “Não Se Assuste Pessoa! – As Personas Políticas de Gal Costa e Elis Regina na Ditadura Militar”. A faixa-título “Índia” era uma guarânia de 1952, cuja versão, de José Fortuna, Gal Costa regravou.
“Riacho do Navio” (xote, 1955) – Luiz Gonzaga e Zé Dantas
Já na década de 1950, Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião”, e Zé Dantas, seu parceiro de tantas andanças musicais, compuseram o xote “Riacho do Navio” que celebrizou o curso fluvial nordestino e o rio Pajeú, do sertão pernambucano, estado natal dos compositores. Além da sonoridade típica do sanfoneiro, que lembra, sem dúvida, o movimento de águas, a letra versa sobre a necessidade de o homem voltar às raízes e à vida simples, de ser novamente peixe e se integrar à natureza. A música foi lançada no ano de 1955 e regravada por Fagner, Dominguinhos, Geraldo Azevedo, Nazaré Pereira, e etc.
“Um Índio” (tropicália, 1976) – Caetano Veloso
Para o tropicalista Caetano Veloso a raiz brasileira e, sobretudo, nordestina, era base de toda a sua experiência artística. Portanto são fortes os traços de mestiçagem negra e indígena em suas composições. A fim de homenageá-las, Caetano compôs, em 1976, o hino “Um Índio”, que mistura o povo nativo do Brasil com imagens interplanetárias. Nesta leitura pop os filhos de Gandhi convivem com heróis do cinema norte-americano como Bruce Lee. No entanto, o que salta aos olhos e emerge desta peça do mestre baiano é a textura embebida em folhagens e gestos úmidos. Foi lançada com Os Doces Bárbaros.
“Passaredo” (MPB, 1976) – Chico Buarque e Francis Hime
Chico Buarque e Francis Hime compuseram, em 1976, uma ode aos pássaros brasileiros e, em última instância, à rica fauna do país. Interessante notar a influência indígena em muitas dessas nomenclaturas, como se observa, por exemplo, em uirapuru, saíra, inhambu, patativa, macuco, juriti, e muitos outros. Nesta letra repleta de lirismo, os autores não deixam de denunciar a presença destruidora do ser humano no contexto de preservação da natureza. “Toma cuidado/Que o homem vem aí”, alertam. A melodia segue, até esse instante, o ritmo do voo gracioso desses animais. Foi regravada por Adriana Calcanhotto.
“Sobradinho” (rock rural, 1977) – Sá & Guarabyra
Sem dúvida um das mais emblemáticas músicas sobre preservação ambiental foi composta pela dupla Sá & Guarabyra em 1977, no ritmo do seu já famoso rock rural. Isto porque a canção denuncia, sem meias palavras, os resultados desastrosos da interferência humana no meio ambiente, em busca de mais riqueza e cego pela ganância desenvolvimentista. Com um refrão forte e marcante, “Sobradinho” não alivia. “O sertão vai virar mar, dá no coração, com medo que algum dia o mar também vire sertão”, lamentam. O discurso vazio de lógica daqueles que prometem e nada cumprem aparece nos primeiros versos.
“As Forças da Natureza” (samba, 1977) – João Nogueira e Paulo César Pinheiro
Em 1977, João Nogueira e Paulo César Pinheiro compuseram especialmente para Clara Nunes a música “As Forças da Natureza”, que deu nome ao seu disco daquele ano. A mineira guerreira, lutadora ativa das lutas sociais, sempre a favor do meio ambiente e das práticas religiosas enraizadas na origem do Brasil, não se fez de rogada e entoou o cântico com toda a magia que dele emana. Entre os versos mais impressionantes destaca-se a elementar profecia: “Vai resplandecer/Uma chuva de prata do céu vai descer/O esplendor da mata vai renascer/E o ar de novo vai ser natural/Vai florir…”. Regravada por Alcione.
“Amor de Índio” (balada, 1978) – Beto Guedes e Ronaldo Bastos
Beto Guedes nasceu em Montes Claros, no interior de Minas Gerais, e participou ativamente do movimento que ficou conhecido como Clube da Esquina desde o início, ao lado de Milton Nascimento, Fernando Brant, Lô Borges, Toninho Horta, Márcio Borges, Wagner Tiso e outros agregados, caso do carioca Ronaldo Bastos, que se tornou seu parceiro em uma de suas mais emblemáticas canções. “Amor de Índio” deu título ao LP lançado por Guedes em 1978, o segundo de sua carreira solo, na esteira do sucesso de “A Página do Relâmpago Elétrico”. A balada combina com maestria versos de um lirismo romântico a observações reflexivas sobre o comportamento da natureza. Os versos iniciais atingem em cheio a mente e o coração do ouvinte: “Tudo que move é sagrado”. E essa música foi regravada por Maria Bethânia e Anavitória.
“Cara de Índio” (MPB, 1979) – Djavan
Com uma dialética e expressão muito particulares, Djavan causou furor logo em seu aparecimento no cenário da música popular brasileira. Ao emendar um sucesso atrás do outro uniu o calor do público ao reconhecimento da crítica. “Lilás” dá nome a um dos mais incensados álbuns de sua carreira fonográfica, lançado em 1984. A música tem o tradicional ritmo sonoro e verbal do artista, com ilusões indiretas e palavras soltas pelo ar. Porém, é impossível não apreender a ode às belezas naturais e o clamor a elementos como “pôr do sol”, “céu azul”, “mar de raio” e “luz do amor” ali presentes. Outra música com essa temática é “Cara de Índio”, de 1979, que se volta aos nossos povos originários.
“Coito das Araras” (MPB, 1979) – Cátia de França
Em 1979, a paraibana Cátia de França estreou com disco que já trazia um de seus maiores sucessos. “Kukukaya: Jogo da Asa da Bruxa” seria regravada em grupo por Elomar, Vital Farias, Geraldo Azevedo e Xangai. De acordo com a compositora da canção, ela a recolheu de quadrinhas de domínio público, e o termo que a intitula faz referência ao “pai de todos os ciganos”, que ela descobriu em uma revista de esoterismo. No mesmo disco, ela lançou a lírica “Coito das Araras”, que também se transformou em grande sucesso da carreira. A faixa recebeu regravações de Amelinha, Chico César, Júlia Vargas.
“Baila Comigo” (balada, 1980) – Rita Lee
Rita Lee é a cara de São Paulo, tanto que apareceu na canção que Caetano Veloso dedica à cidade. Disposta a escapar de qualquer molde, cantou, matreira, a “Valsa da Cidade” que Antônio Maria e Ismael Netto compuseram para o Rio de Janeiro. Filha de um cientista norte-americano fissurado em extraterrestres e uma matrona italiana fervorosa como o próprio Papa, festejou as raízes do Brasil com Gilberto Gil e se tornou mutante com os irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, com quem manteve uma relação atribulada de sucessos radiofônicos, contestações ferozes e paixões dilacerantes. Rita Lee não carece de apresentações, o seu perfil esguio e afogueado já fala por si só. Nascida no último dia do ano é a primeira rainha do rock e uma eterna pioneira. Em 1980, ela lançou a balada “Baila Comigo”, uma prece e ode à boa natureza.
“Planeta Água” (balada, 1981) – Guilherme Arantes
Outra música elementar do combate à destruição da natureza e da preservação ao meio ambiente foi a balada composta por Guilherme Arantes, “Planeta Água”, lançada em 1981. Com versos simples, mas carregados de simbologia, Guilherme descreve o percurso da água, o bem mais fundamental na existência humana, e procura atentar para o descaso das políticas que não a protegem. Por fim, num jogo de palavras de forte apelo popular, destaca uma nova incoerência do homem que batizou o planeta por “Terra” – “Planeta Água”, corrige Arantes. Essa música foi regravada pelo paraibano Zé Ramalho.
“O Sal da Terra” (clube da esquina, 1981) – Beto Guedes e Ronaldo Bastos
Integrantes originais do “Clube da Esquina”, Beto Guedes e Ronaldo Bastos criaram em 1981 o megassucesso “O Sal da Terra”. A famosa expressão serviria anos mais tarde para batizar o documentário em homenagem ao fotógrafo Sebastião Salgado, outro mineiro ilustre, e se vê presente também em música de Cazuza e Roberto Frejat, intitulada “Nós”. Na referida canção o foco da letra é em um mundo mais justo, mais igual e humano, onde as pessoas possam viver em paz com a natureza e entre seus semelhantes. Foi regravada por Sandra de Sá, Roupa Nova, Jessé e Ivete Sangalo, entre outros.
“Todo Dia Era Dia de Índio” (samba rock, 1981) – Jorge Benjor
Um dos principais estouros da carreira solo da exuberante Baby do Brasil foi a música “Todo dia era dia de índio”, inicialmente intitulada “Curumim Chama Cunhatã Que Eu Vou Contar”, mas cujo refrão se fez mais forte e teve novo batismo na boca do povo. Composta por Jorge Benjor, e lançada em 1981, esse samba rock possui todos os elementos típicos da música do carioca que começou a carreira no famoso “Beco das Garrafas”. Porém, alia à marcante batida do violão e à simplicidade dos versos, a temática socioambiental, denunciando a violência contra os índios e a natureza que eles tanto cultivam.
“Índios” (rock, 1986) – Renato Russo
O ano de 1987 foi profícuo em canções com referência à política brasileira. Nenhuma delas elogiosa. Um dos que estendeu a bandeira com maior propriedade e relevância foi o compositor e vocalista da Legião Urbana, Renato Russo. O protesto tornou-se tão simbólico que é hoje praticamente um ditado popular: “Que País É Este?”. A música aborda, de forma direta, episódios de corrupção e violência na política brasileira, e ainda chama a responsabilidade a todos, antes de chegar ao início do processo que teria se dado logo na “apropriação” do país pelos portugueses, quando o autor clama aos que aqui estiveram primeiro. “Quando vendermos todas as almas/Dos nossos índios num leilão”. Um ano antes, Renato compôs “Índios”, noutro alerta sobre o tema.
“Xote Ecológico” (xote, 1989) – Luiz Gonzaga e Aguinaldo
No último ano de sua carreira e também de vida, Luiz Gonzaga ainda teve tempo de mandar, junto com o parceiro Aguinaldo, um importante recado para o mundo. Trata-se da música “Xote Ecológico”, lançada em 1989, em que os compositores queixam-se da qualidade de vida que resultou da destruição que o homem impôs à natureza. “Não posso respirar/Não posso mais nadar/A terra está morrendo…”. E completam na estrofe seguinte: “Cadê a flor que estava aqui?/Poluição comeu/E o peixe que é do mar?/Poluição comeu”. Por fim homenageiam o combatente e corajoso ativista Chico Mendes, brutalmente assassinado pelos que defendiam interesses escusos. E a música é um alerta.
“Benke” (clube da esquina, 1990) – Milton Nascimento e Márcio Borges
Milton Nascimento nunca escondeu os fortes traços de influência sacra e barroca em sua música. Protagonista e propagador do “Clube da Esquina”, ele compôs com o companheiro de estilo Márcio Borges a música “Benke”, em 1990. O título é uma homenagem a uma criança indígena, do povo Kampa, e é “dedicada a todos os curumins e todas as raças do mundo”, afirma Milton. Os versos buscam atentar o homem da cidade para os ensinamentos trazidos pelos nativos, o olhar que muitas vezes escapa à ternura das matas, da lua branca e de todos os ambientes desse planeta que são recheados de natureza.
“Chegança” (samba, 1997) – Antônio Nóbrega
O pernambucano Antônio Nóbrega estava em frente à TV quando o assassinato da vereadora Marielle Franco foi anunciado, em março de 2018, em crime ainda hoje não elucidado. “Quem Mandou Matar Marielle?”, o questionamento que se tornou um emblema contra a impunidade, aparece em “Rima”, o primeiro álbum de Nóbrega em 12 anos. Décadas antes, em 1997, outro fato histórico o incomodou a ponto de criar o samba “Chegança”: a chegada dos portugueses ao Brasil e o tratamento dispensado aos povos originários. E Nóbrega se coloca ao lado dos indígenas nessa questão musical.
“Herdeiros do Futuro” (Infantil, 2002) – Toquinho e Elifas Andreato
Toda máxima tem um pouco de verdade e um tanto de esperança. Não é por acaso que se deposita nas crianças as chances de um futuro melhor para o ser humano e seus semelhantes, inclusive aqueles para os quais ele olha com desdém, como a terra, a água, os bichos e as plantas. Com Elifas Andreato, Toquinho participou do projeto e compôs a música “Herdeiros do Futuro”, voltada para o público infantil, em 2002, mas que serve, como um alerta, para pessoas de todas as idades. Especialmente as que habitam este planeta sem terem com ele cuidado, carinho e amor, noções básicas de uma convivência saudável. E que no futuro essa música possa ser um retrato distante, e datado.
“Demarcação Já!” (rock, 2017) – Carlos Rennó e Chico César
Chico César conta que estava em um táxi quando melodia e letra de “Mama África” apareceram em sua cabeça e, sem estar munido de lápis, caneta, ou um gravador, começou a repeti-las insistentemente na cabeça para não esquecer, deixando inclusive de dar atenção à irmã. Natural de Catolé do Rocha, interior da Paraíba, a inspiração apareceu quando, de mudança para São Paulo, observou, em um grande mercado, diversas mães que em meio ao trabalho também tinham que se preocupar em amamentar os filhos, cuidar deles e se atentar para com todas as necessidades da prole. Já em 2017, ele se voltou para a questão indígena, com “Demarcação Já!”, com Carlos Rennó.
“Rumos e Rumores” (rap, 2019) – Vitor Pirralho
Exaltada no samba-enredo da Mangueira que valeu o título à escola de samba, a vereadora Marielle Franco voltou a ser lembrada nas imagens de “Rumos e Rumores”. Lançada pelo rapper Vitor Pirralho com participação de Ney Matogrosso, a música apela contra a destruição dos povos indígenas. Por sinal, Ney esteve no centro de uma polêmica em 2017, ao ser criticado pelo cantor Johnny Hooker, que acusava o veterano de “desdenhar da causa gay” após uma entrevista em que o antigo vocalista do Secos & Molhados rejeitava ter se tornado um representante das minorias e se definia como “um ser humano”. Ney também já declarou que ele é “a própria bandeira” de sua causa.
*Bônus
“Refloresta” (samba, 2020) – Gilberto Gil
Em 1979, após a trilogia iniciada com “Refazenda”, e que seguiu com “Refavela” e “Refestança”, esta ao lado de Rita Lee, Gilberto Gil lançou o álbum “Realce”, um dos de maior destaque de toda a sua trajetória. Novamente o compositor aborda de maneira sensível o universo que se tangencia por mulheres e homens. Em 2020, diante de novos desafios, Gilberto Gil voltou a essa “temática”, podemos dizer assim, com o samba “Refloresta”, uma espécie de prece e apelo à preservação das florestas brasileiras. A música ganhou um videoclipe, com as participações de Bem Gil e do trio Gilsons, todos da família.
Matéria publicada originalmente no portal da Rádio Itatiaia, em 2022.